Lívia deu o último retoque na coroa de flores e sorriu para o próprio reflexo, ainda sob o elogio — verdadeiro ou não — de Judith. A irmã se aproximou, tocou-lhe o braço e guiou-a para fora do quarto.
— Vamos? — perguntou Judith, a voz doce, mas carregando uma urgência invisível.
— Vamos! — respondeu Lívia, o coração dando pequenos saltos dentro do peito. — Você também irá participar? — questionou surpresa, percebendo rapidamente que parecia que a irmã também estava planejando participar.
— Sim! — Judith deu um sorriso brilhante. — Desde a última vez que minha mãe ligou dizendo que você iria participar, também resolvi tentar a sorte.
— Fico feliz com isso, irmã. — Lívia comemorou, dando um beijo e um abraço na irmã mais velha. — Achei que nunca iria aceitar participar. — Disse sincera, e a outra apenas sorriu.
Judith olhou a irmã, no fundo pensou em como será amanhã, quando retornarem com seus maridos, para buscar suas malas. Um arranjo totalmente novo. Nem por Lívia, e nem por Afrodite. Nessa noite, apenas ela irá decidir quem vai ficar com quem.
As duas caminharam lado a lado pelo corredor estreito da casa de verão da família; as lâmpadas presas às paredes lançavam sombras que se moviam com elas, como se a própria casa as observasse com carinho. Era ali que tinham passado a infância, brincando no jardim, correndo pelas pedras quentes, dividindo risos — e às vezes, lágrimas, e em especial, Lucas estava em cada um desses momentos.
Quando chegaram ao topo da escada de madeira, pararam por um breve momento.
A noite estava no auge. Pela porta aberta lá embaixo, a brisa carregava o cheiro salgado do mar, misturado ao aroma de flores e especiarias que vinham das ruas festivas. Bengalas de luz eram acesas pelo povo da ilha, traçando trilhas douradas no caminho em direção ao templo.
— Parece que tudo ficou mais brilhante hoje. — murmurou Lívia, encantada, olhando em especial para sua irmã em seu vestido brilhante.
— É porque todo mundo está olhando para você. — disse Judith, sem tirar os olhos do caminho à frente, dando um elogio quase irônico. — Vamos descer.
E, juntas, começaram a descer os degraus.
Lívia segurava o corrimão com leveza, tentando manter o equilíbrio entre o nervosismo e a felicidade. Judith, ao seu lado, descia com passos firmes, o vestido dourado fluindo ao redor dela como um rio de luz.
No pé da escada, seus pais esperavam.
A mãe, Helena, usava um vestido azul com bordados discretos, mas seus olhos eram o que realmente brilhavam — um misto de orgulho e nostalgia. Já o pai, Dionísio, trajava roupas claras, típicas dos moradores da ilha, e tentava disfarçar a emoção com o ajeitar constante dos óculos.
— Minhas meninas. — disse Helena, levando as mãos ao rosto por um instante. — Vocês estão perfeitas!
Dionísio sorriu largo.
— É impossível não lembrar do dia em que sua mãe escolheu a porta onde eu estava. — Ele olhou para Helena com carinho sincero. — E olha nós dois aqui. Funcionou tão bem, que estou até hoje tentando entender o que ela viu em mim.
A mãe riu, dando um tapa leve no braço do marido.
— eu não vi, apenas senti. E no outro dia, quando acordei e você estava com buquê de flores e um par de alianças. — Helena sorriu, parecia que havia voltado a quase trinta anos atrás. — Senti no exato momento, que a deusa havia me abençoado.
Lívia absorveu aquelas palavras com doçura, imaginando Lucas esperando por ela, sentado na escuridão, o lenço azul pendurado na porta, o coração batendo forte como o dela.
Judith, por sua vez, manteve o sorriso, mas seus dedos apertaram o tecido do vestido com uma tensão quase imperceptível.
— Estamos prontas! — disse ela, erguendo o queixo.
O pai aproximou-se, beijou a testa das duas, primeiro Judith, depois Lívia. Olhou nos olhos das filhas, aquele amor paterno que se preocupa e quer ver feliz, mesmo que em caminhos incertos.
— Que a noite traga a vocês o mesmo que trouxe para nós: respeito, parceria e amor verdadeiro. — o pai disse, dando espaço para que a mãe também se aproximasse das jovens.
Helena ajeitou um fio de cabelo atrás da orelha de Lívia com um gesto maternal.
— E lembrem-se, — disse a mãe, orgulhosa — ao amanhecer, quando a luz tocar vocês… tudo mudará para sempre. Não tentem espiar seus maridos antes do sol, ou não terão a benção. Não tentem burlar as regras.
— certo, mãe. — Lívia confirmou, o seu coração ficando momentaneamente aflito, porque o combinado entre eles, seria meio que quebrar as regras, mas, eles se amavam e apenas isso seria o suficiente.
— Garanta que sua irmã faça uma boa escolha. — A mãe pediu a Judith, com receio que a Lívia estivesse pretendendo agir com imprudência, sobre uma promessa de amor que talvez não seja a escolhida por Afrodite.
— Vou cuidar disso, mãe. — Judith garantiu, antes de virar e dar uma picadinha cúmplice com a irmã.
Lívia sorriu, sentindo um arrepio quente percorrer os braços — uma mistura de medo e esperança.
Judith olhou para a irmã e segurou sua mão.
— Vamos mostrar que a família está crescendo. — disse ela, com a voz impecavelmente suave.
E juntas, as duas saíram pela porta da casa, como duas figuras em contraste perfeito: A flor branca e a luz dourada, caminhando lado a lado rumo a seus destinos.
A rua que levava à casa dos rapazes estava iluminada e enfeitada. Flores e oferendas de agradecimento enfeitava as ruas e casas. Cada chama tremulava com o vento vindo do mar, criando sombras alongadas que dançavam ao redor de Lívia e Judith enquanto caminhavam.
O som do festival ecoava distante — risos, música suave de lira, passos na areia — mas ali, naquele trecho, a atmosfera parecia contida, quase reverente. Afinal, cada porta que se abriria naquela casa representava um destino.
Lívia sentia o coração martelar tão alto que parecia querer escapar pela garganta.
— Eu devia ter vindo mais cedo. — murmurou ela, apertando o corpo do vestido branco. — E se alguém entrar na porta errada? E se outra mulher confundir e...
— Lívia! — interrompeu Judith, pousando uma mão no ombro da irmã. — Eu vou te ajudar. Vamos encontrar seu Lucas, certo?
A voz vinha açucarada, benevolente… mas por trás dos olhos havia algo calmo demais, calculado demais.
A casa dos rapazes era antiga, com paredes grossas e um corredor comprido que seguia até o fundo. As mulheres estavam autorizadas a entrar naquele período restrito, e o ritual já havia começado: algumas portas estavam entreabertas, revelando apenas escuridão e o perfume de incenso queimando lá dentro.
A cada porta aberta, outra mulher desaparecia no interior escuro, como se mergulhasse no próprio destino, levando consigo o lenço que estava na maçaneta da porta, mostrando que aquele homem já havia sido escolhido.
Lívia acelerou o passo.
— Judith, anda! Se a porta do Lucas estiver perto da entrada… alguém pode entrar antes de mim!
A irmã segurou a mão de Lívia, como quem guia uma criança assustada.
— Calma. Estou aqui. Vamos achar.
Seguiram mais rápido. A lamparina do corredor piscava, jogando sombras inquietas no chão. As portas estavam alinhadas, cada uma marcada por um lenço pendurado no batente — a única pista dada pelos rapazes.
Lívia olhava freneticamente para cada cor: verde, amarelo, branco… nenhuma azul.
— Ele disse que usaria azul, não disse? Um azul forte? — perguntou Judith, com voz suave, como se confirmasse uma informação importante.
— Sim! Azul marinho! Sempre foi a cor favorita dele.
Judith sorriu, discreta, quase imperceptivelmente.
— Então vamos achar o azul.
Avançaram mais alguns passos.
Foi então que Judith viu: duas portas lado a lado. Na primeira, pendia um lenço preto — escuro como carvão, marcando os rapazes de temperamento mais introspectivo, difíceis, muitas vezes rudes.
Na porta ao lado, um lenço azul-marinho, exatamente como Lucas havia prometido.
Judith respirou fundo. O momento chegara.
— Achei! — exclamou ela, mas não para Lívia… primeiro para si mesma.
E antes que a irmã percebesse, Judith avançou um passo à frente, estendeu as mãos rápidas e, com um movimento tão ágil quanto silencioso, trocou os lenços de lugar: o preto foi pendurado na porta do azul, e o azul na porta do preto.
— Lívia! — chamou ela em seguida, agora com voz alta o suficiente para parecer surpresa. — Aqui! Achei o lenço azul!
Lívia correu até ela, ofegante.
Ao ver o lenço agora preso na porta da direita, sorriu tão amplamente que os olhos pareceram brilhar.
— Eu sabia! Ele fez exatamente como combinamos!
Judith aproximou-se, segurou o rosto da irmã entre as mãos e beijou-lhe a testa de modo carinhoso — um gesto que quase a fez acreditar que nada havia de errado.
— Boa sorte, irmãzinha. — As palavras saíram doces, envoltas em falsa ternura. — Que você encontre tudo aquilo que sempre desejou.
Lívia a abraçou de leve.
— Obrigada, Ju. Obrigada por estar comigo hoje. Eu precisava de você.
Judith sorriu. Ah, como aquele sorriso era bonito… e cheio de veneno.
Quando Lívia se voltou para a porta, algo chamou sua atenção.
— Nossa! — comentou ela, franzindo o nariz ao olhar a porta ao lado. — O lenço preto… sempre me deu um pouco de medo. Dizem que simboliza o humor difícil do rapaz. Ainda bem que não é o do Lucas.
Judith escondeu o riso na garganta.
— Sim! — disse ela simplesmente. — Ainda bem.
Lívia respirou fundo, colocou a mão na maçaneta e, com o coração acelerado e o destino prestes a mudar para sempre, pegou o lenço e amarrou envolta do pulso, antes de dar um pequeno sorriso e mergulhar na escuridão do seu destino.