Um
Era uma tarde ensolarada no pequeno assentamento onde Amélia vivia e uma grande tristeza se abatia no seu coração. Ela se encontrava parada em frente a três túmulos, cujos corpos estavam enterrados em sepulturas enfileiradas. Ali jaziam seus pais e sua amada avó. Enquanto as memórias do dia do enterro de seus pais percorriam sua mente, ela se vê ainda criança, sentada no colo de sua avó Cândida, que chora copiosamente, esta por sua vez, sentada em um banco de madeira. Amélia nada dizia, somente sentia a dor de nunca mais poder abraçar seu pai e sua mãe, novamente.
15 anos antes
— Dona Cândida! — disse uma mulher já em idade avançada. — Que tragédia foi essa, mulher? Realmente, a vida do pobre é muito difícil nesse país! — lamentou ela. — E a Amélia? Agora a menina só tem a senhora pra cuidar dela.
— Pra você ver, mulher! — Cândida, chorando, dirigiu-se à amiga. — Os pois foram para a cidade grande justamente para dar uma vida melhor pra menina, agora os dois estão mortos e eu não tenho como dar a ela uma vida melhor. Ainda mais com o salário de miséria que ganho, minha irmã!
Ela então interrompeu o seu lamento ao ouvir o padre dizer as palavras tradicionais em um enterro, os pais de Amelia desceram à sepultura. A menina não chorava, apenas observava os caixões descendo para onde ela não podia acompanhar. Mas uma coisa, apesar de ter apenas sete anos de idade, ela tinha absoluta certeza. Nunca mais voltaria a ver seus pais de novo e que teria de aprender a conviver com aquela dor, mas como toda criança de sua idade, Amélia não deixava de pensar nos porquês.
As indagações eram como um enxame em sua mente. As perguntas sobre o motivo de tudo aquilo estar acontecendo. O que ela havia feito de errado para estar passando por aquela verdadeira tempestade? E por que seus pais a deixaram sozinha, sabendo que ela iria sofrer por sentir a falta deles? Então, abraçou sua avó com toda a força que tinha, o medo de perdê-la era grande, principalmente porque sabia que estaria completamente sozinha no mundo caso isso acontecesse.
***
Já ao cair da noite, Amélia e sua avó estavam na pequena casinha feita de p*u-a-pique e coberta com folhas de palmeiras. A casinha tinha apenas um quarto pequeno e um compartimento que era dividido entre sala e cozinha. Os móveis eram os mais rústicos possíveis sendo eles, uma prateleira improvisada feita com tábuas de, um suporte aonde ficava um velho filtro de barro para água, assentos feitos em couro e madeira chamados de tamboretes e um fogão a lenha que ficava perto da porta dos fundos. E para finalizar, uma mesa simples também feita em madeira.
Não havia energia elétrica na humilde casa de Amélia, então sua avó acendeu as lamparinas movidas a querosene, colocando uma na sala e outra no quarto. Sem dizer muita coisa, a velha mulher ferveu um pouco de leite e pegou alguns biscoitos, depois deu para que a neta comesse e assim não dormiria com fome.
— Come, minha filha. Amanhã a vó vai ver o que faz pra gente, tá? — disse a velha mulher, com os olhos imersos em lágrimas.
Amélia não respondeu. Aliás, desde a hora do enterro que a menina não abria a boca para dizer uma só palavra, o que preocupava a sua avó, porém, Cândida decidiu deixar que ficasse quieta. Ela entendia que estava sendo tudo muito difícil para a menina e que ela não podia obrigar a pequena, a nada.
— Amanhã eu vou avisar lá escola que você não vai. Mas depois de amanhã vai retornar para a escola. Era isso que seus pais queriam!
Dado o veredito, Cândida apenas esperou que Amélia terminasse a sua simples refeição e a deitou na rede, bem ao lado da cama estreita. A menina abraçou o lençol e depois que sua avó apagou a luz, ela então começou a chorar baixinho, mas não tão baixo, pois sua avó a ouvia suspirando. A mulher nada podia fazer para aplacar aquela dor. Ela poderia dar tudo de si para que a neta pudesse ter uma vida melhor, mas a dor da perda, essa ninguém poderia curar.
***
Naquele mesmo ano, uma família muito rica de Oslo – Noruega, estava tendo um conflito interno com seu único filho homem. Os Gandersen não se conformavam com os caminhos pelos quais Thor resolveu seguir. Principalmente Soren Gandersen, seu pai.
— Eu não posso admitir que meu filho e herdeiro venha dizer que vai se tornar um músico! E tudo isso por causa daquele maldito violino que seu pai deu a ele de presente quando era criança! — berrava o homem, acusando sua esposa, Norabel.
— Acho que você está exagerando, Soren. Thor pode não ter seguido a carreira que você sonhou para ele, mas eu acredito no meu filho e sei que irá se tornar alguém muito importante e não será esse seu m*l agouro quem o irá impedir! — disse a mãe, defendendo seu filho.
— Se tornar importante? Norabel ele me desafiou. Disse que não importa o que eu faça, ele vai seguir na música sim. Não acha que eu devo ficar preocupado? E se ele fracassar nisso? O que será do futuro de nossa família? — insistia o homem. — Eu sou o dono do maior hospital de residência do país e Thor deverá me suceder. Ele será o próximo CEO e também o melhor cirurgião, assim como o pai dele!
— Acho que você deve esperar. Deixa o seu filho agir da forma que ele escolher e dê uma chance a ele. Se não conseguir, mostre que você está do lado dele e que irá ajuda-lo, independentemente do que acontecer!
Soren riu de forma irônica e voltou-se para a mulher.
— O seu filho abandonou a faculdade de medicina já no segundo ano. Ele já está com 23 e terminado essa bendita faculdade de música. Bom, amor, se existe uma hora para o seu marido começar a ficar preocupado, eu acho que essa hora chegou! — disse ele. — Eu deveria ter sido mais duro com você e ter tido outro filho, mas como isso não aconteceu, vou deixar uma coisa bem clara aqui. Se Thor não parar com essa utopia ridícula e passar a honrar o nome da nossa família, eu irei deserdá-lo e não terá direito a um centavo meu!
— Você não vai fazer isso! — retrucou Norabel.
— Pois pague pra ver!
O casal pensou que estivesse sozinho, mas atrás da porta, o rapaz escutava tudo. Lágrimas desciam de seus olhos brilhantes, ele não queria ficar de m*l com o seu pai, mas também não queria abrir mão de seus sonhos.
— Um dia você me disse que nós somos livres para escolher aquilo que achamos ser o melhor para nós, vovô. Mas o meu pai não pensa assim. — sussurrou em voz baixa enquanto olhava o retrato de seu falecido avô, que havia partido um ano antes.
Thor desceu as escadas correndo e antes de sair pela porta em direção ao jardim, acabou esbarrando com o motorista da família, o velho senhor Olsen. Um sueco que trabalhava para eles desde muitos anos.
— O que faz aqui, jovem rapaz? Pra que essa pressa toda? Hahaha.
— O meu pai!
— E o que tem ele? Brigou com você de novo? — novamente, o velho homem perguntou.
— Ele quer que eu pare de tocar e que seja como ele, uma pessoa que só pensa em dinheiro e nada mais. Mas eu já decidi, vou seguir a carreira que escolhi e ponto final, mesmo que ele me odeie! — disse Thor, fechando os punhos.
— Você está errado, meu garoto. O seu pai pode ter aquele jeito duro de se comportar, mas ele só está pensando no seu futuro. Ele acha que a música não fará de você um grande homem, que é exatamente o que ele quer que você se torne. Tenho certeza de que ele não te odeia!
— Mas, e eu? O que eu quero me tornar não importa para ele?
— Escuta, meu jovem. — disse o velho segurando nos ombros do rapaz. — O destino de cada pessoa é como uma estrada que em vários momentos, durante a nossa caminhada, essa estrada se divide em dois caminhos. E é aí que devemos ser sábios ao escolher por qual devemos seguir, todavia, nem sempre o caminho que nos agrada, é o que nos fará bem.
— Mas, e se for exatamente esse? E se o caminho pelo qual meu coração deseja seguir, for o caminho certo?
— Então você é um rapaz de sorte. — respondeu, bagunçando os cabelos finos e cacheados do jovem.
Thor olhou para o horizonte e começou a pensar no que fora dito por Olsen. Era muito interessante tudo aquilo, mas no fundo ele sabia que a música era o que o faria feliz e ao mesmo tempo fazê-lo se tornar o grande homem que seu pai tanto desejava que ele se tornasse.
— Você está certo, Olsen. Agora a pergunta dentro de mim é... eu sigo o conselho do meu pai e me torno um médico de sucesso como ele, ou, simplesmente deixo ele falando sozinho e faço o que meu coração deseja? Me torno um Maestro famoso? O que devo fazer?
— A resposta para essa pergunta, meu jovem, apenas você poderá descobrir! — sugeriu o velho homem. — Bom, agora eu preciso ir, pois o dever me chama!
Thor sorriu em resposta ao seu velho amigo, todavia se ele seguir os conselhos do pai, ele poderia expandir os negócios da família, se casar com uma mulher fútil, filha de algum bilionário do vale do silício e ser feliz nos negócios, mas infeliz no amor. Tendo também que recorrer a afetos pagos para satisfazer suas necessidades físicas, no entanto, um futuro de incertezas e muitas aventuras poderiam estar à sua espera caso escolhesse o contrário. Esses eram os pensamentos em sua mente naquele momento.
***
Dias atuais
De volta à realidade presente, Amélia suspirou de dor por estar enterrando sua amada avó. Agora sim, ela estava mesmo sozinha.
Depois que sua avó foi enterrada, a jovem voltou para a mesma casa, mas dessa vez as coisas estavam um pouco mais organizadas. Cândida havia conseguido uma aposentadoria por idade e no lugar do velho fogão a lenha, um a gás foi colocado. Ela também comprou uma geladeira e cama para a neta. Amélia havia terminado o ensino médio e conseguiu um emprego no único supermercado da pequena cidade onde morava, mas sabia que deveria deixar tudo aquilo para trás. Amélia estava se reparando para ir embora da cidade, ir em busca de um futuro melhor para si, pois ali, tal conquista não seria possível.
Respirou profundamente. Abriu a geladeira, mas não estava a fim nem de comer e nem de preparar nada, só desejava mesmo dormir. Foi para o quarto, deitou-se na cama e pegou no sono, despertando somente no dia seguinte.
— Bom dia, seu Manoel. Desculpa por eu ter chegado atrasada hoje. — falou, sentando-se ao balcão do caixa.
— Bom dia, Amélia. Tudo bem, mas não precisava vir trabalhar hoje, ainda está de luto recente. — disse o homem, sendo bem gentil.
— Obrigada, mas trabalhar vai fazer com o que eu me sinta melhor. É difícil ficar naquela casa sem a minha avó por perto, sabe?
— Entendo. Faça o que for melhor pra você!
***
Os dias foram se passando, até que numa manhã de segunda-feira, antes de Amélia sair para o trabalho, o correio entregou uma correspondência a ela. “O que será isso? “Pensou, segurando o envelope amarelo. “Está no nome da minha avó!”
Abriu a correspondência e ao fazê-lo, sua expressão mudou.
— Mas o que significa isso? — indagou consigo mesma, conferindo se havia lido certo. — Como você fez isso, vovó?
A correspondência se tratava de uma cobrança feita por uma financeira, onde constava uma dívida enorme em nome de Cândida. A dívida teria sido feita para custear um suposto tratamento do tio de Amélia, um filho de sua avó que nunca se importou com a família. Caso a dívida não fosse paga, a casa deveria ser passada para a empresa credora. Desesperada, Amélia comprou um crédito para o celular e entrou em contato com seu tio, mas foi a esposa quem a atendeu.
— Alô, tio Antônio?
— “Antônio não está. Quem quer falar?”
— É a sobrinha dele, Amélia. — respondeu. — É você, Soraia?
— “O que você quer, Amélia? Antônio não nada pra falar com você!”
— Já entendi. Mas avisa pra esse inútil que a vó morreu e que a dívida que ele certamente a fez fazer, foi cobrada. Por causa desse inútil eu vou morar na rua, a sobrinha dele!
— “Escuta aqui, Amélia, meu marido não tem nada a ver com dívida de ninguém não. Se sua avó se endividou, foi culpa dela. A gente não pode fazer nada!”
— Eu sei. Pensa que eu não fiquei sabendo que vocês compraram um carro? — agora, a jovem diz, chorando de raiva. — O Antônio mentiu pra vovó, dizendo pra ela que estava doente. Por isso ela fez a dívida, agora ela tá morta e vocês estão andando de carro pela cidade. Mas vai ter volta, Soraia, Deus é justo!
Sem ter argumentos, Soraia desligou o telefone, deixando Amélia no vácuo. A jovem não tinha muito o que fazer a não ser esperar por um milagre.
***
Cartas e mais cartas de cobranças chegavam na casa de Amélia, nos dias que se sucederam, até que um dia chegou algo que a fez sentir esperança. Uma amiga chamada Camila Alves. Camila fora amiga de infância e colega de escola de Amélia, mas seus pais se mudaram para a capital quando a garota completou dez anos de idade, desde então elas nunca mais se viram novamente. Quando a moça chegou em sua casa, Amélia teve uma baita surpresa. A menina magricela e de cabelos avermelhados, agora havia se tornado uma linda mulher, elegante e muito simpática.
— Camila, minha amiga. Como você mudou. — disse ela, dando-lhe um abraço apertado. — Você sumiu por quê?
— Ah, amiga, eu estou morando fora do Brasil, agora. Vivo em Roma!
— Nossa, que bom. Desde quando você vive lá?
— Desde os meus quinze anos. — Camila respondeu. — Fui pra lá com uma tia minha, hoje eu trabalho como enfermeira em um hospital da cidade.
— Que sorte a sua. Já eu...
— O que foi, amiga? — perguntou Camila, ante ao semblante descaído de Amélia. — Eu soube do falecimento da dona Cândida. Não deve estar sendo fácil pra você!
— O pior não é isso. É que...
Camila pediu que Amelia lhe contasse o que estava acontecendo e a moça desabafou. A ruiva ficou horrorizada com o que Antônio havia feito com a própria mãe e sobrinha. Agora a pobre moça poderia perder a casa onde vivia e tudo por causa da irresponsabilidade do tio.
— Isso é terrível, mas não se preocupe, amiga. A gente vai dar um jeito nisso, ouviu bem? Mas sozinha você não está! — disse Camila, afirmando que ajudaria Amélia.
***
Na manhã seguinte, Camila foi bem cedo até a casa de Amélia. Ela havia passado a noite num pequeno hotel da cidade, mas não dormiu direito. A ruiva foi até sua amiga para lhe dar uma ideia, que para ela, seria a melhor de todas.
— Como assim, vender a casa para o seu Manoel? Camila, essa casa está como garantia de uma dívida e eu nem sei se ela será o suficiente para quitar tudo! — disse Amélia.
— Então. Acontece que eu contei para o seu Manoel o que seu tio fez a você.
— Você fez o que? Camila! — exclamou Amélia.
— Calma! O seu Manoel disse que arruma o dinheiro pra pagar a sua passagem, assim ele paga a dívida da sua avó e fica com o terreno!
— Espere aí. Passagem? Passagem pra onde?
— Você vai vir comigo para a Itália, amiga. Eu não vou deixar você aqui sozinha!
Camila explicou para Amélia que a vida dela poderia mudar muito, caso fosse viver em Roma. A jovem hesitou dizendo que não tinha passaporte e que sabia dos riscos de se viver ilegal num país estrangeiro. Em contra partida, Camila revelou que sua tia, que era naturalizada no lugar, poderia assinar a carta que dava a Amélia o direito de um visto temporário, assim ela teria tempo de se organizar, até juntar algum dinheiro. Com muito custo a garota acabou aceitando e as duas fora falar com o dono do mercado.
— Bom, eu compro a dívida e como lhe tenho muita consideração, Amelia, vou lhe dar dez mil reais para que possa cuidar da sua vida e buscar um futuro melhor, pois você merece, minha filha. — disse o senhor Manoel.
— Mas seu Manoel, dez mil é praticamente o valor da metade da dívida e a casa não chega a valer isso! — contestou a jovem.
— A casa vale sim, minha filha. Pode deixar que eu não vou me desfazer do terreno não. Quem sabe um dia você não o compra de volta?
— Está bem, obrigada, senhor Manoel. O senhor é um anjo na minha vida! — ela agradeceu, dando um beijo estalado na bochecha do senhor.
Com tudo, pelo menos parte de tudo, organizado, Amélia já podia pensar no próximo passo que daria. Pela primeira vez em muitos anos, ela pôde ver um horizonte sem nuvens a sua frente.