cap 01 como tudo começou
Thaís
Acordei num pulo, ouvindo os barulhos de tiros do lado de fora do meu apartamento. Não eram tão próximos, mas o suficiente pra me fazer estremecer embaixo do cobertor cor-de-rosa. Respirei fundo, tentando manter a calma, e busquei o controle da televisão pra tentar entender o que estava acontecendo.
O reloginho no canto da tela informava que eram 5h43 da manhã, e a repórter dizia que os tiros estavam acontecendo na região do PPG, mas ainda não havia informação exata de em qual das três favelas a polícia estava invadindo. Covardia pura, papo reto. Hora em que muito trabalhador estava levantando pra ir em busca do pão de cada dia, e a polícia decide invadir assim.
Peguei meu celular na cabeceira da cama, tirei do carregador e logo tratei de mandar uma mensagem pro Vitor, meu irmão, querendo garantia de que ele e meu pai estavam bem. Mas a mensagem nem chegou, o que me deixou nervosa. Involuntariamente coloquei o polegar na boca, mordendo a unha, enquanto rolava pelos contatos do meu w******p. Entrei no contato do Flávio — o traste do meu ex —, mas ele também não estava online e não podia me dar as informações que eu queria.
A história era tão longa que, se eu precisasse explicar, nem saberia por onde começar.
Tudo o que eu tinha na vida era meu pai, Douglas — ou DG, como todo mundo o chamava — e meu irmão Vitor Hugo, o VH. Minha mãe não aguentou a barra do parto e se matou algumas semanas depois que eu nasci, por causa da depressão. A gente morava no morro do Pavãozinho, meu pai trabalhava como servente de pedreiro e minha mãe era professora. Até acontecer todo o lance com ela e o meu pai ficar oficialmente sozinho com dois filhos pequenos pra criar… e pra piorar, quando eu estava perto de completar um ano, fui internada às pressas com problemas pulmonares.
Até hoje sofria com essas coisas, mas eu sei que, se meu pai não tivesse feito o que fez, eu não estaria aqui pra contar a minha história. Na verdade, nem foi ele quem me contou tudo. Quem sempre falava era o fofoqueiro do meu irmão, que já entendia um pouco da vida quando eu nasci.
Meu pai se envolveu com o tráfico do Pavãozinho porque era amigão de infância do chefe da época — e porque precisava bancar os custos do hospital e dos remédios pra me manter viva.
E depois que começou, ele só cresceu. Quem entra nessa vida raramente consegue sair. Ele assumiu o comando quando o antigo chefe morreu — eu devia ter uns dez anos —, e como era o braço direito do cara, a responsabilidade caiu no colo dele.
Eu não gostava muito disso, mas não falava abertamente, porque sabia que era uma coisa que chateava o meu velhinho — e também o meu irmão, que seguia os mesmos passos. Não queria ser ingrata por todo o esforço que eles fizeram e ainda fazem por mim, então eu preferia ficar na minha, bem quietinha.
Quando fiz quatorze anos, conheci o Flávio, o famoso Neguinho. Ele era só um menino do morro do Cantagalo, que faz parte do PPG junto com o Pavão e o Pavãozinho. Não deu outra: me apaixonei de cara no menino e engravidei do meu primeiro filho aos quinze anos.
Meu pai quis matar o Flávio — e chegou a ameaçar mesmo —, mas ele prometeu que ia ser alguém e ia honrar o filho e a mulher dele. Eu tinha vontade de vomitar só de lembrar. O Flávio realmente me amou, eu acreditava nisso, mas ficou tão fissurado nessa história de “honrar” que entrou pro crime e nem percebeu quando já estava assumindo o comando do morro do Cantagalo.
Ele era muito novo quando aconteceu, e ali foi o que eu chamo de “o começo do nosso fim”. Eu estava esperando minha princesa, nossa segunda filha, e o traste começou a fazer jus ao posto de “Dono do Morro”: pegava várias, vivia em baile e achava que estava arrasando.
Nunca aceitei nenhuma traição, mas ele jurava de pé junto que era mentira — e como eu não tinha nenhuma prova, enrolei nisso por uns dois meses. Até realmente pegar o desgraçado dando papo pra outra na rua. Aí foi um inferno.
Peguei minhas coisas e meti uma conversa séria com ele, com meu pai e com meu irmão. Nenhum dos três ousou me contrariar, pois sabiam que eu conseguiria de qualquer forma. Fizeram as minhas vontades de acordo com o que pedi: uma casa em Ipanema, fora do morro, pra eu poder criar meus filhos sem me preocupar o tempo inteiro com a segurança deles.
Os três me davam toda a assistência necessária, mas eu nem gostava muito dessa parada de dinheiro sujo. Trabalhava pra caramba pra conquistar o meu com o suor do meu rosto. Tudo o que eu pedi foi um lar pra poder começar minha vida — e eles não pouparam um tostão pra me colocar no melhor apartamento de Ipanema, que ficava a uns minutinhos dos morros.
Joguei o celular com força em cima da cama, massageando a cabeça com a ponta dos dedos. Já estava sentindo que seria um dia cheio.
Minha expressão mudou no mesmo segundo em que ouvi passos rápidos e pequenos no corredor, vindo em direção ao meu quarto. Tratei de colocar um sorriso no rosto — não ia deixar que eles se preocupassem.
Pedrinho colocou a cabeça pra dentro da porta, com os olhinhos vermelhos de sono.
Thaís: Oi, amor.
Pedro: Oi, mãe. Você não dormiu?
Thaís: Dormi, mas perdi o sono — abri os braços pra que ele pudesse deitar do meu lado e o enrolei no cobertor, abraçando —. O que aconteceu?
Pedro: Acordei assustado com o barulho — falou baixinho, me olhando. — Será que o meu pai tá bem?
Beijei o rosto dele, dando um sorriso fraquinho.
Thaís: Tenho certeza que sim. Ele é fortão, sabe se virar.
Pedro: Igual eu — se gabou, me fazendo rir. — A Vitória tá roncando lá no quarto dela. Eu ouvi do corredor quando tava vindo pra cá.
Thaís: Ela tá cansada. Você devia estar fazendo o mesmo.
Ele deu de ombros.
Pedro: Mesmo assim, eu vou falar pra todo mundo que ela ronca.
Segurei o riso. Nessas horas era difícil ser mãe de dois.
Thaís: Você não vai fazer isso, porque sabe que ela vai ficar chateada.
Pedro: Eu não tô nem aí.
Thaís: Pedro Antônio... — alertei. — O que seu avô disse da última vez que vocês se viram?
Pedro: Que eu tinha que cuidar da Vitória e blá blá blá — ele rolou os olhos. — Mas ela é chata.
Thaís: Você também é, garoto! — perdi a paciência. — Anda, bora fechar o olhinho e dormir porque amanhã você tem escola. E se ficar pegando no pé da sua irmã, eu conto pra ela que você dormiu comigo duas vezes essa semana, e tenho certeza que ela vai sair contando pra todo mundo.
Pedro: Ah, manhê! — reclamou.
Thaís: Não dormiu ainda por quê? Bora, bora!
Ele bufou, mas fechou os olhos, se ajeitando melhor dentro do meu abraço.
Perdi o sono de vez, e quando percebi que o Pedro estava apagado, levantei e comecei a arrumar as coisas das crianças pro dia seguinte.