CAPÍTULO 3

2172 Words
CAPÍTULO 3 Anne Moore Andamos por quase uma hora lado a lado. Eu e Valentina seguimos pelas ruas iluminadas de Nova York, cruzando vitrines cintilantes, becos escuros e lojas fechadas, até chegar ao outro lado da cidade. Meus pés latejam dentro dos sapatos, minhas pernas parecem de chumbo. — Meu Deus… você mora bem longe — digo, tentando recuperar o fôlego. Ela sorri de um jeito tímido, como se já esperasse minha reação. — Pessoas como eu não moram em bairros de ricos. Aquele era um deles. — Ela dá de ombros. — O máximo que consigo é trabalhar em uma casa noturna por lá. Mas minha residência é aqui mesmo, nos bairros menos favorecidos… como a sociedade gosta de chamar. — revira os olhos, num gesto meio cansado, meio irônico. Sorrio sem jeito, mas noto algo: os pés dela ainda firmes no salto. — Seu salto não está doendo? — pergunto, curiosa. — Você não reclamou nem uma vez durante essa caminhada toda. Ela ri de leve. — Ando tanto que já me acostumei com eles. — responde, dando de ombros. Nesse momento me lembro do que tenho na sacola. Abro e tiro um par de chinelos velhos que comprei em um bazar. — Eu comprei em um brechó… espero que ajude. Valentina me olha surpresa, seus olhos piscam rápido antes de um sorriso breve surgir em seus lábios. Ela segura os chinelos com cuidado. — Obrigada… — diz, um pouco sem jeito. — Não precisa agradecer. Você já vai me dar um teto. Fico feliz em poder ajudar um pouquinho. Ela acena com a cabeça, um gesto silencioso de gratidão. — A propósito, estamos chegando — avisa. — Graças a Deus! — o alívio escapa dos meus lábios antes que eu possa controlar. Valentina solta uma gargalhada sincera. — Hoje não tirei um dinheiro bom, então não consegui vir de ônibus. Desculpa. — ela diz, ainda rindo. — Não tem problema. Só por você estar me levando para sua casa já é uma grande coisa. — respondo. Valentina sorri. Logo estamos diante da residência dela. O prédio parece abandonado. A fachada escura, rachada, com fios expostos. Algumas pessoas paradas na porta me encaram, e um frio percorre minha espinha. Valentina, no entanto, entra ao meu lado com naturalidade. O cheiro forte de algo que eu acho ser drogas paira no ar quando passamos pelos homens. — Valentina, quem é a amiga? — um deles pergunta, a voz debochada. — Não é da sua conta — ela responde, grossa. — Nossa princesa está arisca hoje — ele provoca. — Vão se f***r — ela retruca sem nem olhar, apertando minha mão para que eu continue andando. Logo chegamos ao apartamento dela. Entramos. O ambiente é pequeno: um quarto, uma cozinha, um banheiro. Os móveis são velhos, mas o lugar é limpo e organizado. Seguro o olhar para não parecer que estou reparando demais; não quero que Valentina pense que a estou julgando. — Pode olhar, Anne. Minha casa é pequena, mas acredito que seja melhor que a rua. — ela diz, notando que eu estava fazendo. Percebo algo em Valentina: ela fala o que pensa, sem rodeios. — Sim, com certeza é melhor que a rua. — respondo, sem jeito. — Vai tomar um banho. Eu vou preparar uma janta para nós. — diz, com uma doçura inesperada na voz. — Eu não tenho toalha e nem… — começo, mas ela me interrompe. — Não se preocupe, eu tenho tudo aqui em casa. Ela vai até o quarto, pega um kit de higiene novo e uma toalha, e me entrega. — O banheiro fica ali. Vou fazer uns hambúrgueres — diz, já se virando para a cozinha. — Obrigada… — sussurro. Entro no banheiro. O espaço é pequeno, mas parece um verdadeiro luxo comparado aos banheiros de posto onde tentei me limpar nos últimos dias. A água, mesmo morna, desliza pela pele como um alívio. Fecho os olhos por um instante e quase choro, talvez pelo cansaço, talvez por finalmente sentir algo parecido com segurança. Tomo banho rápido, tentando economizar cada gota, com medo de parecer ingrata. Não quero abusar da bondade de uma mulher que m*l conheço, mas que me acolheu sem fazer perguntas. Quando saio, a fumaça do cigarro da Valentina toma o pequeno espaço da sala. Ela está parada diante da janela, com o olhar perdido nas luzes da cidade, uma imagem bonita e triste ao mesmo tempo. Por um segundo, penso se devo interromper aquele momento, mas o silêncio entre nós não é desconfortável, é curioso. Ela se vira devagar, prende uma mecha de cabelo atrás da orelha e diz: — A cidade fica linda nessa época do ano, não acha? — Sim… eu também acho. — sorrio de leve, ainda meio sem graça. Ela apaga o cigarro, sopra a última fumaça com um ar de quem já viu demais, e diz: — Agora vá comer alguma coisa. A fome não perdoa ninguém. — Realmente… estou morrendo de fome. Sento à mesa, e Valentina se junta a mim. O hambúrguer é simples, mas parece o melhor que já comi. Sinto o sabor misturado ao nó na garganta, o tipo de refeição que tem mais alma do que tempero. Valentina me observa por alguns segundos e, com um meio sorriso, diz: — Agora me conta a sua história, mocinha. — Não é uma história boa… é confusa, dolorida. Ela ri baixo, um riso rouco, cheio de ironia. — Amor, se você soubesse da minha, acharia a sua um conto de fadas. Mas conte assim mesmo… e também pra eu ter certeza de que você não vai me matar enquanto eu estiver dormindo. Não resisto, acabo rindo junto, pela primeira vez em dias. — Eu juro que não vou te matar. — digo, divertida. — Só vou acreditar quando você abrir a boca. — ela declara e eu aceno. — Mas, tudo bem, vou te contar. E conto. Falo sobre minha infância, sobre os domingos com meus pais, sobre a primeira vez que me senti amada, sobre Joseph, a universidade, e o dia em que a rua virou minha casa. Valentina me escuta sem me interromper, como se minhas palavras ocupassem o espaço inteiro da sala. Quando termino, ela está boquiaberta, os olhos marejados, a expressão entre a revolta e a ternura. — Como assim seus pais fizeram isso? — pergunta, indignada. — Em que mundo essas pessoas vivem? — Eram as regras deles… e eu quebrei. — Ah, brilhante. Então seu pai te joga na rua e ainda te impede de viver? Que pai é esse? Abaixo a cabeça. Sinto o peso do que vivi cair de novo sobre mim. Valentina respira fundo, se aproxima e segura minha mão, um gesto simples, mas cheio de uma doçura inesperada. — Olha, eu não sou santa, tenho meus dias ruins… mas se quiser ficar aqui até se reerguer, a casa é sua. Eu não vou me importar. Sinto o nó na garganta apertar. Talvez seja isso que amizade significa, alguém que aparece quando o mundo inteiro vira as costas. — Obrigada, Valentina. Seu coração é enorme. Ela sorri de canto. — Não tenho coração, bebê. Só um instinto de sobrevivência… mas acho que a gente vai se dar bem. Sorrio com a careta que ela faz, e, pela primeira vez, sinto que encontrei alguém que entende o que é cair e continuar viva. Passamos o Natal juntas. Cantamos músicas desafinadas, rimos, comemos pouco, mas dividimos tudo. Valentina abriu sua casa com tanto carinho que por um instante, esqueci o frio e o abandono. As semanas seguintes foram duras. As entrevistas de emprego eram sempre as mesmas, pediam experiência, indicação, e eu não tinha nenhuma das duas. Via Valentina se desdobrar para manter o básico, voltando tarde, cansada, mas sempre com um sorriso e um prato pra mim. Nunca reclamou da minha presença. E, de alguma forma, comecei a sentir que aquele pequeno apartamento era o primeiro lar que tive em muito tempo. (...) Tempos depois... Essa não tem sido fácil. Vi o dono da casa onde Valentina mora aparecer mais de uma vez para cobrar o aluguel. Ela sempre dizia que a semana não tinha sido boa, mas que ia conseguir o dinheiro. Aquele dia me doeu mais do que gostaria de admitir. Vi Valentina acender um cigarro atrás do outro, os dedos tremendo de ansiedade, a testa franzida, procurando soluções no vazio. Mas, em nenhum momento, ela falou de mim estar morando lá. Não reclamou, não fez insinuações. Ela simplesmente seguia em frente, com um sorriso que, às vezes, parecia colado no rosto, uma máscara, talvez. Ou será que ela realmente gosta do que faz? Não existe pessoa com uma luz maior que a dela, disso eu tenho certeza. Mas também comecei a enxergar as rachaduras dessa luz. Os dias foram passando e, junto com eles, crescia dentro de mim uma culpa incômoda, um peso no peito. Eu me sentia cada vez pior, vivendo às custas dela, enquanto Valentina se desdobrava para pagar contas e manter tudo de pé. Até que um dia decidi dar uma reviravolta na minha vida. Esperei ela chegar do trabalho para conversar. Quando Valentina entrou, com o perfume barato misturado à fumaça do cigarro, falei que queria conversar após o jantar. Ela apenas assentiu. Percebi um lampejo de desconfiança em seus olhos, mas tentei tranquilizá-la com um sorriso. Depois de lavarmos os pratos, respirei fundo e falei de uma vez: — Valentina… eu quero agradecer por tudo o que tem feito por mim. Sou muito grata, de verdade. Mas preciso te ajudar de alguma forma. Então… eu resolvi virar garota de programa igual você. O garfo quase escorregou dos dedos dela. Valentina me olhou como se eu tivesse acabado de falar uma insanidade. — Você está brincando, né? — a voz dela soou baixa, quase um pedido. — Não. Eu não estou. Ela se levantou da cadeira, o rosto mudando do susto para a fúria. — p**a merda! Isso não é vida, Anne! — a voz dela saiu alterada, mais alta do que eu já tinha ouvido. — Valentina, eu vejo seu estresse. Sei que o dono do apartamento está te pressionando. Eu não suporto ver você se matando para manter tudo sozinha. Eu preciso te ajudar… e você não sabe se essa vida é para mim. — falei rápido, com o coração disparado. — Não é, Anne. Você não entende. Você foi criada por gente rica. Eu já nasci nessa vida. Você não. — disse, quase como um alerta. Suspirei, sentindo os olhos arderem. — Eu não me importo, Valentina. Não vou deixar você continuar se desdobrando sozinha. Eu vou entrar nessa vida, queira você ou não, e vamos colocar as contas em ordem. Ela me encarou, incrédula, os olhos escurecendo. — Você acha que isso é brincadeira? Dormir com homens de rua? Mesmo na boate, Anne, somos tratadas como nada. Apenas um corpo por alguns dólares. — a voz dela tremia, e, pela primeira vez, vi claramente a dor que ela sempre escondia. Aquilo me atravessou. — Valentina… eu sinto muito. — falei sem pensar, sentindo um nó no peito. Ela respirou fundo, tentando se recompor. — Não vou aceitar você nessa vida. Você ainda é uma menina. Só teve uma única relação e… — Eu não sou de porcelana, Valentina! Eu não vou quebrar! — falei alto, a voz embargada. — Você está se matando para manter tudo. Estamos a um passo da rua as duas. Você me ajudou quando ninguém ajudou. Eu não sou mais uma menininha filhinha de papai. Eu sou da rua agora, como você. Estamos no mesmo barco, mas eu estou sentada enquanto você rema sozinha. Isso não é justo! — respirei fundo, com os olhos marejados. — Minha decisão está tomada. Eu vou com você. Valentina me olhou longamente, e eu soube que ela entendeu que eu não ia desistir. — Tudo bem… — disse, levantando as mãos num gesto de rendição. — Você quer? Tá. Bom. Mas não vou levar você pros pontos da rua. Vou levar para a boate. Lá é mais seguro, os homens têm dinheiro, são mais limpos. — fez uma pausa. — Você sabe dançar? Cantar? — perguntou, com uma ponta de ironia. — Não sei. Ela suspirou fundo, massacrando o cigarro no cinzeiro. — Então vamos aprender, Anne. Porque na boate isso será exigido. Eu só vou lá aos finais de semana, então temos pouco tempo. Vai precisar aprender muita coisa. Assenti decidida. Naquela semana, Valentina se empenhou em me preparar. Falou que o caminho era duro, que na boate pelo menos havia regras, que os homens não poderiam nos agredir nem forçar nada. Eu ouvi tudo em silêncio. Ela repetia que estava fazendo uma loucura, mas que não podia me manter para sempre. E assim, eu tracei meu próprio destino. Não sabia que aquela decisão seria o fim e o recomeço da minha vida. Eu me achava preparada para tudo. Mas não para o que estava por vir. Continua...
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