O som do shopping é constante: música ambiente, passos apressados, risadas, vitrines piscando. Virgínia caminha à frente, os saltos batendo ritmados no piso de mármore, uma sacola em cada mão.
Henrique segue a poucos metros atrás, discreto como sempre. Terno escuro, expressão neutra. Os olhares curiosos das pessoas ao redor não passam despercebidos é impossível ignorar a presença dela, e impossível não perceber o homem que a segue, firme e silencioso.
Virgínia, no entanto, está diferente. Menos arrogante, menos altiva. Há uma serenidade estranha em seu semblante, como se o incidente da noite anterior tivesse mexido com algo dentro dela.
Ela para em frente a uma loja e se vira de repente.
— Você vai ficar aí me seguindo o tempo todo, feito uma sombra?
Henrique mantém o tom calmo.
— É o meu serviço.
Ela revira os olhos, mas o sorriso escapa.
— Você é mesmo impossível de desconcertar, não é?
Ele não responde. Apenas observa o movimento ao redor, atento.
Ela suspira.
— Ontem… quando aquele homem tentou atirar no meu pai…— a voz dela vacila um pouco — você estava lá. Sem hesitar.
Henrique a encara rapidamente, depois volta o olhar ao redor.
— É o meu trabalho, senhorita.
Ela dá um passo à frente.
— É sempre o seu trabalho?— pergunta num tom mais baixo, curioso, quase provocante.
Henrique respira fundo.
—Sempre.
Ela o observa por um instante, como se tentasse decifrar algo nele.
Depois muda de assunto, forçando um sorriso.
— Certo, então se é assim… acho que meu pai te paga pra me acompanhar, não pra morrer de fome.
Henrique franze o cenho, confuso, enquanto ela o puxa pelo braço e o leva até a praça de alimentação.
— Sente aí.— diz, apontando uma cadeira.
— Não, senhorita. Eu espero de pé.
— Sente.— ela insiste, firme. — Considere uma ordem da filha do seu chefe.
— Não.
Virgínia leva a mão na cabeça.
— Aí está doendo...
Henrique se aproxima e ela caí nos braços dele.
— O que foi ? Onde está doendo ?— Henrique pergunta preocupado olhando em seus olhos.
— Nada, só queira você mais perto.— ela o olha nos olhos, apertando de leve os braços fortes que a seguravam.
Henrique por um momento se perder no azul profundo dos olhos dela, mas logo se recompõe a levantando.
Ela sorri vitoriosa e vai até um quiosque e volta com duas bandejas café, dois sanduíches e um suco.
Empurra uma das bandejas pra ele.
— Aqui. Não quero que um segurança desmaie do meu lado.
Henrique observa a comida, depois olha pra ela.
— Não precisava.
— Não, mas eu quis. Coma, é uma ordem — ela dá de ombros. — É o mínimo depois do que você fez ontem.
Ele começa a comer, discreto.
Ela o observa com um sorriso pequeno.
— Você sempre foi assim… sério demais?
— Não acho que seja seriedade. É foco.
— Ah, então é isso. Foco.— ela cruza os braços, se inclinando levemente à frente. — E esse foco todo te impede de conversar comigo?
Henrique engole o último pedaço e limpa a boca com o guardanapo.
— Conversar não faz parte do serviço.
Virgínia ri baixinho.
— Meu Deus, você é um robô. Será que dá pra te desligar por um minuto?
Henrique quase sorri, mas se contém.
— Prefiro continuar funcionando.
Ela o observa em silêncio por um instante, e o sorriso some devagar.
Há algo nos olhos dela algo mais suave, mais curioso.
— Você é diferente dos outros que meu pai contrata.
Henrique ergue o olhar, mas não responde
O momento dura só alguns segundos, mas o ar entre eles muda uma tensão silenciosa, tênue, quase imperceptível, mas real.
Henrique desvia o olhar primeiro, checa o relógio.
— Precisamos ir. O tempo está passando.
Ela se levanta, pega as sacolas e diz num tom leve:
— Tudo bem
Ele voltando à postura de sempre atento, firme, profissional.
Mas por dentro, uma pequena dúvida o atravessa.
Não sobre o dever.
Mas sobre o motivo pelo qual, pela primeira vez, proteger alguém parecia um pouco mais… pessoal do que deveria.
Os portões se abrem silenciosamente. O carro preto entra na garagem principal e para junto às colunas de mármore. Henrique desce primeiro, abrindo a porta traseira. Virgínia sai com algumas sacolas nas mãos, o cabelo ruivo solto caindo sobre os ombros.
Antônio os observa da varanda, taça de vinho em mãos.
Do alto da escadaria, ele parece um rei no trono, analisando cada detalhe do retorno do seu cavaleiro e da princesa.
Virgínia fala algo para Henrique, rindo baixinho um riso leve, raro nela.
Henrique mantém a postura firme, discreta. Não retribui o sorriso, mas há algo no modo como desvia o olhar que chama atenção. Ele não demonstra emoção, mas o silêncio entre eles parece carregado.
Antônio aperta o cristal da taça, o olhar fixo neles.
Ele não precisa de palavras para entender o que está começando.
Quando Virgínia entra, ela cumprimenta o pai com um beijo rápido no rosto.
— Oi, papai. O dia foi tranquilo.
— Vejo que sim.— Antônio responde, o tom neutro demais para ser natural. — Parece até que se divertiu.
— Um pouco. Henrique é um ótimo segurança. Acho que me sinto mais segura com ele por perto.
Henrique se mantém em segundo plano, imóvel, as mãos atrás das costas.
Mas Antônio vira o olhar lentamente em direção a ele e naquele instante, o silêncio no ambiente se torna quase sufocante.
Antônio analisa o homem diante dele.
A postura impecável. O rosto firme, de traços fortes.
Olhos castanhos claros, atentos e calculados, mas com algo profundo que mesmo ele não consegue decifrar.
Cabelos castanho-escuros, cortados com precisão. Pele clara, alto , o maxilar marcado, e aquela cicatriz na lateral do rosto um detalhe que, em vez de afastar, torna Henrique ainda mais intrigante.
Um homem de aparência contida, mas que exala algo perigoso, algo que atrai olhares mesmo sem tentar.
E Virgínia o olha.
Não como quem observa um funcionário, mas como quem tenta entender alguém que desperta curiosidade e talvez algo mais.
Antônio percebe.
O brilho nos olhos da filha. O leve tom de voz quando fala o nome dele.
Pequenos detalhes que escapam aos distraídos, mas não a ele.
— Henrique.— diz, quebrando o silêncio. — Fez um bom trabalho hoje?
Henrique o encara com respeito.
— Tudo correu bem, senhor. Nenhum imprevisto.
Antônio inclina a cabeça levemente.
— Ótimo. Continue assim. Virgínia é… preciosa.
Virgínia sorri, sem perceber a tensão por trás das palavras.
— Pode deixar, pai. Acho que estou em boas mãos.
Henrique desvia o olhar, o rosto impassível.
Antônio, porém, capta tudo: o controle de Henrique, a leveza de Virgínia, e o fio invisível de tensão que começa a ligar os dois.
Quando Virgínia sobe para o quarto, Antônio espera o som dos passos se afastarem.
Depois se aproxima de Henrique, o tom baixo, frio:
— Eu avisei, Henrique. Ela é fogo… e fogo bonito queima mais rápido.
Henrique o encara, firme.
— Não há perigo, senhor.
Antônio sorri, mas há ameaça no sorriso.
— Ainda.
Ele dá um gole no vinho e se afasta, encerrando a conversa como se nada tivesse acontecido.
Henrique fica ali por um instante, sozinho no hall.
O reflexo dele no espelho o encara de volta o rosto sério, a cicatriz, o olhar inexpressivo.
Mas por dentro, ele sente o peso do olhar de Virgínia ainda preso nele.
E sabe que, daquela noite em diante, o perigo deixou de estar apenas do lado de fora dos portões da mansão Mancini, mas, dentro dele mesmo.