Anne Moore
Dias depois...
Enfim, chegou o dia de ir com Valentina à boate onde ela trabalha. Foram dias de treino intenso, dança, postura, olhares, tudo o que eu jamais imaginei precisar aprender.
Valentina insiste que eu não sou feita para essa vida, mas… quem é?
Que mulher merece ter o destino escrito por necessidade?
Precisamos pagar o aluguel, e o dono do prédio não está para brincadeira. Ele disse que, se o dinheiro não aparecer, vai nos colocar na rua. Então não há tempo.
É isso ou voltar para o nada.
Saímos de casa uma hora antes, dessa vez de ônibus. A viagem até o centro de Nova York parece mais longa do que nunca. As luzes da cidade me hipnotizam pela janela, parecem me testar, como se perguntassem se eu realmente sei o que estou prestes a fazer.
Quando descemos e chegamos diante da boate, o som grave atravessa as paredes, vibrando no chão. Há uma fila enorme de homens e até mulheres, esperando para entrar. O letreiro vermelho pisca o nome do local como um aviso.
Me pergunto: como um lugar assim pode estar tão cheio?
— Por aqui, Anne — chama Valentina, quebrando meu devaneio.
Entramos pela porta dos fundos. O corredor é estreito, com cheiro de perfume caro e cigarro. Passam por nós várias mulheres de salto alto e vestidos curtos, rindo alto, falando rápido.
Valentina segue firme até parar diante de um homem de uns sessenta anos, com terno amarrotado e um cigarro pendendo dos lábios. Ele me observa de cima a baixo, o olhar calculista, e sinto um arrepio que me percorre inteira.
— Bruce, ela precisa de um emprego — diz Valentina.
Ele solta a fumaça devagar, um meio sorriso amarelo surgindo.
— Quantos anos essa criança tem? — pergunta, apoiando o queixo na mão.
— Ela não é criança. Tem dezenove, quase vinte. E precisa de uma chance.
— Uma chance sendo garota de programa? — ele retruca, arqueando uma sobrancelha.
— Bruce, ela aprende rápido. Eu mesma treinei. Se não quiser colocá-la nos quartos, pode deixá-la dançar.
Ele me encara novamente. Sinto o peso do olhar dele, e, sem perceber, dou um passo para trás. Ele percebe, e isso parece diverti-lo.
— Quer fazer um teste, garota? — pergunta, o tom desafiador.
Valentina me olha, como se dissesse “não faça isso”, mas eu respiro fundo e respondo:
— Quero.
Ela balança a cabeça em negação, mas já sabe que é tarde.
— Venha comigo — ordena Bruce.
Seguimos até um pequeno palco iluminado. Ele se vira para mim e fala com voz firme:
— Aqui você não é obrigada a nada. Mas se quiser ficar, tem que mostrar que sabe dançar. Vou te dar uma chance, mas aviso que será uma única oportunidade. Se errar, não tem emprego. Estamos entendidos?
Engulo em seco.
— Sim. — respondo.
Valentina vai até o som e liga o aparelho. O palco tem um pole dance no centro, mas eu ainda não sei usá-lo. Então fico apenas com a dança.
A música começa, Crazy in Love, da Beyoncé. Fecho os olhos, sinto o peso do ar, e peço aos céus que me deem força.
Então danço.
Deixo o som me guiar, o corpo se movendo sem pensar, como Valentina me ensinou. Esqueço que há alguém me observando.
Quando a música termina, o silêncio é pesado.
Abro os olhos. Bruce se levanta, sobe no palco, segura meu queixo com os dedos grossos e diz:
— Temos uma galinha dos ovos de ouro. — Ele sorri. — Está contratada.
Meu coração dispara.
Ele se vira para Valentina:
— Arrume a garota. Está parecendo uma virgem com essas roupas. Ou talvez seja.
— Não sou mais virgem — respondo antes que possa pensar.
Ele ri baixo.
— Ótimo. — Dá as costas e sai, deixando um rastro de fumaça no ar.
Valentina suspira e diz:
— Vamos, Anne. Daqui a pouco o show começa.
E eu, ainda sem saber se tremo de medo ou de emoção, apenas sigo.
(...)
Valentina e eu retomamos ao mesmo salão que passamos antes. A primeira coisa que reparo é que o ambiente está mais cheio, vejo mais mulheres do que consigo contar, e todas me encaram como se eu fosse uma estranha perdida no meio delas.
E talvez eu seja.
— Agora estão aceitando crianças? — provoca uma mulher loira, de olhos escuros e intensos, vestida com um vestido vermelho que grita atenção. O sorriso dela é debochado.
— Acredito que isso não é da sua conta, não é, Scarlett? — retruca Valentina, firme, o tom levemente cortante.
— E ainda tem uma mãezinha protetora. — Scarlett responde, rindo com desdém, jogando o cabelo para o lado com um movimento que exala veneno.
Antes que Valentina retruque, uma voz surge atrás de nós, firme e cheia de ironia:
— Scarlett, por que você não cuida da sua própria vida? Tenho certeza de que vai ter muito programa pra fazer hoje, então é melhor guardar esse tempo precioso.
Viro-me e vejo uma mulher de cabelos rosa-choque, olhos verdes vibrantes e um olhar afiado como uma navalha. Ela encara Scarlett sem medo algum.
— Nossa, chegou a outra mãezinha, aff! Vocês não sabem brincar — Scarlett revira os olhos. — Mas tudo bem, já vou indo. O show vai começar e, Valentina, o Bruce devia descontar do seu atraso. Pode dar mau exemplo pras novatas. — Ela lança o último dardo e sai, o salto ecoando no chão.
— Aff, ela é insuportável! — Valentina resmunga, bufando. — Obrigada, Madison. — agradece, aliviada.
— Que nada. Mas me diga… desde quando o Bruce tá contratando crianças? — Madison pergunta com um sorrisinho divertido, cruzando os braços.
Valentina ri, e eu acabo rindo junto, meio sem graça.
— Prazer, sou Madison. — Ela me estende a mão, e o toque dela é quente, firme.
— Anne — respondo, com um meio sorriso.
Ela retribui com um sorriso mais aberto, os olhos brilhando.
— Ela precisa de dinheiro — explica Valentina. — E, como nós duas sabemos, quando não se consegue emprego, a vida acaba empurrando a gente pra cá.
Madison acena, compreendendo.
— Tudo bem, mas primeiro ela precisa aprender algumas coisas. — Ela cruza os braços e me encara de frente. — Primeira lição, Anne: você pode ser p**a, mas não é b***a. Aprenda a responder. Nesse mundo, os ingênuos são devorados vivos por mulheres como a Scarlett. Nem sempre vai ter alguém pra te defender, entendeu?
Engulo seco e aceno.
— A Madison tá certíssima! — diz Valentina. — Se deixar alguém te intimidar, você não dura uma semana aqui dentro. Tem que mostrar as garras, mesmo tremendo por dentro.
— Tudo bem. — respondo, tentando parecer firme. — É tudo novo pra mim, mas eu vou aprender.
— Assim que se fala. Agora, vamos arrasar. — Valentina aponta pra uma cadeira diante do espelho. — Senta aqui, garota. Vamos tirar essa carinha de menina assustada.
Sento, meio envergonhada, e deixo que elas me transformem. Madison solta meu cabelo, dá volume, ajeita as pontas. Valentina capricha na maquiagem, olhos marcados, lábios vermelhos, pele iluminada. Quando me entregam o vestido, engulo o ar: um modelo preto de paetês, curtíssimo, com decote reto no b***o e as costas nuas. O salto agulha preto completa o visual.
Vou até o banheiro e me troco. Quando me olho no espelho, m*l reconheço a mulher refletida ali. A maquiagem, o brilho, o vestido curto… tudo grita uma versão de mim que eu nunca imaginei. Uma parte de mim morre um pouco, mas outra desperta, a parte que precisa sobreviver.
Saio e as duas me observam.
— Está linda, Anne. Parece uma garota da vida de verdade. — elogia Madison, sorrindo.
Valentina, por outro lado, suspira.
— Tem certeza disso, Anne? Ainda dá tempo de mudar de ideia.
— Tenho. — Minha voz sai firme, mesmo que o medo pulse por dentro.
— Então vamos arrasar, garota. — Madison pisca pra mim.
Saímos as três do camarim, e sinto todos os olhares sobre mim. As outras garotas me encaram com desdém, algumas rindo baixo, outras apenas medindo minha coragem.
Valentina se inclina no meu ouvido e murmura:
— Se demonstrar medo, vai ser devorada em menos de uma semana por serpentes. Lembre-se disso.
Aceno, entendendo o recado.
— Tudo bem. Vamos começar. — digo, respirando fundo.
O salão agora está lotado. Vejo Bruce conversando com alguns homens, enquanto garotas se espalham, algumas sentadas no colo de clientes. Luzes coloridas piscam, o som alto vibra pelo chão. Sinto os olhares se voltando pra mim, alguns de curiosidade, outros de puro desejo.
Endireito a postura e ergo o queixo, como Valentina me ensinou.
Por dentro, estou em pedaços.
Mas por fora… sou apenas mais uma mulher tentando sobreviver.
Repito isso mentalmente, como um mantra, o único que me impede de desabar no meio do caminho.
Bruce me lança um olhar avaliador. Quando seus olhos percorrem meu corpo, ele sorri satisfeito e sobe ao pequeno palco no centro da boate.
— Boa noite, senhores! — sua voz ecoa no salão, carregada de falsa simpatia. — A casa está oficialmente aberta! Hoje, nossas melhores garotas vão fazer um pequeno show para vocês. E… — ele pausa, criando suspense — hoje temos uma apresentação especial. Uma menina que vale ouro, o preço da perfeição. Ela nasceu com o dom da dança, e tenho certeza de que, quando subir nesse palco, todos vocês vão saber exatamente de quem estou falando.
O público ri, aplaude. Valentina me dá um leve empurrão com o cotovelo, um sorriso cúmplice.
— Vai lá, estrela — murmura.
Subo com as outras garotas. As luzes piscam, o som vibra no chão e a fumaça cobre parte do palco. Dançamos. E naquela noite, como nas seguintes, vendi um pedaço da minha alma em cada movimento.
Mas o dinheiro não vinha.
Não o suficiente.
(...)
Dias depois...
Dois dias, é o prazo que temos antes de sermos despejadas do apartamento da Valentina. E hoje, no fundo, eu sei: essa noite eu não vou apenas dançar, pois apenas dança não esta resolvendo os nossos problemas.
Chegamos à boate, e Madison já está nos esperando no camarim.
— Meninas, atrasadas de novo. — diz, com as mãos na cintura e o batom impecável.
— Já chegamos e estamos prontas pra arrasar — responde Valentina, girando sobre os próprios pés. O vestido azul-marinho cheio de brilho acompanha o movimento, iluminando sua pele bronzeada.
Eu uso um vestido vermelho de cetim, tão curto que quase posso sentir o ar frio subindo pelas pernas. O salto agulha me dá confiança ou a ilusão dela.
Madison suspira, mas sorri.
— Vocês são um caos, mas um caos bonito. — ela pisca para nós e rimos.
Retocamos a maquiagem, o perfume, o batom. No espelho, vejo três mulheres que o mundo julgaria sem piedade e ainda assim, as três são mais fortes do que qualquer uma lá fora.
Quando desço para o salão principal, procuro Bruce. Meu coração bate rápido.
— Bruce, preciso falar com você. — digo, firme, mesmo com a voz trêmula.
Ele me encara de cima a baixo, cruzando os braços.
— O que foi agora?
— Eu preciso de mais dinheiro. O que ganho não é suficiente pra manter as coisas. — Falo rápido, antes que a coragem me abandone.
Um silêncio pesado se instala.
Bruce me observa por um momento longo demais, depois dá um meio sorriso.
— Tem certeza disso, Anne? Esse caminho é sem volta.
Percebo ali um traço dele que poucos veem, não é totalmente c***l, mas sabe exatamente o que faz. E usa isso.
— Tenho sim — respondo sem hesitar, mesmo com o coração gritando por dentro.
Ele ri baixo.
— Há vários clientes que já me pediram pra passar uma noite com você. Eu estava segurando, mas… agora vou liberar todos. — Ele sorri, satisfeito. — Agora sim, garota, eu vou ganhar dinheiro com você.
E sai, deixando atrás de si o cheiro de cigarro e poder.
Valentina e Madison se aproximam devagar.
— Anne, tem certeza? — pergunta Valentina, o olhar preocupado.
Suspiro.
— Olha pra mim, Valentina. Olha pra minha roupa, pro lugar onde tô. Eu já pulei tantos abismos que mais um não vai me matar. Talvez doa, mas… da onde eu vim até aqui, ainda posso dizer que tô no lucro.
Valentina sorri de lado, aquele sorriso cansado de quem entende demais. Madison concorda com um aceno lento.
— É um caminho que nem sempre tem volta, Anne — diz Madison, com ternura. — Mas a gente vai estar aqui. Somos da mesma vida, lembra? — Ela toca meu braço, e o gesto me aquece um pouco.
— Você é maior de idade — completa Valentina, com a voz firme, mas o olhar marejado. — Se quer isso… então vamos lá.
Fecho os olhos por um segundo.
Respiro fundo.
E me preparo para atravessar mais uma fronteira da qual talvez nunca volte.
Subimos no palco. As luzes piscam, a música começa a vibrar pelos alto-falantes, e o som ecoa dentro do meu peito como um segundo coração.
Hoje é diferente. Eu sei.
Mas preciso passar por isso.
Começo a dançar, deixando o corpo se mover no ritmo, sentindo cada batida preencher os vazios que o medo deixa.
A melodia me toma por inteiro, costumo dançar de olhos fechados, mas algo dentro de mim pede para abrir.
E quando abro…
Vejo.
Os olhos mais azuis que já vi em toda a minha vida.
Azuis como gelo, frios, intensos, e ainda assim... de algum modo, vivos.
Ele me observa em silêncio, e por um instante o mundo ao redor desaparece.
As luzes, os risos, a música, tudo some.
Ficamos apenas eu e aquele olhar, como se o tempo tivesse parado ali, entre um movimento e outro da dança.
Sinto algo estranho percorrer meu corpo, uma mistura de calor e vertigem, medo e curiosidade.
É errado. É perigoso.
Mas é impossível desviar.
A cada volta que dou, meus olhos o procuram de novo, até que, sem perceber, um pequeno sorriso escapa dos meus lábios.
Então o vejo se levantar, caminhar até Bruce e trocar algumas palavras com ele.
Logo em seguida, o homem desaparece por um corredor lateral.
A música termina, e o encanto se quebra.
Desço do palco junto das outras meninas, o coração batendo rápido, sem entender o porquê daquela sensação.
Bruce aparece com seu sorriso satisfeito.
— Anne, hoje é seu dia de sorte. — Ele esfrega as mãos, animado. — Foi contemplada com seu primeiro cliente. E o melhor — ele ri, debochado — é que ele é exigente. Espero que não jogue fora essa oportunidade de ganhar mais.
Sinto meu estômago revirar, mas tento manter a compostura.
— Eu não vou jogar fora. — respondo firme.
— Ótimo. — Bruce me dá um tapinha no ombro. — Agora vá pro camarim e tome um banho. Você tem cinco minutos. O cliente não gosta de esperar, nem de t*****r com mulher suada.
Ele sai, deixando o cheiro do cigarro e da pressa no ar.
Madison se aproxima, com o olhar preocupado.
— Sabe que é um caminho sem volta, né? — diz baixinho.
Assinto.
— Eu sei… mas agora já estou nele. — Tento sorrir, mas o rosto não obedece. — Vou lá conhecer meu cliente.
Entro no camarim, o coração acelerado. Me arrumo o mais rápido que posso.
Quando chego à porta indicada por Bruce, minha mão hesita na maçaneta.
Bato. Nenhuma resposta.
Respiro fundo e empurro devagar.
Assim que abro a porta, o ar parece desaparecer dos meus pulmões.
Ele está ali.
O mesmo homem.
Os mesmos olhos azuis, frios, brilhantes e, agora, ainda mais assustadores.
Fico parada, imóvel, tentando entender o que está acontecendo, pois no fundo queria fugir, mas minhas pernas não obedeciam.
Então ele fala.
— Espero que saiba dar prazer — diz, a voz grave, cortante, cada palavra caindo como uma lâmina. — Porque é pra isso que você está aqui. Pra ser fodida com força, e não pra ficar igual uma i****a parada na p***a de uma porta.
Meu corpo inteiro gela.
Ele se levanta, o olhar me atravessando.
— Faz o seu papel de prostituta direito. — continua, num tom c***l. — Senão reclamo pro seu chefe e não pago nada por uma mulher sem atrativos. Ele dá um passo à frente. — E eu não gosto de esperar.
A voz dele é uma ameaça disfarçada de ordem.
Um arrepio corre pela minha espinha.
Sinto o medo crescer, denso, como uma sombra que me engole.
Mas algo me diz com a mesma força do medo que essa noite vai mudar tudo.
E nada, absolutamente nada, será igual depois dela.
Continua...