Todas as manhãs é a mesma rotina, de acordo com as crianças, já faz três dias que estou presa e sempre que acordo sorrio, antes de abrir os olhos, e planejo meu dia. Caminhar, malhar, almoçar bem e depois talvez sair com os amigos, um bar qualquer. Mas quando abro meus olhos e não consigo me mover lembro-me que estou presa, presa com desconhecidos, psicopatas cruéis e sem escrúpulos. Eu sei os nomes deles, conheço parte de seus crimes, mas não posso fazer nada. Estou impotente, amarrada em uma cama em um quarto escuro e frio.
Ramón está novamente sentando aos meus pés me encarando. Não consigo entender como ele sobrevive. Seus pais pensam que ele está morto e tenho quase certeza que foi um deles que, supostamente, o matou:
– Bom dia. – digo tentando erguer minha cabeça para olhar nos olhos de Ramón. José me amarra a noite e só me desamarra pela manhã, quando trás o café. – Onde você dorme?
– Em qualquer lugar. – Sei que Ramón me esconde algo, mas ignoro. Ainda temo que eu esteja ficando louca, falando com alguém que não exista e aqui, nessa casa, todos têm um segredo.
Ainda tenho fé que, um dia, um policial musculoso de olhos azuis vai entrar por aquela porta e me salvar, talvez não tão bonito, mas um policial, um herói, para me tirar de toda essa loucura e pesadelo, tenho que ter fé, é só o que me resta.
Ás vezes pergunto a Deus o porquê daquilo estar acontecendo comigo, afinal qual foi meu erro? Ajudar uma garotinha? Esse foi meu maior erro, ser boa!
– O que você come? – pergunto a Ramón e ele revira os olhos.
– Você faz perguntas demais enquanto devia se ocupar de arquitetar um plano para fugir.
– Fugir? – Solto uma gargalhada seca por falta de água em meu organismo. – Não sei se você reparou mais eu estou amarrada, meus pulsos estão amarrados na cama e meu tornozelo também. Estou impotente para qualquer coisa.
– Ele está cego. – Ramón ignora minha careta. – Está apaixonado por você, confia em você como nunca confiou em ninguém, bom, quase ninguém.
– Não sei aonde você quer chegar com isso. Acha que ele vai me deixar fugir?
– Você tem que fugir, nesse final de semana quando ele vai sair para caçar. Não importa se ele vai deixar ou não, se você não fugir... – ele enfatiza a palavra caçar com um erguer de sobrancelhas e não termina a frase, misterioso como sempre.
– Caçar?
– Você já ouviu falar no Caçador? – Ramón se aproxima de meu rosto e sussurra. – O serial killer?
– Sim. – sinto meu coração batendo mais rápido, minhas mãos tremem mesmo amarradas e minha boca está seca, muito seca. Era só o que me faltava, ser refém do meu objeto de estudo – É ele, droga.
– Ele mata pessoas como se fossem animais selvagens.
– É o seu pai! – Grito.
– Silêncio! – Ramón tapa minha boca com as mãos, tão pequeninas. – Eu não sei o que é um pai, já te disse isso, mas sim, é o José.
– Como você sabe?
– Todos nós sabemos. Somos seus herdeiros. – cada palavra é carregada de ironia.
– Você está dizendo que ele ensina vocês a... matar?
– Sim. – Ramón não tem mais de doze anos, mas a maneira como fala é carregada de dor, trauma, mas também muita coragem e maturidade, ainda assim não consigo o imaginar matando. – Todos nós já passamos por provas. Mas apenas um conseguiu aprovação.
– Quantos irmãos você tem?
– Vivos são sete.
– Mas eu só contei cinco.
– Um deles, o que passou no teste, se mudou, têm vinte anos, está estudando em uma escola militar. Você já conheceu Tiago, de quinze anos, Luiza, de catorze anos, Tamires, de treze, Giovana, a que você salvou de sete e o pequeno Mateus de dois.
– Ainda falta um.
– Você não vai conhecê-lo.
Ramón corre para o lado mais escuro do quarto, ouço um ruído e então a porta se abre. José entra com meu café da manhã.
Ele fica um tempo me olhando. Os belos olhos verdes brilhando com astucia, maldade, paixão. Meu corpo todo treme ao seu toque, não por excitação, mas por pavor, afinal conheço a força daquele homem. Em três dias consegui dezenas de ferimentos, dezenas de traumas e agora que sei quem ele é tenho muito mais medo.
José me desamarra e deixa que eu me sente para comer, ele se senta em uma cadeira e fica me observando. Vez ou outa leva o dedo nos lábios e passa a língua nos dentes inferiores como se eu fosse um bife suculento. A comida volta para a minha bile, mas eu me obrigo a engolir, estou fraca demais, por isso me forço a comer o máximo possível, não sei quando será minha próxima refeição.
Aquele monstro continua a me observar, me toca ás vezes apenas para sentir a minha pele. Fecho os olhos e tento imaginar que estou em uma lanchonete, comendo com meus amigos, paquerando um cara qualquer.
Sempre fui uma garota muito determinada. Faço o que me dá na teia, sem me preocupar com as consequências, quando eu gosto de um cara não há o que me faça desistir dele, mas também quando não quero nada com o cara não há o que me faça quere-lo, simplesmente não mudo de opinião.
Quando eu saia com meus amigos nunca ficava sozinha, sempre tinha um cara querendo ficar comigo, não por que sou de grande beleza, mas eles se atraem pelo meu jeito despojado e determinado. Igor costumava me dizer que eu sou o sonho de qualquer homem, bonita, inteligente e nenhum um pouco pegajosa ou frágil demais. Sempre me orgulhei de não ser o tipo de menina que tem medo de barata ou que só assiste filmes românticos e depende de homem para tudo. Pelo contrario eu enchia a cara e desrespeitava varias leis, eu sempre me orgulhei de ser livre.
Talvez o meu carma estivesse se virando contra mim. Dizem que a gente colhe o que planta, mas eu não estava entendendo por que o gatilho para minha mudança de carma foi justamente um ato de bondade:
– Coma tudo. – José sussurra em meu ouvido. – Coma tudo.
– O que você vai fazer comigo? – Pergunto em um surto de coragem e petulância. – Me mate logo!
– Eu poderia matar você, agora mesmo. Mas que graça teria?
– Matar não é para ser engraçado.
– Não? – José ri olhando estranhamente para as próprias mãos. – Eu acho muito engraçado matar, só não acho que teria graça agora. Sabe aquele ultimo olhar da pessoa, quando ela sabe que vai morrer? Não você não sabe, mas é hilário.
– Você é louco! – grito arremessando o prato na cabeça dele.
O sangue escorre pela testa dele, mas o sorriso em sua boca não some. Ele passa a mão no pequeno ferimento e encara o sangue:
– Você é muito corajosa e esse é seu erro. – Me ameaça. – Mas eu posso usa-lo a meu favor.
– Você não vai escapar. A policia vai te achar. – José anda devagar e sai com o assustador sorriso no rosto. Eu grito e esperneio, mas ele não se atinge, sua frieza me assusta mais do que qualquer coisa.
Ramón surge das sombras com uma careta. Sei que não devia ter feito aquilo, ainda mais depois do que descobri. José era um psicopata, era um dos seriais killer’s mais perigoso do mundo, preciso tomar cuidado.
Conhecido apenas como Caçador, ele mata das maneiras mais cruéis já existentes. Ele era uma das minhas pesquisas recentes, havia cerca de dez vitimas descobertas em dez anos, mas haviam suspeitas que o numero era bem maior. Geralmente eram mulheres e os corpos eram deixados pendurados em vigas com as vísceras para fora e partes da pele eram arrancadas, como se fossem animais de caça, por isso tinha recebido o nome de Caçador. De acordo com a policia, nunca houve uma pessoa que saísse viva das mãos dele. Muitos corpos nunca foram encontrados, mas sim partes ou membros, restos mortais destroçados como animais, a maioria nem foram identificadas.
Por dias eu estudei os diversos casos daquele assassino. Sou fascinada por esse tipo de coisa e estudar a mente de um psicopata sempre foi o meu sonho e de muitos dos meus amigos, mas não era bem assim que eu imaginava. Não esperava ser sequestrada pelo pior deles. Se eu saísse viva nunca mais iria querer pesquisar ou me envolver com esse tipo de coisa. Quero distancia de qualquer coisa que me lembre o Caçador, mas eu iria sair viva?
– O que você fez? – Ramón me repreende como se fosse meu pai, mas esse menino não tem mais de doze anos.
– Eu fiquei nervosa. Preciso sair daqui. Ele vai me matar! – Eu quero poder gritar, mas sei que não me levará a nada. Levanto-me e fico andando de um lado para o outro enquanto bagunço o cabelo com as mãos.
– Preste atenção Verônica, você vai sair, amanhã, você só precisa seguir nossas instruções.
– Ramón só tem você e eu aqui. Para de falar no plural por que é assustador.
– Você não entenderia. – Ele diz dando de ombros.
Ramón deve ser doente. Eu até entendo, uma criança que passa o tempo todo em um quarto escuro se fingindo de morto não poderia ter a mente sã, mas é assustador o fato de ele ficar falando no plural toda hora. Com certeza ele estava falando de seu amigo imaginário. Sammy. Acho que era esse o nome dele.
– Tanto faz. Eu só quero fugir.
– Ótimo. Agora aja como uma refém. Não ataque ele novamente. Cuide dos meus irmãos, mas não conte nada a eles. Alguns deles fazem de tudo para não sofrer mais, eles não entendem as consequências.
– Tudo bem. Não vou falar nada. – Tento conter meu cabelo. Ele está sujo e todo rebelde por conta da minha crise de nervosismo. – Ramón como você sabe que eu vou conseguir fugir?
– Sammy sabe. Ele já saiu daqui e eu conheço os pontos fracos das câmeras.
– Sammy. – murmuro, minha fuga está nas mãos do amigo imaginário Sammy. – Será que um dia vou conhecer Sammy?
– Sammy não existe. – Desconfiei. Penso, mas não falo. – Não para a sociedade onde você pertence.
Ramón some novamente. Madeleine entra no quarto com roupas limpas que joga em cima de mim e me manda vestir.
Ela sorri para mim e noto que está faltando um dente em sua boca, ainda assim parece feliz e isso é o que mais me assusta.