CAPÍTULO 2
Anne Moore
Chego em Nova York após horas de viagem, exausta, mas não posso descansar. O local da entrevista fica próximo ao Central Park e quero estar lá cedo, mesmo que isso signifique madrugar na porta. A ansiedade borbulha em mim, um misto de medo e esperança. Cada passo fora do aeroporto me lembra o quão sozinha estou e como preciso conseguir essa chance.
Não posso perder essa oportunidade de trabalho. Aqui, longe dos meus pais, talvez consiga me reerguer. Tenho ensino médio completo e comecei o curso superior; acredito que, com isso, conseguirei arrumar algo rápido. Talvez seja o primeiro passo para reconstruir minha vida.
O frio me corta como navalhas. Estamos no inverno, e minhas roupas não são adequadas para essa época do ano. Sinto os ossos gelarem, mas preciso me contentar com isso. Primeiro a vaga de emprego, depois as roupas novas, penso, tentando me convencer.
Não consigo acreditar que estou nessa situação. Eu tinha tudo… e agora não tenho nada. Tudo porque quebrei uma regra da família. Droga! A raiva sobe pelo meu corpo, fervendo. Ainda me lembro daquela noite: Joseph me tratando como se eu fosse fraca, humilhada na universidade, meus pais me rejeitando. A lembrança me corta como facas.
Sinto vontade de chorar, de me entregar ao desespero, mas não posso. Preciso correr atrás, aprender a me virar sozinha. Infelizmente, não sei fazer nada, toda minha vida os empregados dos meus pais cuidaram de tudo. Meu único cuidado era estudar. Agora preciso trabalhar… e espero que alguém me dê uma chance, mesmo eu sendo inexperiente.
Verifico o endereço do restaurante no celular. Não fica tão distante. Entro em um ônibus indicado pelo Google Maps e, pouco depois, desço em frente ao local.
Reparo que ainda está fechado. Fico parada na porta, observando a cidade. Nova York é linda, vibrante. Crianças fazem bonecos de neve, casais patinam no gelo, árvores e ruas decoradas para o Natal, um cenário encantador, mas que me lembra o que perdi. Aqui, o Natal dura de dezembro a março; famílias se reúnem, celebram. Minha família? Sempre unida… desde que todos seguissem suas regras sufocantes. Lembro-me de ter vindo aqui quando criança e me divertido, mas essas memórias parecem distantes, quase irreais.
Mas nem tenho tempo de me perder em minhas lembranças quando meu estomago ronca, lembrando que tenho pouco dinheiro. Será que consigo comprar algo para comer? Mas logo eu penso: E se faltar? Eu preciso economizar o máximo possível. Um desespero silencioso ameaça me dominar, mas me esforço para resistir.
Seja forte, Anne Moore, digo a mim mesma. Você consegue. Sempre fui positiva; acredito que coisas boas e ruins acontecem com todos, e que a diferença está em como lidamos com elas.
O tempo passa. Já são mais de 08:00 horas e o restaurante ainda está fechado. Continuo em frente, abraçando minha sacola, toda a minha vida dentro de quatro peças de roupa. Com sorte, conseguirei o emprego e, com o primeiro pagamento, poderei comprar mais.
Vejo uma senhora, cerca de 50 anos, sair de um veículo importado. Ela parece antipática e nem me nota. Penso em falar com ela, mas ela apenas entra e fecha a porta. O coração aperta; sinto-me invisível, pequena.
Minutos depois, outras pessoas chegam e o restaurante finalmente abre. Eu respiro fundo, tentando me recompor, e entro. As portas pesam mais que deveriam.
Os empregados me observam como se cada movimento meu fosse um teste silencioso. A senhora que vi antes está lá, indiferente, como se eu fosse invisível.
O constrangimento sobe como um nó na garganta, mas não posso me deixar abater. Eu preciso desse emprego. Preciso dessa chance. Cada passo até o balcão parece mais pesado que o anterior, mas sigo, determinada, mesmo com as mãos suando frio.
Um rapaz me olha de cima a baixo. Sinto cada segundo desse olhar como uma pressão no peito. O medo e a esperança se misturam. Essa pode ser minha salvação… ou mais uma decepção.
— Bom dia… eu vim para a entrevista de emprego — digo, com um fio de voz.
Ele olha para a senhora que se aproxima. Ela para a um metro de distância, como se eu tivesse alguma doença contagiosa.
— Desculpe, mas você não faz parte do perfil que estamos procurando — diz ela, com uma voz carregada de superioridade, de quem esta acostumada a dispensar as pessoas.
— Mas… eu tenho ensino médio completo e até passei na Universidade de Harvard… — tento argumentar, a voz falhando.
Uma risada ecoa pelo salão. Meu rosto arde.
— Você passou em uma universidade? — pergunta incrédula. — O que não fazem por uma vaga… — ela murmura, sorrindo com desdém. — Saia do meu restaurante. Você não faz parte do perfil. — repete, mais fria. — Não está me ouvindo, garota? Preciso chamar a polícia para colocar gente como você para fora?
Olho ao redor e vejo todos os funcionários com os olhos cravados em mim. Sinto-me encolher. Meus ombros caem. Mesmo envergonhada, ainda tento manter a dignidade.
— Desculpe incomodar. Espero que encontre alguém no perfil — digo, num sussurro.
Saio do restaurante arrasada. O frio da rua me atinge como um tapa. O que eu tenho são apenas alguns dólares e nem sei se dá para comer.
Consigo um hotel barato para dormir por mais dois dias. Era o mínimo que me restava. Passei os dias seguintes andando pelas ruas de Nova York procurando emprego. Mas parecia que todas as portas estavam fechadas para mim. Não sabia mais o que fazer. Meu coração doía. Eu lembrava de como era minha vida antes e me perguntava, repetidamente, por que precisei me entregar, por que perdi tudo. Uma mágoa pesada crescia dentro de mim.
(...)
O dia de sair do hotel finalmente chegou. Eu não tinha mais para onde ir. A rua se tornou meu novo lar. O frio cortante do inverno nova-iorquino me castigava a cada passo, entrando pelos dedos das mãos, pelo nariz, pela alma. Os abrigos estavam sempre lotados e davam prioridade a mulheres com filhos. Eu entendia, era justo… mas doía.
O dinheiro acabou. Não havia como comprar comida. Passei a procurar restos pelas calçadas, garrafas, pacotes, qualquer coisa que pudesse saciar a fome. Banho era raridade. Meu corpo se tornou apenas mais uma forma de sobreviver. Eu realmente parecia uma indigente. Estava destruída. As esperanças escorriam pelos meus dedos como areia fina, impossível de segurar.
Os dias se arrastavam como sombras longas de inverno. Cada noite era mais fria que a anterior, cada esquina mais silenciosa, cada rosto desconhecido mais indiferente. Eu caminhava sem destino, olhando vitrines iluminadas, sentindo o cheiro de comida quente escapar por portas fechadas, lembrando do calor de casa e da segurança que havia perdido.
O Natal se aproximava, e eu ainda vagava pelas ruas de Nova York, minha sacola cheia de roupas gastas balançando ao meu lado. O vento gelado me obrigava a encolher os ombros, enquanto meu corpo tremia por dentro e por fora. Vi garotas de programa nas calçadas me observando, como se eu fosse uma moradora de rua, e na verdade eu era, mas continuei andando. Vi brigas, vícios à mostra, o lado da cidade que eu nunca conhecera. Eu, criada protegida, estava agora mergulhada no que meus pais sempre tentaram esconder.
No fundo, sabia que o maior erro não tinha sido apenas quebrar uma regra deles. O maior erro foi acreditar que eu estava segura. Agora eu estava ali, sem rumo, tentando encontrar algum sentido no meio do caos.
Enquanto caminhava distraída, algo chamou minha atenção. A alguns metros à frente, uma mulher discutia com um homem. Ela usava legging, camiseta curta e uma jaqueta jeans. Falava com um sotaque diferente, não parecia americana.
De repente, o homem a empurrou na calçada e entrou em um carro que partiu rapidamente. Ela ficou ali, sozinha, soltando palavrões, mas se levantou firme. Meu instinto me disse que deveria me aproximar; havia algo naquela postura que pedia ajuda, mesmo que ela não admitisse.
— Boa noite… você precisa de ajuda? — perguntei, a voz vacilando.
Ela se virou, e meus olhos quase saltaram: cabelos vermelhos vibrantes, olhos claros, corpo esguio e firme. Tanta beleza em meio ao caos da rua me impressionou.
— Tenho cara de quem precisa de ajuda? — respondeu seca, atravessando minhas palavras com frieza.
— Desculpe — falei, encolhendo os ombros, sentindo meu rosto arder.
Ela suspirou, e algo na expressão dela suavizou.
— O que faz na rua? — perguntou, agora mais calma.
Não soube o que responder. O medo e a vergonha me paralisaram. Ela, no entanto, abriu um sorriso de lado, quase imperceptível, mas cheio de vida.
— Você não parece uma menina feita para rua — disse, estendendo a mão. — Me chamo Valentina. Sou garota de programa. Aquele infeliz ali — apontou para o carro que desapareceu na esquina — era um cliente que não me pagou. Mas acredito que vou recuperar na boate onde trabalho.
Fiquei boquiaberta. Ela percebeu e riu, quase sem graça.
— Não me olhe assim! — disse, rindo, mas firme. — Já estou nessa vida há muito tempo. Não preciso do seu julgamento.
— Desculpe… mas você é muito bonita para essa vida. — falei, sem conseguir me conter.
Ela sorriu novamente, mais suave dessa vez, e algo naquela expressão me deu coragem.
— Tenho certeza que, no meio dessas roupas sujas, você também deve ser bonita. Mas estamos na rua, então acho que estamos quase no mesmo barco. — disse, e eu não pude deixar de concordar.
Toquei a mão dela, tímida, e sorri.
— Sou Anne — falei.
— Prazer, Anne. Você tem algum lugar para dormir hoje? — perguntou, e eu neguei com a cabeça, envergonhada. — Moro num puxadinho aqui perto. Não é grande, só uma cama de solteiro, mas posso te dar abrigo por hoje. As ruas estão geladas, e acho que não consigo mais nenhum cliente.
Vi um leve desânimo em seus olhos, mas ela disfarçou.
— Se não for incomodar… — falei, mas meu estômago roncou, me fazendo corar ainda mais. — Desculpe, é que… estou sem comer há alguns dias.
Ela assentiu, como se entendesse tudo sem precisar de explicação.
— A fome é dura mesmo, mas não me incomoda. Venha, vamos dividir o que temos. Depois de amanhã será Natal. Será bom ter alguém para compartilhar o pão, mesmo que seja pouco. Acho que vai dar para nós duas. — disse, sorrindo calorosamente.
Naquele momento, algo dentro de mim se aqueceu. Pela primeira vez desde que cheguei em Nova York, senti que havia alguém em quem confiar. Que talvez, mesmo nas ruas geladas, a esperança pudesse renascer através da verdadeira amizade.
Continua...