CAPÍTULO 2

2736 Words
Meus pulsos doem assim como meus tornozelos, costela e olho direito. Não sei muito bem onde estou e nem como vim parar aqui, apenas me lembro de querer salvar uma garotinha a qualquer custo. Minhas mãos estão amarradas em uma viga do teto, do que parece ser um quarto de um menino, um quarto estranho que foi dividido ao meio por uma estranha parede de madeira. Fora esse fato, reparo que o quarto é bem arrumado, mas não é habitado, pois não há pertences pessoais espalhados por ele. Não há sapatos no chão, pijama pendurado na parede e nem um computador, todos temos computador hoje em dia. Há apenas uma cama, um guarda roupas e uma cômoda velha, e claro que também há um assustador espelho gigante em uma das paredes. É difícil saber quanto tempo passou desde que fui sequestrada. Ninguém, além daquele homem, entra no quarto e quando ele entra é apenas para me bater em silencio. Tento me soltar, mas é em vão, os nós foram muito bem dados e seria impossível me soltar sem ajuda. Fecho os olhos por um instante, respiro fundo e sinto um fedor insuportável de água sanitária e sangue, como se tivesse morrido alguém ali. Quando abro os olhos novamente avisto um garotinho magrelo e sujo me encarando. Ele é o primeiro rosto que não parece totalmente hostil a mim: – Ei... – Tento pedir ajuda, mas o garotinho foge para um canto escuro do quarto, na parede de madeira, e então some. Sua aparição repentina só me faz ficar ainda mais assustada. Não que eu acredite em fantasma, mas essa família é muito macabra e eu não duvidaria de que aqui habitava muito mais do que seres humanos. Nesse momento eu não sei no que acreditar, tão pouco o que vai acontecer comigo. O homem que me sequestrou entra no quarto juntamente com um menino, o mais velho daquela fila, ele deve ter por volta dos quinze anos, é magro e tem cicatrizes horrendas nas mãos. Fecho os olhos esperando um golpe que não vem. Atrevo-me a abrir os olhos e me deparo com os dois parados na minha frente, apenas observando-me com uma expressão impassível, uma expressão carinhosa, o que é ainda mais assustador do que a de raiva: – Verônica você é uma garota muito bonita. – O menino revira os olhos enquanto o homem fala. – Mesmo assim toda machucada. Eu não queria te machucar tanto, não queria machucar ninguém, mas eu não tenho escolha. – Sempre há escolha. – Fique quieta. – Ele me repreende. – Eu não tenho escolha. A culpa é de vocês que nunca obedecem às regras. Eu sou um deus, mereço respeito, mereço tudo o que eu quiser e eu quero você. Eu não vou deixar você tocar em mim, seu nojento. Penso, mas não falo nada. – Tudo. Sem exceções. – Ele parece ler meus pensamentos e como que para me provar que pode me ter começa a passar a mão por minha coxa direita e sobe até antes de chegar em meu sexo. Não consigo me defender, estou amarrada e fraca demais até mesmo para falar, mas ainda assim repito as palavras em pensamento, como se fosse um mantra. Não vou deixar ele me tocar! Não vou deixar ele me tocar! O menino sobe em uma cadeira e corta a corda interrompendo a ação do pai. Meu corpo atinge o chão e sinto meu ombro saindo do lugar. O sequestrador me pega no colo e eu começo a me debater, mas é em vão. Ele é bem mais forte que eu. Ele me deita na cama e continua me devorando com os olhos enquanto me acaricia. Encaro o teto evitando fazer qualquer contato visual. Odeio olhar em seu rosto, por que ele não faz jus ao monstro que o homem é, aqueles olhos são estranhamente ternos. Meu estomago embrulha e me curvo para o lado vomitando no chão. O homem morde os lábios, sinal de que o deixei nervoso e desfere um golpe com um chicote feito de couro, que é o que tem usado para me bater. Sinto o couro cortar as minhas pernas duas vezes e então ele vai embora sem dizer ou fazer mais nada. Essa é a primeira vez que fico deitada depois de ser sequestrada, mas não sinto nada mais do que dor, angustia e pavor. Ainda, para piorar, agora o cheiro no quarto é uma mistura de água sanitária, sangue e vomito, meu próprio vomito. O garotinho, que antes me observava, volta do canto escuro com uma caixa branca com uma cruz vermelha na tampa. Não sei de onde ele veio e nem porque se escondeu antes, mas agradeço com um sorriso enquanto ele se ajoelha e começa a limpar meus ferimentos com gaze e soro fisiológico, ele não fala nada, mas eu me sinto na obrigação de falar algo: – Obrigada. – minha voz está rouca e fraca, assim como eu. – Fique quieta ou ele vai voltar. – O menino é branco demais, como se nunca houvesse tomado um banho de sol. Seus olhos são pequenos e fundos e suas mãos ágeis. Em sua testa há uma cicatrizes enorme e torta, como se alguém, que não um médico, houvesse costurado uma ferida profunda. Ele continua limpando meus ferimentos em silencio e eu reparo nas marcas espalhadas por seu corpo, marcas como as que agora tenho. Desde que cheguei, o sequestrador de olhos verdes me trancou nesse quarto e não me deixa ter contato com nenhuma das crianças ou pessoas da casa, ainda assim eu as ouvia chorando baixo enquanto também ouvia os estalos do chicote, eles estavam sendo punidos assim como eu. Mas aquele menino estava ali pela segunda vez dentro de alguns minutos e parecia diferente das outras crianças, todas suas marcas são antigas, já cicatrizadas e a notável diferença da falta de sol em sua pele é assustadora. Além disso, têm o fato de eu não me lembrar dele na fila macabra, gravei cada rosto e o dele não estava em minha memoria. Quando senti o chicote cortando a minha pele pela primeira vez fiquei com tanta raiva daquela garotinha, raiva por que ela tinha me tocado com aqueles olhos brilhantes e pedido de ajuda silencioso. Mas então eu me lembrei do sangue que escorria da sua boca e de como ela era pequena demais para apanhar daquele jeito. Era egoísmo de mais me arrepender de ter salvo a vida dela, eu não posso me dar ao luxo de arrependimentos, pois afinal faria de novo, mesmo que soubesse das consequências. – Você não deveria ter ajudado. – O menino sussurra interrompendo meus pensamentos. – Ninguém ajuda. – Eu não podia deixar que ela morresse. – o menino fica em silencio. –Como ela está? – Não sei. – Ele dá de ombros. – Eu não tenho contato com eles. – Ele não é seu pai? – Pai? Eu não sei muito bem o que é um pai, mas ele está longe de ser algo parecido, ele está mais para um carrasco. – Ele não te bate? – Eu estou morto. – o menino começa a rir. – Ele não pode me bater. – Morto?! – Falo mais alto do que eu pretendia. O menino corre para o canto escuro antes da porta se abrir. Uma garota de uns treze anos me observa com uma expressão inquisidora, aquele homem aparece e põe a mão no ombro dela de uma maneira possessiva e ela sorri sem jeito, de maneira submissa. Ela também sente medo, assim como eu. Tremo e aperto minha barriga com força, estou com nojo e quero vomitar, mas não tenho nada no estomago. Alguém fecha a porta e depois de um tempo ouço um gemido alto e angustiante da garota. Ele está estuprando-a. Começo a chorar e abraço o travesseiro na tentativa de abafar os soluços e fungadas. O travesseiro tem um cheiro doce com um toque de canela e aquilo me conforta. Adormeço.  Sinto cheiro de panqueca e café. Sorrio enquanto ainda estou de olhos fechados, no fundo torço para que assim que abri-los perceba que tudo não passou de um longo e angustiante pesadelo e que aquele cheiro é um café da manhã o qual minha mãe me prepara todas as manhãs de domingo. Abro os olhos e ainda estou no mesmo quarto, aprisionada, ferida, sozinha e morrendo de medo. Como se não bastasse, aos pés da cama, está o garoto fantasmagórico me observando impassivelmente. – Coma. – o menino me ajuda a se sentar e me mostra a bandeja com panquecas e café. – Ele trouxe para você. – Por quê? – pergunto. – Quem é ele, afinal? Qual o nome dele? – Perguntas demais. – O garoto é misterioso e ignora metade das minhas perguntas. – Você se comportou bem. É uma recompensa. – Achei que só houvesse castigo aqui. – Dou um gole no café. Estranhamente, está uma delicia. – Ele gosta de você. Sammy disse que ele deve ter planos maiores para você. Não sei o que isso significa, mas se Sammy disse deve ser verdade. – Quem é Sammy? – O garoto olha em volta, está assustado. – Não importa. Coma. – Qual é o seu nome? – Pergunto enquanto ele se esconde embaixo da cama. – Ramón. – Ele sussurra segundos antes da porta se abrir. É impressionante como seu timing é perfeito, ele sempre sabe a hora em que o sequestrador vai entrar. – Bom dia. – Ele sorri, o que me deixa enojada. – Creio que está na hora das apresentações. Meu nome é José, essa é Madeleine, minha esposa e essa é Tamires, minha filha que vai te ajudar essa manhã. – Acho que eu não preciso dizer meu nome e nem ressaltar que não sinto nenhum prazer em conhecê-los. – Murmuro irritada, mas sei que estou brincando com fogo. A tal mulher, Madeleine, está bêbada. Suponho que passou a noite inteira bebendo enquanto ouvia a filha sendo estuprada. Atrás dos dois uma garota gordinha, a única que não é desnutrida e também não tem ferimentos recentes, sorri para mim e logo eu sinto que vou me dar bem com ela. – Atrevida! – Madeleine grita e parte para cima de mim com a mão erguida para me dar um tapa, mas José a impede. – Espero que tenha entendido as regras. – Ele me diz enquanto abre uma janela, cheia de grades, e deixa o sol da manhã entrar, ao menos sei que é um novo dia. – Hoje você vai conhecer os outros cômodos da casa. Tamires vai arrumar você. – Me arrumar? – Olho para a garotinha e ela sorri novamente e dá de ombros. Ela parece astuta e revira os olhos a cada palavra do pai. – Não sei se você reparou, mas precisa de um banho. – Madeleine fala ironicamente. Ela morre de ciúmes de mim e não posso evitar achar graça naquilo, afinal eu não estou aqui por opção. – Silencio Madeleine, você está aqui para ajuda-la também. Tamires e Madeleine começam a tirar a minha roupa, contra a minha vontade. José fica observando por um tempo, mas sai com as mãos na cabeça, aparentemente abalado demais para permanecer o que me faz lembrar dos gritos. E se ele resolver fazer comigo o mesmo que fez com aquela garota? Depois do banho supervisionado e de vestir roupas que escondem meus ferimentos sou levada para a sala. José não está na casa e por isso as crianças brincam um pouco mais descontraídas, conversam e tentam ignorar a mãe bêbada no sofá. Há uma televisão na sala, mas reparo que a maioria dos canais tem senhas, liberando apenas alguns desenhos, o que eu não acho r**m, sempre preferi um bom desenho a uma novela mexicana, meus amigos costumam dizer que eu não nasci para o drama, a adrenalina corre no meu sangue. Eu apenas fico sentada, observando aquelas crianças feridas e doentes assistindo a televisão como se fosse o único prazer e não posso deixar de pensar em Ramón, o misterioso garoto que se diz morto. Onde ele vive afinal? Não sei nada sobre aquela família, não os conheço, mas sinto que faço parte dela. Tenho os mesmos ferimentos, o mesmo carrasco, é estranho sentir tamanha ligação com pessoas que acabei de conhecer, mas também é inevitável. – Obrigada. – uma garotinha com a cabeça enrolada em faixas segura a minha mão, reconheço-a imediatamente, foi ela que eu vi sendo espancada na rua, ela que me fez cometer o ato de bondade que me tornou refém. – Você está bem? – Pergunto analisando-a. – Estou. – Ela dá um meio sorriso, mas percebo que não tem nenhum dente. – Eles me levaram no médico. – Como é que os médicos deixaram ele te trazer de volta para casa? – Pergunto sem esperar uma resposta. – Por que não deixariam? – O garoto que cortou a corda fala se sentando do meu lado e pega a garotinha no colo. Imagino que ele seja o mais velho. – Ela caiu de uma escada. – Ele ironiza. – José é um bom ator. Todas as crianças estão olhando para mim. Nenhuma delas parece entender a magnitude da minha presença ali. Não sei o que eles pensam sobre mim, mas imagino que eles não saibam o que é um sequestro, ou a gravidade disso. – Meu nome é Tiago. – O garoto sorri e me estende a mão. – Essa, a quem você ajudou, é a Giovana. – Verônica. – A gente já sabe. – A garota a qual sei que foi estuprada responde com arrogância, mas se apressa em pedir desculpas. – desculpe-me, me chamo Luiza. – Quantas crianças têm aqui? – Pergunto enquanto ando pela casa até encontrar um kit de primeiros socorros. Começo a analisar cada criança, cada ferimento. Não posso ficar parada esperando que elas morram com uma infecção. Preciso ajuda-las. Faço curativos enquanto converso com elas. Algumas não sabem falar, outras não querem. Mas todas elas têm um ferimento. Tiago e Tamires são os mais comunicativos. – Vivas são seis, contando com a Maria. – Onde ela está? – Ela não é filha de José. – Tamires dá de ombros. – Fica trancada a maior parte do tempo na casa do fundo. – Esse, o bebê, é Mateus, ele tem dois anos, ainda não fala. – Apresso-me a analisar o mais novo, mas ele não tem ferimentos e nem cicatrizes, está limpo. – A casa está cheia de câmeras. – Tiago sussurra escondendo a boca atrás de um livro. – Ele vai te castigar. – Eu não me importo. – Digo já sentindo o gosto de sangue em minha boca. – Não tenho medo dele. – minto. – Deveria ter. – ele me alerta. – Todos têm. – Todos não. – Tamires murmura, ela está escondida em um canto, onde a câmera parece não ter alcance. Todos ali parecem ter arrumado um jeito de driblar as regras. – Você sabe que ele não conta. – Tiago retruca. – Nenhum de nós o viu depois daquilo, só Deus sabe o que aconteceu com ele. – Mas... – Todos se calam. Sinto um cala frio percorrer meu corpo e sei que ele está ali. José está de volta e bem atrás de mim. – O que você está fazendo? – pergunta ele no meu ouvido. – Ela precisa de ajuda. – respondo sincera. – Se você me deixar cuidar dos ferimentos deles poupara idas a médicos. José morde o lábio e eu espero o golpe, mas, mais uma vez, ele me surpreende não me batendo. – Faça o que você quiser Verônica, tudo o que você quiser. Todos se entre olham perplexos. José entra no seu quarto e Madeleine o segue com um sorriso travesso e me chuta sem que ele perceba. Ela se ajoelha ao meu lado e puxa meu cabelo com força: – Você roubou meu marido e agora quer tirar meus filhos? – Seu bafo é uma mistura de cebola, menta e cerveja. – Madeleine. – José está encostado no batente da porta com as mãos no cós da calça jeans já com os botões apertos e a ereção crescendo. – Deixe a Verônica em paz ou vai levar uma surra. – Sim senhor. – Ela responde. – v***a. – Sussurra para mim. Eu fecho os olhos por alguns segundos aliviada por não ser eu a mulher que está no quarto com José. Só Deus sabe o que aquele homem faz entre quatro paredes e eu não queria descobrir. Levo a mão na barriga e sinto uma dor insuportável onde Madeleine me chutou, mas não posso me dar ao luxo de sentir pena de mim mesma, as crianças precisam de mim e com o aval de José eu posso ajuda-las sem ter medo de apanhar ainda mais. As crianças me deixam analisar seus ferimentos, mas ninguém fala mais nada, o que só desperta ainda mais minha curiosidade. Quem era a pessoa que não tinha medo de José? Por que eles não falavam no assunto?
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