CAPÍTULO 1

1386 Words
Atualmente. O pior jeito de se iniciar um domingo, com certeza, é fingindo que se importa com a panfletagem do prefeito. Mas, como filha dele, eu não só tenho que fingir me importar como tenho que entregar. A praça central está lotada, a população toda se aglomera para ouvir o discurso. Todos são rostos muito conhecidos. De um lado meu avô, do outro meu ex namorado Victor, e atrás de mim o psiquiatra Manoel, um homem de meia idade, já com alguns cabelos brancos, uma carreira ainda no início, mas uma inteligência perspicaz, que era o ápice de minha atração por ele. Minha sorte, era que ele também era o único profissional da sua área da cidade, sendo assim o nariz torto do meu pai para a sua beleza não adiantou muito. – Doutor. – Digo fazendo uma tola e irônica referência. – Não sabia de seu interesse por política. – Não estamos no consultório Vicky. Aqui sou só Manoel de vários interesses que você desconhece. – Isso inclui café? – Sorrio. – O que quer dizer com isso? Nossos olhares não se desviam um do outro. Os lábios dele se entortam em um sorriso que eu não consigo ver em um relacionamento médico/paciente e isso me deixa levemente excitada. – Vicky, meus panfletos acabaram. – Victor está parado um pouco para o lado, seu tom de voz está levemente alterado, mas olhando os olhos de Manoel não consigo desvendar se está com raiva ou enciumado. – Verônica! – Manoel, esse é o Victor. Victor esse é o Manoel. – Suponho que seja O Victor. Manoel não poderia me deixar mais constrangida. Não que ele havia falado algo tão revelador, estava segura por um contrato, mas qualquer um notaria que ele sabia bem mais do que só o nome de Victor. – Sim. – Respondo brevemente. – Doutor. – Victor está irritado, agora consigo enxergar. Manoel sorri novamente e com as mãos no bolso caminha um pouco mais para frente, inicia uma conversa com uma jovem de sua idade, o que me deixa levemente enciumada. – O que foi isso Victor? Qualquer outra pessoa tem panfletos. – Ele é seu médico Vicky. Você estava flertando com ele. – Não estava flertando. Minto. – Estava sim. E o que foi aquilo? “O Victor”? Ele tenta imitar a voz do Manoel o que mais rir. – Ele é meu terapeuta. Falamos sobre muitas coisas. – Sobre mim também? – Não fique sendo arrogante. Falo até sobre meus traumas de infância. Quando Toddy morreu, por exemplo. – Você está me comparando ao seu amigo imaginário? A resposta formula em minha mente, mas não consigo reproduzir uma única fala. Uma família saí da mercearia carregando sacolas e mais sacolas. Eles vão em direção a uma Kombi, tão velha quanto meu pai. Estão alheios a qualquer coisa, são quase sete crianças, todas bem sujas, algumas cicatrizes visíveis. Eu nunca os vi. E essa cidade é pequena demais para não se conhecer alguém tão peculiar. Eles seguem fielmente o homem, que deve ser pai das crianças e marido da mulher, uma viciada com um bebê no colo. Chego a ficar arrepiada ao avistar aquela cena. Olho em volta e percebo que sou a única a observa-los. Quando foi que as pessoas param de olhar em volta? Uma das crianças, uma garotinha que se encontra na penúltima posição na fila, se vira e me encara com os olhos brilhando e a boca se abre como se tentasse falar algo. Caminho alguns metros para não perder a garotinha de vista e é então que ela caí. Sua queda derruba as duas crianças que estão na sua frente. Ela começa a chorar. Se encolhe já prevendo o que viria. Tudo acontece rápido demais, em um piscar de olhos a garotinha está se levantando e no outro está no chão novamente com a mãozinha na boca que sangra com o soco que o homem lhe deu. Eu me encolho a cada tapa que o homem desfere na garotinha e então ouço as pessoas comentando sobre o fato, mas se recusando a fazer algo para impedir, o que me revolta. Não sou o melhor exemplo de pessoa bondosa, mas aquela cena me revoltava fez querer ajudar, mesmo que as consequências fossem irreversíveis. – Verônica onde você está indo? – Igor, meu ex-namorado, agora melhor amigo, segura meu braço e me impede de andar na direção do espancamento. – Isso não é da sua conta. – Não é dá minha conta? – Indago revoltada. – Então é dá conta de quem? – Sei lá! – Exclama Igor. – Dá policia, acho. – Então eu vou chamar a policia. Saco o celular e disco o número da emergência, mas não completo a ligação, em um momento de distração de Igor começo a correr a tempo de entrar na frente da garotinha e tomar meu primeiro chute por ela, logo sinto minha costela ardendo e o ar faltando em meus pulmões. – Verônica! – Ouço a voz de Igor, mas não olho para ele. Estou ocupada demais encarando belos, mas desprezíveis, olhos verdes. O homem parece ter por volta dos quarenta anos de idade, ele é magro, mas forte, e posso dizer por ainda sentir a dor que seus chutes me causam, apesar do olhar e atitudes de psicopata, ele não deixa de ser levemente atraente. – Ora, ora, o que temos aqui? – Ele encara meus olhos e levanta uma das mãos como se para me tocar, me arrasto para trás me afastando dele e então me ponho de pé novamente. – Você não pode fazer isso com ela! – grito determinada a salvar a garotinha. – Eu vou chamar a policia! – Pode chamar. – A mulher, que é igualmente suja e com o olhar vidrado fala colocando a mão no ombro do homem. – Fale que quer falar com o detetive Vicente. – Cale a boca. – Ela se cala assim que é repreendida, o homem passa a me encarar novamente. – E você garota, de o fora daqui. – Vou sair se você parar de bater nela. – Continuo imóvel. Lágrimas escorrem pelo meu rosto, com as mãos tremendo pego o celular e disco o número da policia, desta vez completando a ligação. O homem coloca o braço nos meus ombros me assustando e fazendo com que eu derrube o celular. – Porque você está fazendo isso com ela? Ela é só uma criança! – Não é dá sua conta. – O homem olha nos meus olhos, como se visse algo diferente. Automaticamente levo a mão nos olhos verificando se tem alguma sujeira. Ele sorri maliciosamente. – Ela é forte e conhece as regras, se errou é punida. Ele desfere mais um soco nas costelas da garotinha e então limpa o suor da testa como se sua missão estivesse cumprida ali. A mulher está agitada, olhando para todos os lados, com medo, mas o homem parece calmo e frio demais para se importar com as testemunhas. – Vamos embora! – A mulher olha do marido para mim, esperando uma resposta, mas ele nada fala. Depois de um tempo sorri e segura meu braço com toda a força que pode. Sinto o sangue parando enquanto meu braço perde a cor. – Ela não chamou a policia. E além do mais essa ruivinha merece uma lição para aprender a não se meter na vida alheia, essa é a regra e vale para todos, sem exceção. Tento me soltar das mãos daquele homem, mas ele é bem mais forte que eu. Ouço Igor gritando por mim e uma sirene ao longe. – Verônica! – Igor parece tão assustado quanto eu. – Quem é ele? – Meu namorado. – minto na tentativa de dissuadir aquele homem. Igor e eu terminamos há anos. – Se afasta de mim! – Ora essa, foi você que veio até mim ruiva. – sorri. – E agora não posso mais deixar você ir. Igor corre em minha direção, mas seus amigos o seguram e o impedem de qualquer ação. As outras pessoas só olham para mim com um olhar de pena, mas não estão dispostas a ajudar. – Qual a emergência? – a atendente da policia fala em um celular próximo dali e ouço a voz de minha mãe pedindo por socorro. É tarde demais. A mulher segura meu braço e me arrasta com a ajuda do marido até uma van da cor cinza. Todas as crianças entram, ouço o motor soar e a van começa a andar. – O que você está fazendo? Me solta! Você não pode me levar assim! Alguém me dá um soco e eu sinto minha visão se escurecer até que se apaga de vez.
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