O carro deslizava pela estrada estreita. As luzes da cidade, ao longe, eram apenas pontos borrados no espelho retrovisor, enquanto à frente, o vazio e a escuridão se estendiam como um convite à reflexão — ou ao desconforto.
Matteo observava a paisagem sem realmente vê-la, o pensamento ainda preso ao interrogatório que haviam conduzido horas antes. O silêncio de Aurélio, sentado ao volante, o incomodava mais do que o próprio ato violento do qual havia feito parte. Ele era alguém do submundo acostumado a ver barbárie, mas Aurélio o tinha surpreendido, ele tinha um lado que Matteo via que era mortal escondido na sua máscara de palhaço, mas um maluco reconhecia o outro e Matteo não errava.
Não resistiu.
— Como você conhece Seytan? — perguntou de repente, quebrando o silêncio como quem atira uma pedra num lago calmo. Aquela pergunta o estava corroendo por dentro e Matteo não teria paz enquanto não tivesse uma resposta.
Aurélio arqueou uma sobrancelha, sem desviar os olhos da estrada. Um sorriso de canto se formou, aquele mesmo que Matteo já conhecia bem: malicioso, provocador, feito sob medida para irritá-lo.
— Não sabia que você era fã dele… — respondeu Aurélio, fingindo inocência. — A menos que você queira outra coisa com o assassino.
Matteo revirou os olhos. Não adiantava tentar ter uma conversa seria com Aurélio, mas ele sabia que aquilo era apenas uma forma de o enrolar para não responder.
— Não estou perguntando isso, e você sabe. Quero saber como você o conhece a ponto de pedir ajuda. — Seytan era imprevisível, ninguém chegava perto dela a menos que quisesse morrer, o assassino era famoso por matar seus clientes, e mesmo assim pedidos por seus serviços se acumulavam aos montes.
Aurélio soltou uma risada curta, enquanto acendia mais um cigarro com a mesma naturalidade com que mudava de assunto. Ele iria aproveitar que não havia ninguém por perto para pegar na sua orelha, quando não era Síria havia Oksana, e depois seu irmão e os outros. Pensar neles o faz sorrir, ele não suportava ficar longe da família.
— Matteo… — disse, tragando com calma — você ainda tem muito o que aprender sobre este mundo.
— Esse é o seu jeito educado de dizer que não vai responder?
Aurélio soltou a fumaça pela janela, como se libertasse também a vontade de ser claro.
— É o meu jeito sincero de dizer que contatos não se fazem perguntando. Contatos se fazem… — virou o rosto, encarando Matteo por um segundo, com aquele olhar frio e irônico — … se fazendo necessário. E sobre Seytan e eu, você não terá uma resposta sobre isso, se conforme e não faça bico como uma criança.
Matteo bufou, irritado com o enigma e com o tom professoral. Aurélio o tratava como criança, mas ele não insistiria, Aurélio podia ser louco, mas Matteo sabia respeitar um não quando ouvia.
— E eu suponho que você é necessário?
— Oh, Matteo… — sorriu Aurélio, quase divertido — Eu sou indispensável.
O sarcasmo na voz dele fez Matteo rir, mesmo que a irritação ainda estivesse ali, firme, como um espinho cravado.
— Sério, Aurélio. Como alguém como você consegue… — hesitou, buscando a palavra — … acessar alguém como Seytan? Esse cara é praticamente uma lenda urbana.
Aurélio girou o volante suavemente, enquanto ponderava a resposta.
— O mundo é menor do que parece, Matteo. — deu uma pausa, dramática o suficiente para causar mais desconforto. — E se você sabe onde procurar… até lendas urbanas atendem o telefone.
Matteo sacudiu a cabeça, incrédulo. Mas ele estava falando com Don Aurélio, devia saber que as respostas dele não vinham tão fácil como ele havia pensado.
— Você fala como se fosse simples.
Aurélio deu de ombros, divertido. Ele estava descobrindo que Matteo podia ser uma boa companhia.
— Não é simples. É apenas inevitável. Quando você crescer e tiver os contatos que tenho vai entender. — Diz Aurélio rindo da cara chateada dele.
Matteo franziu o cenho, ainda digerindo as palavras.
— E você simplesmente… ligou pra ele? — Pergunta ignorando a piada anterior.
Aurélio soltou uma gargalhada sincera dessa vez.
— Claro que não! — respondeu, como se a ideia fosse ridícula. — Com gente como Seytan, não se liga… eles ligam pra você, se for do interesse deles.
— E por que ele ligaria pra você? — provocou Matteo, num tom meio cético.
Aurélio sorriu, inclinando-se levemente na direção de Matteo, como quem compartilha um segredo.
— Porque eu sei coisas… — sussurrou, antes de se recostar novamente no banco. — E porque às vezes até os monstros precisam de outros monstros.
Matteo ficou em silêncio por alguns segundos, tentando processar aquela filosofia tortuosa. Olhando nos olhos de Aurélio ele não via nenhuma dúvida ou brincadeira, o que ele tinha dito era a verdade.
— Você adora esse jogo, não é? — disse, por fim, meio rindo, meio exasperado.
Aurélio ergueu o cigarro em um brinde imaginário.
— Eu vivo esse jogo, Matteo. A diferença é que eu sei que é um jogo… e você ainda acha que é vida real.
O comentário atingiu Matteo como um soco invisível. Ele riu, sem humor, enquanto o carro diminuía a velocidade ao se aproximarem da entrada da propriedade de Hideo.
— Sabe… um dia, alguém vai acabar com essa sua arrogância. — Diz ele com um suspiro.
Aurélio olhou de soslaio, com um sorriso desafiador.
— Que tentem. Mas cá entre nós, a única pessoa que consegui isso é minha mulher, por aquela loira eu fico de joelhos sem problema algum. — Diz ele piscando para Matteo.
Matteo olha para ele surpreso, então solta uma gargalhada com as palavras dele. Não era segredo para ninguém que Don Aurélio amava a esposa profundamente.
O portão se abriu lentamente, rangendo, como se soubesse que duas sombras carregadas de segredos passavam por ele. O carro deslizou para dentro da propriedade, enquanto o mistério sobre o que realmente haviam descoberto continuava intacto, protegido por aquele jogo silencioso que só Aurélio parecia dominar por completo.
Matteo respirou fundo, sabendo que, mais uma vez, não obteria todas as respostas… ainda.