O calor no coração do inverno
Daniela Marçal
A beleza do chalé era inegável, mas a frase de Xavier — "O pagamento é muito mais pessoal" — reverberava em meus ouvidos, impedindo-me de relaxar. Eu estava em uma gaiola de luxo, longe dos paparazzi, mas à mercê daquele homem.
Tentei agir com normalidade. Tirei o casaco de Olívia, que já estava de joelhos diante da lareira, fascinada pelo fogo.
— Mamãe, estou com fome!
— Eu também, querida. Mas a cozinha deve estar...
Antes que eu pudesse terminar, Xavier havia sumido e reaparecido na cozinha aberta, que era elegante e profissional. Ele tirou um avental preto de linho de uma gaveta e o amarrou na cintura com uma facilidade surpreendente. O terno perfeito havia sido trocado por calças casuais e uma blusa de gola alta escura. Ele parecia... humano.
— Não se preocupe, Daniela. Eu não confio em cozinheiros para o meu conforto. — Ele abriu a geladeira, que estava estocada como um mercado gourmet. — Nada de refeições sofisticadas hoje. Precisamos de calor e açúcar.
Eu o observei, paralisada. Xavier Lancaster, o magnata que movia mercados, estava manejando panelas de cobre.
Ele começou a preparar chocolate quente. Não era o pó instantâneo. Ele derretia pedaços grandes de chocolate amargo, com a mesma concentração que teria em uma fusão de empresas. O cheiro de cacau e especiarias flutuou, misturando-se ao aroma da lenha.
Olívia correu para o balcão. — Papai, posso ajudar a mexer?
Ele hesitou por um segundo, e depois do sorriso, aquele sorriso fugaz que era reservado a filha, iluminou seu rosto.
— Claro. Mas é um trabalho sério.
Enquanto Olívia, na ponta dos pés, mexia o chocolate com uma colher de p*u, guiada pela mão firme de Xavier, meu peito se apertou. Eu estava vendo um lado dele que a mídia jamais veria. Aquele gesto simples, a paciência com que ele a ensinava, me desarma. Era um homem capaz de parar o mundo para me dar um refúgio e, ao mesmo tempo, capaz de dedicar seu tempo a uma bobagem reconfortante.
Finalmente, ele nos serviu. O líquido era denso, aveludado, com um toque de pimenta caiena que aquecia a garganta.
Sentamos os três no tapete de pele, perto da lareira. Olívia bebia chocolate, fazendo uma "barba" de chantilly. E, pela primeira vez desde que a confusão começou, eu me senti em paz. Não só a tensão de fora havia sumido, mas a tensão entre nós havia se afrouxado.
— Isso é o melhor chocolate que já provei, Xavier.— Eu disse, sinceramente.
Ele não me agradeceu. Apenas olhou para mim, com os olhos fixos.
— Eu sou bom no que me proponho a fazer, Daniela. Seja fechar um negócio ou garantir que você se sinta cuidada.
A última frase — "que você se sinta cuidada" — me atingiu de forma diferente. Não era um gesto de um anfitrião. Era uma declaração de intenção. Enquanto eu bebia o calor doce e picante, soube que a fuga havia acabado. O que estava começando era algo muito mais perigoso e envolvente.
O ar da sala de estar parecia pesado depois daquele quase-abraço na neve. Xavier e eu voltamos em um silêncio carregado, o calor do fogo da lareira entrando em conflito com o gelo da montanha que ainda sentíamos.
— Seu quarto é no andar de cima, ao lado do de Olívia — Xavier disse, com a voz baixa e controlada. — O meu é na ala oeste. Temos privacidade total.
A palavra "privacidade" soou mais como "isolamento" vindo dele. Subi a escada de madeira, me sentindo mais exausta do que nunca. Meu corpo estava cansado da tensão; minha mente, da presença dele.
Ao entrar no quarto, parei. Não era um quarto de hóspedes. Era um santuário.
As paredes eram revestidas de madeira clara, e a cama, enorme, estava coberta por linho branco. Havia uma lareira menor, a gás, acesa, e um buquê de lírios-do-vale sobre a cômoda. Lírios-do-vale. Eles eram minhas flores favoritas, e eu m*l havia mencionado isso a alguém, anos atrás.
Lágrimas ardentes encheram meus olhos. Não eram lágrimas de tristeza, mas de choque e de uma gratidão perigosa.
Deixei a mala de lado e me aproximei da janela. A vista era espetacular: as luzes fracas de uma vila distante e a promessa fria da neve lá fora.
Foi então que notei a mesa de trabalho no canto. Havia um notebook aberto, elegante e moderno. Ao lado dele, repousava um pequeno bloco de anotações e um estojo de canetas-tinteiro.
Eu m*l podia acreditar.
Eu havia parado de escrever, há meses, desde que o trabalho começou a me consumir. A escrita era minha terapia, mas a confusão havia roubado minha voz, Paul também dizia que era besteira. Não queria pensar mais nele também. Eu tinha mencionado a Xavier, de passagem, há um ano, que escrever à mão era o único jeito de organizar meus pensamentos. E que eu tinha uma paixão por canetas-tinteiro.
Abri o bloco. A primeira folha estava em branco, mas na capa, havia um post-it com a caligrafia forte e decidida de Xavier.
"Use o silêncio, Daniela. O mundo pode esperar. Eu comprei o tempo. Agora, encontre sua voz novamente."
O ar pareceu sair dos meus pulmões. Não era um presente caro, não era joia ou carro. Era um presente de entendimento. Ele não apenas queria me proteger da mídia; ele queria me restaurar. Ele se importava com a essência de quem eu era. Ele havia planejado essa fuga nos mínimos detalhes, prevendo minha necessidade de desabafar o caos no papel.
De repente, a distância entre a ala oeste e meu quarto pareceu insignificante. Ele estava presente em cada detalhe daquele espaço.
Eu me sentei na cama, sentindo o calor das chamas da lareira. A atração que eu sentia por Xavier era complexa, misturada com gratidão e medo de seu poder. Mas esse gesto... esse gesto pessoal, silencioso e atencioso, demoliu minhas últimas barreiras.
O chocolate quente de Xavier havia sido uma trégua bem-vinda. Depois de garantir que Olívia estivesse instalada no quarto mais aconchegante do chalé, e com uma vista mágica para a montanha. Senti que finalmente poderia respirar. O silêncio era tão denso que parecia um luxo caro.
Eu estava prestes a ir para o meu próprio quarto novamente, mas algo me puxava para as paredes de vidro da sala de estar. A neve lá fora era magnética. Sob a luz da lua alpina, o mundo parecia polvilhado com diamantes. Era um contraste tão dramático com o asfalto sujo e os flashes das câmeras que eu m*l conseguia resistir.
Vestindo o casaco mais quente que Xavier havia providenciado (claro, era de um designer italiano), abri a porta de correr da varanda. O ar frio me atingiu com força, mas não era hostil; era puro. O chão estava coberto por uma camada imaculada de neve recém-caída.
Caminhei alguns metros, afundando levemente, inebriada pela quietude. Era a primeira vez que me sentia completamente invisível e, paradoxalmente, livre. Fechei os olhos, absorvendo o silêncio.
— Isso vai te matar.
A voz grave e familiar de Xavier ecoou logo atrás de mim. Abri os olhos e me virei. Ele estava ali, parado na porta, o corpo envolto em um casaco de lã escura. Não era um pijama; era a roupa de um homem que estava sempre pronto para um movimento.
— Eu precisava de um minuto, Xavier. Longe das paredes.
— Está a zero grau, Daniela. E você está longe das paredes... mas não de mim.
Ele fechou a porta de vidro atrás de si e começou a caminhar em minha direção. Cada passo era lento, deliberado. A luz da sala de estar iluminava o vapor de sua respiração. O contraste de sua figura imponente contra a brancura selvagem era de tirar o fôlego.
— O que você quer, Xavier? — Minha voz soou trêmula, mas não de frio.
Ele parou a um braço de distância. Sua proximidade, mesmo em um espaço tão vasto, me fazia sentir encurralada.
— Eu não confio em você sozinha lá fora. Você m*l escapou de um cerco para morrer de hipotermia no meu terraço. — Havia uma tensão brincalhona no tom, mas o olhar era sério.
Então, ele fez algo inesperado. Estendeu a mão.
— Pelo menos, vamos até aquela cerca ali. Mas não sozinha. Eu sou seu guia nesta montanha.
Hesitei. Tocar a mão dele significava aceitar a i********e que ele estava oferecendo. Significava reconhecer que não éramos apenas resgatador e resgatada. Significava aceitar o pagamento "pessoal" que ele havia mencionado.
O vento soprou, e o frio me convenceu. Minha mão gelada encontrou a dele. Sua pele estava incrivelmente quente e firme. O choque elétrico não foi apenas o encontro de temperaturas opostas.
A mão dele fechou-se em torno da minha, e ele me puxou para a frente, guiando-me pela neve. Com o toque, a formalidade se desfez. Nossas silhuetas se moviam juntas sob a lua, a única evidência de vida naquele deserto branco.
— Você está tensa — ele murmurou, sem olhar para mim.
— Estou congelando.
Ele parou. Sem soltar minha mão, ele usou a outra para me puxar gentilmente. Meu corpo colidiu com o dele. A solidez de seu peito contra o meu casaco me fez ofegar. Eu podia sentir o calor de seu corpo através da lã.
— Se está congelando, você me diz. — Ele manteve os braços em torno de mim, não em um abraço romântico, mas em um confinamento protetor. — Você não precisa mais fingir ser forte para mim.
Eu levantei o rosto, os olhos fixos nos dele. Estávamos tão perto que eu podia ver o brilho de seus olhos na escuridão. O silêncio da neve era o cenário perfeito para o nosso primeiro beijo, mas ele não me beijou. Ele apenas me segurou, nos envolvendo no casulo de seu calor. E naquele frio cortante, pela primeira vez, eu me senti profundamente, perigosamente, segura.
Obrigada pelos comentários e bilhetes lunares 🥰