A arena secundária estava vazia àquela hora. Sombras dançavam nas paredes com o balanço das tochas. Selena se posicionou no centro, amarrando os cabelos no alto da cabeça.
— Sem pena, hein. Hoje eu tô no modo guerreira.— Provocou Selena
—Você sempre está.
—Mentira. Ontem eu tava no modo v***a.
Ri pela primeira vez desde que voltei no tempo. Selena tinha esse efeito — tirava meu peso por uns segundos. E talvez, naquele novo futuro, ela merecesse uma chance diferente. Uma vida sem ciúme. Sem escuridão.
Nos movemos em círculos. Trocamos golpes leves. Toques de confiança.
—Vai pro ataque, Blackthorn! — gritou Selena, já sorrindo. —Ou vou achar que aquele treino com o bonitão te deixou mole!
—Você não faz ideia…— murmurei.
—Ele é gato, mas tem cara de quem morde.
—Ele morde.
Ela arqueou a sobrancelha.
—Você fala como se soubesse.
Parei por um segundo. O sangue gelou. As palavras escaparam sem querer. Ela riu, achando que era só provocação.
Deixei passar.
Na última troca, Selena girou e me acertou o ombro com força demais. O impacto me jogou no chão.
—m***a, Aurora! Eu não quis…
—Tá tudo bem — murmurei, sentada, massageando o braço.
Selena ajoelhou ao meu lado.
—Você não tá com reflexo de ômega. Tá com reflexo de alguém que não quer lutar.
—Talvez eu só esteja cansada.
—Ou talvez tenha alguma coisa aí dentro que você tá escondendo.
Levantei antes que ela insistisse mais.
—Amanhã temos prova de agilidade. É melhor descansar.
Ela não forçou. Apenas assentiu e me seguiu para o dormitório.
Na ala feminina, os quartos eram divididos por duplas, mas por intervenção dos Deuses — ou talvez da própria Lua — minha companheira de quarto ainda não havia chegado. Selena me lançou um olhar enviesado antes de entrar no dela.
—Se precisar... tô do outro lado da parede.
—Se eu bater, você morde?
—Se bater, eu arrombo a porta.
Sorri. Selena sorriu de volta. E por um instante, acreditei nela.
Mas aquela noite, mais do que qualquer outra, me mostrou que confiança era um luxo que eu não podia me permitir.
Deitei na cama com o corpo dolorido. O lençol áspero arranhava a pele como memória. E ela veio — como sempre.
Aquela noite. A chuva. A dor. O grito sufocado de um nome que eu amava e odiava na mesma medida.
"Dante..."
Não era só o abandono. Era a promessa que ele fez.
“Eu vou te proteger, Aurora. Até o fim.”
E ainda assim, quando chegou o fim… ele escolheu não estar.
Fechei os olhos. A raiva ainda queimava, mas junto dela… o vínculo. A ligação que a Lua não me deixou apagar. A marca podia ter sumido, mas o elo? Ainda vibrava em mim como corrente viva.
No dia seguinte, a tensão aumentou.
O pátio da academia estava lotado. Lupinos de todos os clãs se preparavam para o teste de agilidade. Entre eles, ele. Dante. Encostado na parede de pedra, braços cruzados, olhar como tempestade.
Fingi não ver.
— Lembra o que te falei — disse Selena, do meu lado. — Agilidade é sobre antecipar, não sobre correr.
Assenti e Helena piscou.
A prova começou.
Um circuito de obstáculos: plataformas em queda, lâminas giratórias, paredes inclinadas. Na minha primeira vida, falhei na terceira etapa. Uma queda f**a. Um tornozelo torcido. Um instrutor que riu da minha fraqueza.
Dessa vez, não.
Avancei como se meu corpo já conhecesse o caminho. Pulei, deslizei, rolei. E quando a lâmina passou a centímetros do meu rosto, sorri.
Eu ia vencer.
Na última parte, vi algo estranho.
Selena hesitou. Um obstáculo giratório prendeu o pé dela por um segundo. Ela não gritou. Mas eu vi.
Vi o medo.
Ela caiu. m*l rolou para escapar da próxima rotação. E por um instante, nossos olhos se encontraram. Não havia ódio ali. Nem inveja. Só… fragilidade.
Terminei a prova entre os primeiros. Quando voltei para ajudar, ela já estava sendo atendida.
—Foi só um susto —, disse. —Minha perna vai virar mingau, mas eu ainda consigo correr se for pra dar na sua cara.
—Não brinca com isso —, falei. — Eu quase voltei no percurso por sua causa.
Ela me olhou, surpresa.
—Você faria isso?
—Faria.
E fiz, em outra vida. Voltei tantas vezes. Por todos. Por ela. Por Dante. Pelo meu filho.
Mas agora? Agora, eu tinha que escolher por mim.
Helena se aproximou de nos duas e disse:
— Orgulhosa de vocês
Eu e Selena rimos, era difícil não se contagiar com a vibe de Helena, que também tinha acabado a prova em uma boa posição.
Juntas voltamos para o alojamento, onde Helena dormiu logo depois do banho, mas eu não, eu fiquei ali rolando na cama.
Sem conseguir dormir , fui até a biblioteca da ala oculta. Ninguém frequentava aquele lugar depois da meia-noite.
Mas eu precisava rever. O mapa da arena final. As marcas. Os túneis. As rotas de fuga. Se eu quisesse mudar o futuro, precisava lembrar do caminho até ele.
Mas alguém já estava lá. Dante.
Sentado na penumbra. Lendo um antigo tomo de estratégia. Ele não se mexeu.
— Seguindo meus passos, Aurora?
— Evitando seria o certo a dizer.
— Não parece.
— Não me importo com o que parece ou não para você.
Ele fechou o livro. Se levantou.
— Por que você me incomoda tanto?
— Eu? Acho que o problema é que você me vê como uma igual.
— Desde o primeiro dia, você me irrita. — Ele apontou para mim. — E não é normal.
— Talvez seja culpa da sua consciência.
Ele riu. Um som seco.
— Não tenho uma dessas.
— Ainda.
Ele se aproximou. Um passo por vez.
— Tem algo em você…
— Cuidado. Isso pode ser um sentimento.
Ele parou a centímetros de mim. O cheiro dele. A presença. A tensão elétrica no ar.
— Eu não quero sentir nada por você — ele disse. — Mas meu lobo quer rasgar qualquer um que chega perto.
Eu não respondi. Não precisava. A conexão estava crescendo. Mas não podia florescer. Porque se florescesse... morreria com sangue. E, dessa vez, não seria o meu.
Fiquei ali, parada, olhando para a porta que ele tinha acabado de atravessar.
Ainda dava pra sentir o cheiro dele no ar. Cedro e raiva. Desejo e perigo. A p***a do vínculo pulsando onde não devia.
Mas então... dei de ombros.
— f**a-se.
Peguei o mapa. Tracei com o dedo as rotas que me levaram à morte da última vez. Revisei saídas, falhas, túneis m*l iluminados. As armadilhas que vi abrirem na hora errada. As pegadas que me traíram. A curva exata onde me deixaram sozinha.
Estudei até meus olhos arderem. Até meu corpo implorar por descanso.
Muito depois — talvez horas — levantei, guardei o livro e voltei pro alojamento. O corredor estava escuro, silencioso. A porta do meu quarto entreaberta. Helena dormia virada pro outro lado, respirando fundo.
Deitei devagar. O colchão afundou com o peso do meu cansaço.
Fechei os olhos.
Mas, dentro de mim, nada descansava. Nem Nyra. Nem a memória dele. Nem a certeza de que o fim já tinha começado.
E eu ia estar pronta.