- Capítulo Oito "Ninguém é Invencível"

4695 Words
Todo o batalhão de Arthur estava parado no meio da praça. A maioria dos homens colocaram os escudos de contenção presos nas costas e decidiram fazer uma pausa de alguns minutos para descansar, ao mesmo tempo que recolhiam as armas do comboio militar abandonado. A praça estava repleta de corpos de infectados dilacerados e destruídos, além de muito sangue manchando o chão que começara a ser dominado pela vegetação. A batalha tinha sido intensa e durado no máximo quinze a vinte minutos, porém esse curto período de tempo havia sido suficiente para cansar bastante os homens, que já tinham enfrentado outros infectados horas antes. Se eles dessem de cara com outra horda daquelas... — Arthur! Quanto tempo de descanso vamos ter? — indagou o braço direito do líder, abrindo a mochila que carregava para retirar uma barra de cereal. — No máximo dez minutos, Everton. Todos estão visivelmente abatidos e pra piorar estamos muito distante do acampamento. Aquela merda está a mais de quinze quilômetros daqui, não sei que ideia bosta fui ter de nos trazer para tão longe... — respondeu Arthur, limpando o excesso de sangue do rosto com uma flanela velha. O líder dos lutadores era um daqueles homens diferenciados, que eram raros de se ver. Arthur tinha uma força interior (e exterior) de dar inveja. Quando botava algo na cabeça, era quase impossível de tirar. Além do mais, tomava decisões com muita facilidade e gostava de seguir seus instintos. Por tais motivos os seus homens o seguiam cegamente, e se ele os guiasse para o fim do mundo, todos iriam com satisfação. Já Everton era um poço de insegurança, sempre perguntando a opinião do líder para poder agir. Entretanto, era o homem de confiança de Arthur, o qual podia contar com Everton até na pior das situações. E isso também era raro de se encontrar. Quanto a aparência e características, Everton era bem mais alto que Arthur, tinha pele da cor parda, cabelos pretos e grandes que precisavam de um corte com urgência, e também era forte, mas sua maior qualidade era a inteligência emocional. O braço direito do líder era bastante rápido e sabia como ser furtivo e manusear armas de fogo, adquirindo tais qualidades nos pesados treinamentos que teve em sua passagem pela Companhia Independente de Operações e Sobrevivência em Área de Caatinga (CIOSAC). Luiz Felipe se aproximou da dupla e começou a escutar a conversa. — Ei, você! Tire a porra do capuz! — ordenou o líder, apontando para o rapaz. Luiz se sentiu constrangido, mas abaixou o capuz e fixou o olhar no chão. — Meus homens estão assustados com sua aparência, porém quanto mais você se esconde, mais fica pior. Então deixe com que eles se acostumem! Everton aprovou a atitude de Arthur e estendeu a mão para Luiz Felipe, de uma forma amigável. — Seja bem-vindo! Meu nome é Everton Luna, e vi o que você fez. Se não fosse por você, esse homem teria morrido e as coisas sairiam do controle! — afirmou Everton, cumprimentando o rapaz cabisbaixo. — Obrigado... espero que eu me adapte a vocês. Quer dizer… que a gente se dê bem Arthur sorriu, passou a mão na barba e repousou a mão direita no ombro do “meio-infectado”. — Relaxe, meu amigo. Você salvou minha vida. Tenho uma dívida contigo. Quando finalmente chegarmos em casa iremos tomar uma cerveja e conversar olho no olho. Quero saber tudo de seu passado e também quero descobrir o que aconteceu para sua aparência estar assim. Vamos ter tempo para tudo isso, mas agora é um momento inadequado, Tamandaré é uma cidade entupida de infectados, principalmente a noite. Sorte que ainda é cedo, porém temos que aumentar o passo para não chegarmos depois do anoitecer... Luiz concordou e olhou para o lado, percebendo que ali no chão jazia o corpo de um dos homens de Arthur, ainda empunhando o escudo, mas sem o brilho no olhar. — Pobre Hélton... morreu jovem... porém não existe mais tanta distinção entre idades. Atualmente não sabemos mais nem se acordaremos vivos amanhã, quanto mais daqui a alguns anos? — divagou Everton, olhando para o mesmo local que Luiz olhava. O alto rapaz caminhou até o corpo mastigado e dilacerado de Hélton, pegou seu escudo ainda intacto, mas sujo de sangue, e entregou a Luiz Felipe. — Tome. Você vai precisar disso... — citou o rapaz, fixando os olhos verdes com seriedade no meio-infectado. Luiz aceitou um pouco relutante e empunhou o objeto, meio que sem jeito. — Mais respeito com os mortos, Everton. Tudo bem que ele não tinha mais família, mas ainda assim era um garoto bem prestativo. Não tive tempo de conhecê-lo melhor... espero que tenha ido para um bom lugar, se é que isso exista! — falou Arthur, agora passando a flanela nos músculos do peitoral, para retirar o excesso de sangue respingado. Everton passou a mão nos longos cabelos pretos e suspirou. — Pelo menos dessa vez nós conseguimos vários suprimentos e finalmente encontramos o comboio militar. Certeza que todo mundo encheu as mochilas de munição, e olha que viemos com quase nada. Agora me diga uma coisa: quantas perdas tivemos? — perguntou Arthur, coçando o queixo enquanto falava. — Três, senhor. Hélton, Flávio e Olavo. Sinto muito em dizer, mas foi Olavo que tentou ajudar o senhor e levou uma forte pancada do gigante e se quebrou por completo. Ele não resistiu aos ferimentos. Já os outros dois caíram em combate e morreram por hemorragia causada das mordidas. Foi um triste fim, porém todos estamos sujeitos a isso atualmente... não podemos fazer nada. Agora estamos no número de vinte e sete homens, quer dizer... vinte e oito, já que Luiz é um novo membro do grupo! — respondeu Everton, limpando os dois lados da foice que portava na calça jeans já imunda. Arthur revirou os olhos de preocupação. — Puta que pariu... três homens... que bosta de dia! E você também pare de me chamar de senhor! Antigamente eu era capitão da CIOSAC, agora sou porra nenhuma, somente mais um homem. Então vamos esquecer os velhos modos! — disse ele, encostando o machado no chão como se fosse uma bengala. — Sim se... eita... sim! Desculpe... O líder franziu as sobrancelhas, virou de costas para Everton e encarou todos os combatentes de frente. — Rapazes! Se preparem que em cinco minutos estaremos indo embora desse inferno! Não quero dar de cara com outra horda daquelas, porém se isso acontecer lembrem-se: soldado que vai a guerra e tem medo de morrer é um covarde! Selva!!! — rugiu Arthur, estendendo o machado para o céu. Todos os seus homens fizeram o mesmo com suas armas, mas nenhum deles gritou por medo de atrair os monstros dos arredores. — E o jipe? Será que tem como saber se ele ainda roda? — indagou um dos homens logo após aquele ato. Arthur virou-se para o veículo militar e abriu sua porta destravada. No volante havia um cadáver de um soldado, fedendo bastante e já em avançado estado de decomposição. — Que catinga do c*****o… Everton se aproximou do líder e puxou o corpo apodrecido, derrubando-o no asfalto. — Nem sempre temos azar! — falou Arthur vendo que a chave ainda estava na ignição, mas ao tentar dar a partida por três vezes, nada aconteceu. — Desculpe dizer, mas o senhor “zicou” o momento… não se canta vitória antes! — exclamou Everton em tom de brincadeira. Arthur balançou a cabeça negativamente, e logo em seguida pegou as armas dos cadáveres que estavam dentro do veículo militar, distribuindo rifles, pistolas e munição entre os homens. — Vamos ver pelo lado bom: dez homens estão com as mochilas repletas de suprimentos alimentícios, enquanto o restante se entupiu de armas e munições! Hoje o dia foi praticamente perfeito! Agora vamos nos ater a voltar para casa com segurança, ok? — disse Arthur, com dificuldades para fechar a mochila e passando o coldre do rifle recém encontrado pelo ombro. A situação até o momento estava sob o controle. Luiz ficou feliz por ter encontrado um grupo organizado e aparentemente amigável, pois fazia meses que não via nenhum acampamento de pessoas aos arredores de Tamandaré, somente os canibais, que definitivamente eram hostis. Talvez a maré estivesse fluindo a seu favor. ... Amara estava deitada na cama do seu quarto, no primeiro andar do hotel abandonado. O local era bem organizado: todos os móveis desnecessários (televisões, videogames, frigobar etc.) foram colocados para o lado de fora e só restaram os úteis no momento. As paredes do quarto eram brancas, o teto era formado por gesso (que começara a mofar), a cama de casal ficava sempre bem organizada com os travesseiros e lençóis a postos, e o único móvel extra do lugar era uma escrivaninha com um pires para colocar velas. Amara costumava ler de noite, e gastava boa parte do seu tempo (que quase sempre seria no tédio) com isso. A enfermeira amava limpeza, e vivia passando pano com desinfetante e água sanitária no seu dormitório. Quando ela viu o mofo no teto quase enlouqueceu e passou uma flanela molhada de água sanitária e vinagre no local, conseguindo conter o problema. Que o mundo não era mais o mesmo ela sabia, porém isso não significava que teria que dormir para sempre em um local desorganizado e sujo. — Amara? — chamou alguém, do lado de fora do quarto. — Entre! Luíza girou a maçaneta e entrou com cautela no recinto. Amara estava deitada na cama, vestindo sua tradicional calça jeans azul e camisa verde de mangas curtas, lendo uma revista sobre medicina e amarrando o cabelo em forma de coque. — Tá tudo bem lá fora? — indagou a líder do atual grupo, franzindo o cenho. — Tá sim... eu só vim pra conversar mesmo... — confessou Luíza, ajeitando a alça direita de sua camiseta preta e sentando na beirada da cama. — Já faz dias que está tudo calmo. Nenhuma novidade, nenhum ataque, nada. Isso é bom por um lado, mas péssimo por outro... Amara não entendeu onde a garota queria chegar. — Como assim? Estamos tranquilos por algum tempo e você acha ruim? Eu acho isso perfeito. Daí posso ler bastante, dormir o quanto eu quiser e por aí vai... — disse a enfermeira, jogando a revista de medicina em cima da escrivaninha. Antes que pudessem terminar a conversa, Célia adentrou no quarto com rispidez. — Licença... posso ficar com vocês por um momento? Albertinho acabou de comer e dormiu. Deixei ele no berço do quarto ao lado... — falou ela, caminhando lentamente na direção das duas mulheres e tossindo um pouco. — Pode vir. Célia, que era um pouco mais gorda que as outras, sentou na outra beirada da cama e amarrou os cabelos para trás. Ela estava trajando uma calça jeans preta, uma blusa vermelha sem estampa e andava com um canivete na cintura. Era bastante estranho vê-la portando isso, mas perfeitamente compreensível, porque geralmente Célia ficava grudada com o bebê e era a responsável por protegê-lo. — Continuando... o tédio de hoje em dia está uma merda. Mateus saiu com Cléber para vasculhar algumas casas próximas, Alice está brincando com Mariana e Sarah, Márcio tá junto com Yasmin na beira do mar e Pedro ficou responsável por fazer a vigília da tarde. Até o momento tudo perfeito! — disse ela, ajeitando os cabelos. Amara gostou do que ouviu e encostou a cabeça no travesseiro. — O que é pior? Ficar sem notícias ruins, ou começar a perder a esperança? — indagou a enfermeira, perdida nos pensamentos e olhando para o teto do quarto. Célia trocou olhares tristes com Luíza. — Amara... temos que agradecer a Deus por não termos mais tantos problemas. O hotel não é tão seguro assim, porém é longe o suficiente do centro da cidade, onde provavelmente está o maior ponto de infecção. Nós temos bastante comida, algumas armas e pessoas de bem. Isso é o que importa! Independente do que fossem dizer, só o que se passava na cabeça de Amara era o fato de não ter mais Isaac perto dela. Do cheiro do militar, do jeito tímido e ao mesmo tempo solidário etc. — Eu sei... eu sei... não é isso que me preocupa. Célia entendeu na hora o verdadeiro motivo, e abaixou a cabeça, pensativa. — Quando eu perdi Alberto foi bastante doloroso. Tudo aconteceu tão rápido... ele morreu no meio do caminho que fizemos até a sede da rádio. Eu tive que lidar com tudo sozinha, e a única pessoa que estava comigo no momento foi meu bebê. Além dele quem me forneceu ajuda foi Luana, uma ótima garota. Eu realmente não sei quais os planos divinos para conosco, porém uma coisa posso afirmar: as melhores pessoas estão morrendo. As mais carinhosas, solidárias, gentis e simples estão partindo. O mundo agora é dos maus. De homens que, ou são fortes o suficiente, ou são malignos o bastante para viver dia após dia sem peso na consciência. Perdemos Alberto, Isaac, Luana, Luiz, Carla e várias outras boas pessoas. É triste, porém é uma realidade que, ou aceitamos, ou então perecemos. Pelo menos penso assim, desculpe se ofendi com qualquer coisa que disse... — confidenciou Célia, cabisbaixa. Amara gostou da tentativa de ajuda oferecida por Célia e retribuiu com um simples sorriso. A enfermeira voltou a ficar sentada na cama e mordeu os lábios de apreensão. — Eu entendo seu ponto de vista, mas... não sei como explicar... sinto como se eles não tivessem morrido. Como se a qualquer momento fossem reaparecer, como Isaac e Luiz já fizeram dezenas de vezes antes. Eu sei que é quase impossível, porém se algum sobrevivente pegou a carta que deixei... mesmo depois de todo esse tempo... creio que ainda existem chances de nos reunirmos. Luiz e Isaac eram ossos duros de roer. Os dois formavam uma dupla quase imbatível... além de serem amigos. Carla então, muito próxima a mim! Eu a tratava como uma irmã. Só o que preciso é ver alguém conhecido de novo, eu só peço isso a Deus, que... E de repente Mariana entrou no quarto com tudo, com os olhos esbugalhados e interrompendo a conversa. — PESSOAL! VOCÊS PRECISAM VER ISSO! É URGENTE! — falou ela, partindo em disparada de volta. Amara recebeu uma violenta onda de adrenalina no corpo. Tanto ela como as outras duas mulheres entraram em estado de alerta e saíram assustadas. Célia foi se esconder no quarto ao lado junto com Albertinho, enquanto que Luíza e Amara decidiram ver o que estava acontecendo. Antes de sair do quarto, a líder pegou sua pistola Imbel GC que estava na gaveta da escrivaninha, carregada. — VAMOS PARA O TELHADO! — avisou Amara para Luíza, correndo até alcançar o último andar do hotel e chegar na escada improvisada que levava até o topo. As duas mulheres subiram com cautela e quando finalmente conseguiram ver o que estava acontecendo, se surpreenderam com a cena. A batalha travada era incrível. Vários homens lutavam contra infectados ensandecidos. Eles portavam escudos, machados, facões, foices e entre outros objetos cortantes. O mais impressionante era a forma como eles combatiam a horda: com bastante organização. Em nenhum momento quebravam a formação que tinham e sempre que as coisas ameaçavam sair do controle, eles improvisavam e voltavam ao normal. Amara ficou boquiaberta com o que via. Se eles fossem hostis, o grupo do hotel estava fodido. Só restava orar para que fossem possíveis aliados, pois tudo o que importava para sobreviver nesses novos tempos não era como, mas sim com quem você se aliava. No mundo assolado pela Lyssadyceps, a união fazia a força. ... Algumas horas se passaram enquanto os combatentes de Arthur caminhavam de volta para casa. Eles decidiram evitar o centro da cidade e começaram a se mover mais no sentido da beira mar, aproximando-se de uma zona cheia de hotéis e pousadas. Ali deveria ter muitos suprimentos que talvez fossem vasculhados alguns dias depois por aquela equipe. A rua era apertada o bastante e cheia de carros e vans abandonadas, o que piorava ainda mais a situação. Os homens decidiram tomar esse caminho por crer que não teriam tantos infectados como no centro, mas talvez estivessem errados. — Você já está cansado? — perguntou Arthur, tendo caminhado por vários quilômetros e aparentando estar bem. Everton respirou fundo e colocou um sorriso fingido no rosto. — Mais ou menos. A luta foi bem intensa lá atrás, e nós mal descansamos... — respondeu ele, segurando o escudo com desdém e com a foice presa no cinto da calça. Luiz Felipe vinha logo atrás, caminhando do lado de um rapaz n***o, de estatura baixa, careca e magro. — Desculpa me intrometer, mas... todos aqui estamos curiosos quanto a sua história... o que aconteceu pra você ser assim? Você está doente? — indagou o homem, falando baixo para não atrair atenção indesejada. Luiz não gostou muito da pergunta, porém não seria mal educado a ponto de ignorar o rapaz, e como queria se aliar àquele povo, ser sincero era um bom começo. — Enfim… eu fui mordido e por algum motivo não me transformei em uma daquelas coisas. Não sei se sou imune, mas nenhum monstro me ataca mais. Isso é ótimo, pois posso me mover de canto a canto sem ser perturbado. O homem franziu o cenho e surpreendeu-se com o que ouviu. — Então você é tipo... um milagre! Prazer, meu… meu nome é Erick. Eu quero ser um dos primeiros a ouvir sua história completa quando chegarmos no acampamento. Alguém como você deve ter passado por muita coisa! E, se o que me disse é verdade, talvez você seja “O Escolhido” pelo Nosso Senhor para nos livrar do mal! — Luiz se sentiu bastante confuso com tudo aquilo que o rapaz disse e ficou enjoado, porém fingiu estar tranquilo. — Talvez eu seja, talvez não. Primeiro vou conversar com Arthur, mas depois prometo contar tudo o que passei... — disse ele, coçando o antebraço esquerdo enquanto falava. — Obrigado! As ruas seguintes estavam lotadas de veículos de uma forma que dificultava até mesmo a passagem de pessoas. O asfalto estava tomado por um lodo escorregadio e também cadáveres em estado de decomposição avançado, até mesmo dentro dos carros abandonados. Na parte direita tinham várias lojas e mercados, enquanto que na parte esquerda haviam hotéis, pousadas e depois já se alcançava o mar. Vários becos estreitos do lado direito da rua em que estavam levavam a locais distintos e se enraizavam até o âmago da cidade. Aquele local definitivamente deveria estar cheio de infectados hibernando, não seria bom fazer barulho. Os combatentes caminhavam silenciosamente e em um ritmo lento, pois sabiam que já estavam perto o bastante de seu acampamento, restando somente alguns quilômetros a mais. Arthur liderava os homens, sendo seguido por Everton e os demais. Luiz conversava baixinho com Erick enquanto que a maioria dos combatentes encarava o meio-infectado com medo ou nojo. — Luiz! Olha só! — alertou Erick, apontando para o interior de um dos veículos abandonados. O carro era um HB20 cinza, de quatro portas e bastante acabado pelos efeitos da natureza. Os pneus estavam murchos e com lodo na parte de baixo, a tinta do para-choque já começara a sair e, além disso, o veículo estava coberto por sujeira e folhas secas. — O que é que tem? — perguntou Luiz, sem entender o alarde feito pelo rapaz. — Não está vendo? Um revólver! Arthur! Ei! Venha ver! — informou Erick, tentando manter a voz baixa, mas bastante ansioso pela descoberta. O líder virou repentinamente e veio até o homem. — O que foi, c*****o? — Olhe o que encontrei! Arthur limpou a poeira da janela e olhou para o interior do veículo. — Um revólver! Estamos com muitas armas, mas uma a mais não faz mal. Agora como porra vamos tirá-lo daí? — perguntou ele, coçando a cabeça. Mas antes que pudesse pensar, o empolgado Erick tentou abrir a porta do HB20 e acabou por acionar seu alarme. O barulho ecoou por entre as diversas ruas e becos aos arredores, provavelmente chamando a atenção de qualquer coisa que tivesse por ali. — QUE PORRA VOCÊ TEM NA CABEÇA, FILHO DA PUTA? — rosnou Arthur, empurrando Erick para o lado com um tapa no peitoral. O veículo parecia estar destruído e abandonado, porém a bateria ainda estava funcionando, e com a tentativa de invasão, acionou o alarme. O barulho era muito alto. — PUTA QUE PARIU! — xingou Everton, preocupado. — Me desculpa! Me desculpa! Eu não imaginei que essa coisa iria... — CALA ESSA BOCA, SEU INÚTIL! HOMENS, A SEUS POSTOS! — ordenou o líder, fazendo com que todos instantaneamente empunhassem os escudos e entrassem em formação. Luiz Felipe, em uma tentativa de cessar o barulho, deu uma forte cotovelada na janela, fazendo o vidro explodir em vários pedaços. Com isso ele destravou a porta, sentou no banco do motorista e desativou o alarme. — Ainda bem que você... “ROAAAAARGH!” Gritos inconfundíveis começaram a se alastrar pelos becos e ruas escuras. Os infectados não iriam deixar aquilo passar em branco. Eles definitivamente escutaram o barulho do alarme. — PREPAREM-SE!!! Dois cinturões de homens foram formados, um na frente e outro na parte de trás, enquanto que o restante ficou no meio para combater os monstros que conseguissem sobrepujar a defesa. Para atrapalhar tudo tinham os veículos abandonados, fazendo com que os lutadores não conseguissem formar duas linhas perfeitas. Arthur não estava acreditando no que via. Na rua da frente vinha mais de trinta infectados, correndo, pulando e passando por entre os veículos abandonados com facilidade. Se aquela quantidade de monstros se chocasse com o frágil cinturão formado pelos homens... — RECUAR! RECUAR! — ordenou ele, andando para trás com cautela enquanto não tirava a vista da horda. Infectados saíam de lojas, mercados, casas e hotéis abandonados. Vários deles se machucavam quando caíam de primeiros e segundos andares, porém ainda assim continuavam a vir. Luiz Felipe tinha ficado como um dos integrantes do cinturão traseiro junto com Erick e outras pessoas. Ao ouvir os gritos de “recuar” do líder, eles acataram a ordem. Porém quando o rapaz olhou para trás, percebeu que não tinha para onde fugir: uma horda maior ainda vinha da rua de trás. Os poucos segundos que o alarme ficou tocando foi o suficiente para atrair mais de cem infectados. — ARTHUR! NÃO TEMOS PRA ONDE IR! — falou Luiz, segurando firme o escudo e empunhando o facão com força. — PUTA MERDA! PUTA QUE PARIU! HOMENS, SIGAM-ME! O líder, percebendo que se permanecesse ali seria morte na certa, correu na direção de um apertado beco do lado direito, que levava para o interior da cidade. Os homens o seguiram sem pestanejar. O problema do beco é que ele era bastante apertado. Tão estreito que só caberiam quatro homens lado a lado, porém compensava de comprimento. Haviam muros dos dois lados, altos o suficiente para que ninguém conseguisse pular sozinho, e com pedaços de ferro retorcido nas pontas. Arthur corria desesperadamente, guiando seus homens para o final do beco. As duas hordas se chocaram, mas logo se recuperaram e começaram a perseguir os combatentes pelo apertado beco. Luiz Felipe e Erick foram os últimos a passar pelo caminho, ficando atrás de todo mundo. Arthur e a maioria dos homens conseguiram sair do local, reunindo-se na rua seguinte e esperando com que o restante dos rapazes saísse do beco. — ERICK! TEMOS QUE SEGURÁ-LOS! — falou Luiz, enquanto corria. — NÃO DÁ! SÃO MUITOS! E ele tinha razão: os infectados passavam por cima uns dos outros para poder correr no apertado beco. Eles não se preocupavam com eles próprios, só se importavam em alcançar as presas. Definitivamente o grupo de Arthur não teria chances contra aquela imensa horda, e alguém precisava segurá-los para que os demais pudessem fugir. — ERICK! E foi aí que Luiz Felipe parou de correr e virou de costas. Ele sabia que não tinha como ser infectado pelos monstros, então faria de tudo para atrapalhá-los e dar tempo para que os demais fugissem. — O QUE PORRA VOCÊ ESTÁ FAZENDO? VAMOS EMBORA! — urrou Erick, parando também e puxando Luiz pela camisa. Mas era inútil. Luiz empunhou o escudo firmemente com a mão esquerda e levantou o facão com a direita. — EU VOU SEGURÁ-LOS O MÁXIMO QUE DER! VÁ EMBORA COM OS DEMAIS! — afirmou ele, tremendo. — SÃO MUITOS! VOCÊ SERÁ ATROPELADO E VAI MORRER ESMAGADO! Arthur, percebendo a intenção dos dois rapazes, voltou para o beco e acenou para que eles não fizessem isso. — VÁ EMBORA! EU VOU FICAR BEM! — disse Luiz mais uma vez. O líder balançou a cabeça negativamente, mas decidiu partir junto com os demais sem dizer uma palavra, pois sabia que alguém tinha que fazer aquilo. — SEU IDIOTA... NÓS VAMOS MORRER! — falou Erick, ficando lado a lado com Luiz Felipe e empunhando o escudo também. — ERICK! EU JÁ SOU UM INFECTADO! NÃO TEM RISCOS PARA MIM! VÁ EMBORA TAMBÉM! EU ME VIRO! O rapaz sorriu com nervosismo e apertou o cabo da sua machadinha. — ESSA MERDA TODA FOI CULPA MINHA… TENHO QUE FAZER ALGO PARA COMPENSAR! — ENTÃO PREPARE-SE! Mais da metade do beco já estava tomado pelos monstros. Em menos de cinco segundos eles se chocariam com os escudos dos dois homens. Aquela definitivamente seria uma missão suicida. — É AGORA! — urrou Luiz, trêmulo. Os infectados vieram com tudo e se chocaram contra os escudos de contenção dos dois combatentes. O peso e a força exercida pelos monstros era tão grande que quase que Luiz e Erick caíram de imediato. O facão e a machadinha atingiam os corpos dos doentes com violência, abrindo graves feridas e decepando mãos, antebraços, pedaços de cabeças etc. — NÃO VAI DAR PRA AGUENTAR! NÓS VAMOS... E então Erick cedeu. Luiz não podia culpá-lo. O peso exercido pelos vários infectados contra os escudos foi tão forte que derrubou o pobre rapaz. E tudo aconteceu muito rápido: Erick começou a ser dilacerado por mordidas e arranhões. — AAAAAARGH!!! Então os monstros finalmente conseguiram a brecha que tanto queriam. A multidão passou por cima do corpo de Erick e imprensou Luiz contra a parede esquerda do muro. — AAAAAH! — urrou o meio-infectado, que mesmo sendo ignorado pela horda, ainda assim se sentia sufocado. E foi aí que Luiz Felipe perdeu o equilíbrio e caiu. O rapaz foi empurrado pelos monstros e bateu de costas no chão lodoso, sendo pisoteado por vários infectados que passavam no beco. — AAAAARGH... AAAAAH! Os monstros não queriam saber. A cada segundo um ou outro pisava no escudo, na mão direita e nas pernas de Luiz. A multidão começou a sufocar o homem. A luz do sol não alcançava mais seu rosto. A única coisa que ele pôde fazer foi se encolher todo e colocar o escudo na frente do rosto e do peitoral, deixando o resto desprotegido e sendo pisoteado violentamente. Luiz não sabia mais o que fazer. Tudo ao seu redor tinha escurecido e até mesmo a dor não era mais a mesma. No meio do atropelamento ele pôde ouvir em alto e bom som a voz de uma pessoa que tanto amava. Carla. Ela estava sussurrando em seu ouvido. “Calma, meu amor. Tudo vai passar... calma...” dizia ela suavemente, sem realmente estar ali. Foi aí que Luiz perdeu as forças. A tormenta não passava e o seu corpo finalmente cedeu. Ele não suportou. Tudo pelo que estava lutando... tudo feito em prol de uma vingança que nunca aconteceria. Algo vazio. Luiz Felipe não conseguiu o que tanto almejava. Ele se perdeu sozinho. Abandonado e pisoteado em um beco imundo qualquer. Quem um dia foi um grande líder e tinha tudo para ter seu nome marcado na história do pós-apocalipse, acabou sendo pisoteado no canto de uma parede. Esse era o novo mundo. Nem tudo é o que parece ser. Nem sempre terão finais felizes. Nem sempre o bem vencerá o mal. Pois a vida é assim: Injusta.
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