- Capítulo Dois "O Prisioneiro"

2885 Words
Isaac estava preso com correntes nas duas mãos. Ele passava todos os dias dentro da “cela improvisada” que o Coronel arranjou para o militar e mais onze homens. O calor era quase insuportável, porém Isaac ficava o dia inteiro vestindo um short azul velho e sem camisa, então isso não era problema muito grande. A “casa” onde os prisioneiros ficavam não tinha móveis nem nada, eram somente as paredes e algumas modificações foram feitas: no lugar das portas e janelas se colocaram grades e, para a iluminação do recinto, ficava uma lâmpada acesa durante a noite inteira. Sim, o povo do Coronel arranjou vários geradores de energia em suas buscas pela cidade e o conectaram em algumas casas com sua devida importância (na enfermaria, na prisão, na casa do Coronel, no salão das armas etc.). O dia a dia na prisão era o seguinte: de manhã saíam com escolta para “tomar sol” e comer, de tarde recebiam depósitos com comida e à noite comiam lá dentro de novo. Sempre três refeições ao dia. Isaac tinha emagrecido um pouco, chegando a ser perceptível, porém não tinha decaído tanto porque ele fazia o máximo de exercício que podia dentro da cela. Na prisão tinham quatro celas, na qual ficavam três homens em cada uma delas. Nas outras três, Isaac não conhecia ninguém. Porém na que ele estava, tinha um homem conhecido: Bruno Filho. Bruno foi encontrado com o braço quebrado dentro de uma das casas depois de ter matado o Touro que assassinou Gabriela. O Coronel sempre gostou de atos heroicos, e ao ver aquela cena, decidiu salvar Bruno também, ordenando com que seus médicos cuidassem do ex-policial. Mesmo assim, o braço não sarou direito e Bruno ficou com movimentos limitados. Porém era melhor do que ter morrido. Tudo o que ele queria era ver sua filha de volta. E Bruno daria o próprio sangue para conseguir isso. ... — Isaac... acorde! — chamou Bruno, cutucando o peito desnudo do militar. Isaac abriu os olhos com dificuldades e levantou a cabeça. — Já tá na hora? — indagou ele, sentando-se no canto da parede suja e um pouco mofada. — Ainda não, mas daqui a pouco eles vão nos levar para comer, então é melhor ficar acordado, ou poderá perder a refeição! O outro companheiro de cela deles era magro, n***o, vestia um short verde-musgo e tinha pouco cabelo, além de ser calvo. O seu nome era David Miranda, e antes de tudo ele era um mecânico. — David, acorde também! — falou Isaac, pondo-se de pé. O rapaz abriu os olhos castanhos e passou a mão no rosto, sentando-se também. — Mais um dia nessa merda... — resmungou ele, cuspindo de lado. Isaac e Bruno se entreolharam. A pior sensação de todas era a de impotência, e eles não sabiam o que fazer para sair daquela situação. Agora estavam aprisionados em uma das casas do próprio condomínio onde antes moravam e eram donos. — Me arrependo até hoje de ter mandado o Coronel se foder! Ah... maldito dia que eu fui inventar de dizer isso... — falou David, levando as duas mãos até a cabeça. — E até quando você vai ficar aqui? Ele não te deu um prazo ou algo do tipo? Eu e Bruno mesmo estamos fodidos, nunca mais sairemos, só quando isso aqui desabar... David riu. — Cara... você não conhece o Coronel mesmo, ele é tão maluco, mas tão maluco, que disse que eu ia ficar aqui até quando ele quisesse. E a vagabunda da mulher dele, Maria Eduarda, ainda fez questão de piorar minha situação, dizendo ao Coronel que se não fizesse eu pagar pelo que falei, serviria de exemplo para os outros xingá-lo também... filha da puta! — desabafou o rapaz, respirando fundo depois. Isaac caminhou até as grades da janela e encostou a cabeça no ferro. Ele só conseguia pensar em Amara. Ficar preso ali por mais de seis meses, praticamente sem ter o que fazer e sem saber se as pessoas que amava estavam vivas ou não era uma tortura ilimitada. Tinha alguns momentos que ele reclamava com Deus por tê-lo salvo. O canivete do Coronel não tinha acertado em cheio seu abdômen, e por causa disso ele conseguiu sobreviver, além de ter sido cuidado por uma das enfermeiras do novo grupo. — Será que eles sobreviveram? — perguntou Bruno, pegando uma pequena pedra no canto da parede e fazendo mais um risco no chapisco, simbolizando mais um dia que se passava ali dentro. — Você faz essa pergunta todos os dias, e sempre vou estar com a mesma resposta na ponta da língua: eu não sei. Só lembro de ter visto o ônibus passando com tudo e atropelando dezenas de infectados. Eu creio que sobreviveram sim, tenho fé nisso, porém nunca afirmo de certeza, pois a decepção pode ser pior. — Caras… eu realmente gosto de vocês. Antes da “guerra” que tivemos, as pessoas morriam de medo ao falar nos “Colinenses”. Todos tínhamos vocês como monstros, mas pelo visto foi mais uma construção ideológica do Coronel para poder justificar o “mata-mata” que ele queria tanto ter! — confessou David, bufando. De repente a porta da entrada principal da prisão improvisada se abriu. Isaac enfiou o rosto entre as grades para tentar enxergar quem é que vinha, mas não obteve sucesso. A única coisa que eles conseguiam era ouvir os passos de alguns homens que se aproximavam. — Afaste-se da grade! — ordenou um dos dois rapazes armado com uma metralhadora M4, pegando as chaves da cela e abrindo-a. Isaac, Bruno e David se encostaram na parede. Só que dessa vez não seria um dia comum. Por trás dos dois homens armados apareceu o Coronel, surpreendendo os prisioneiros. Ele entrou na cela, olhou aos arredores e cruzou os braços. O Coronel vestia uma camisa vermelha de manga longa, uma calça jeans azul-escuro, e portava um revólver prateado. — Bom dia, rapazes… hoje é um dia especial, pois tenho uma proposta pra vocês... — começou falando, enquanto passava o frio olhar entre cada um dos três homens. Isaac cerrou os punhos e franziu as sobrancelhas. Ele nunca tinha odiado alguém tanto na vida como odiava o Coronel. Não era algo normal. — Vejam só, estamos mortos de tédio. Esse é um dos, senão o maior, problema do apocalipse. O povo precisa de diversão... de entretenimento... e atualmente não se tem muito disso. Os índices de criminalidade aumentaram bastante, além de surgir uma revolta aqui e ali, então eu preciso tomar certas medidas para ocupar a mente das pessoas, como dizia aquele velho ditado, né: “Mente vazia, oficina do diabo”... O líder estalou os dedos e sorriu enquanto andava pela cela. — Estou enfrentando alguns problemas para lidar com o tamanho da população. Já tivemos casos de brigas por besteira, assassinatos, estupros e agora de insubordinação, não é mesmo, David? — confessou o Coronel, fazendo David começar a se tremer. O chefe daquela comunidade suspirou e começou a coçar o queixo. Hoje ele estava mais calmo do que o normal, e falava com leveza e paciência. — E daí? Eu não ligo para seus problemas e os de sua comunidade. — disse Isaac, exalando todo o seu ódio, porém mantendo a calma na voz. O Coronel girou o revólver na mão direita algumas vezes, respirou fundo e riu baixinho. — Talvez... somente talvez... possamos melhorar essa condição de vida de vocês... Bruno beliscou de leve o antebraço de Isaac, como se estivesse mandando não fazer nenhuma besteira. — Como assim? — Se aceitarem o que vou propor, darei alguns benefícios para vocês, como comidas melhores, camas mais confortáveis que o chão para dormir, roupas novas e talvez… repito: talvez uma saída escoltada a mais durante o dia. Bruno e Isaac se entreolharam. Aquilo estava muito estranho, o Coronel não era do tipo bonzinho. Ele sempre tinha intenções duvidosas. — Quando a esmola é demais, o mendigo desconfia... o que é que você quer? — indagou o militar, ainda encostado na parede como os outros prisioneiros daquela cela. — Como eu vinha dizendo, estou com problemas quanto ao entretenimento da minha comunidade. Os homens estão brigando mais entre si, alguns se matando, outros estuprando e daqui a pouco será instalado o caos. Eu não quero isso. Problemas internos são piores do que externos. Então resolvi dar um basta... Criei uma Arena! — disse ele, estendendo os dois braços para parecer mais melodramático. — Arena? Que porra é isso? O Coronel apontou o revólver para a cabeça de Bruno e fixou os frios olhos castanhos nos olhos de Isaac. Bruno engoliu em seco ao ver o asqueroso braço cheio de veias pretas e saltadas segurando uma arma em sua cabeça. Ele não podia fazer nada, a não ser rezar para que o gatilho não fosse puxado. — Vamos fazer o seguinte: quando você falar diretamente comigo, terá mais respeito. Se eu perceber que me desrespeitou mais uma vez, ou que então ironizou qualquer frase minha, irei puxar o gatilho e matar seu amigo. Combinado? — ameaçou o Coronel, sem hesitar ou tremer. Agora a situação tinha esquentado. — Ok. Desculpe. — Muito bem. Quero mais respeito exatamente por você não passar de um merda, um lixo, um bosta que não conseguiu matar nem mesmo uma única pessoa do meu grupo quando invadimos o seu lar. Lembre-se: seu líder morreu e eu explodi a esposa dele com um tiro de espingarda no rosto, além de ter matado vários dos seus. Então está na hora de começar a me respeitar como mereço, eu conquistei isso. Agora vamos recomeçar... você vai dizer: “Ok, senhor. Me desculpe por ter sido um idiota, peço seu perdão”, e depois vai se ajoelhar — ordenou ele, ainda apontando a arma para Bruno. Isaac cerrou os dentes, fechou os olhos e tentou controlar todo o ódio que sentia naquele instante. Bruno era o que mais torcia para que o militar se controlasse, pois sua cabeça literalmente estava em jogo. — Ok... senhor. Me... me desculpe por ter sido um idiota, peço seu perdão... — falou Isaac, encarando ameaçadoramente o líder daquele grupo. — Agora ajoelhe-se. O militar se ajoelhou com lentidão e respirou fundo. Ele estava se sentindo muito humilhado, porém faria aquilo de novo se fosse necessário para salvar a vida de seu único amigo vivo. — Muito bem. Vamos voltar ao que interessa... O Coronel abaixou a arma e Bruno deixou toda a tensão ir embora, respirando fundo e tentando controlar a tremedeira que sentia nos punhos. — Sobre essa Arena... ela vai ser algo diferente, algo um pouco macabro, mas que vai ocupar a cabeça vazia dos idiotas úteis que tem na comunidade... Bruno ainda não estava conseguindo prestar atenção em nada, e Isaac continuava encarando o Coronel, sentindo muita raiva. — Explique, por favor... — pediu David, com a voz trêmula. — Nessa Arena vocês serão meus gladiadores, contra várias dificuldades e obstáculos! E, como sou bonzinho, os que sobreviverem ao final de cada batalha terá atendimento médico e ganhará um “benefício”, que será escolhido pelo próprio vencedor. O trio de prisioneiros se entreolhou e não entenderam bem o que é que o Coronel queria com isso. — Como assim? — Toda semana terão shows! É o que o meu povo precisa, se entreter! Irei soltar alguns de vocês lá dentro contra infectados! E daí vocês vão fazer o que melhor sabem: sobreviver. Talvez eu dê alguma arma branca para se defenderem, ou deixe-os amarrados para causar mais tensão! Os que forem melhor se saindo ganharão regalias e alguns prêmios também, mas aí é com vocês! Façam um bom trabalho e serão bem recompensados. Agora quero saber o que vocês acham dessa novidade maravilhosa... Isaac se levantou e deu um passo à frente. O Coronel o encarou ameaçadoramente, esperando com que o rapaz fosse tomar alguma atitude impensada ou burra. Foi aí que Isaac abriu um sorriso irônico. — Eu aceito. — disse o militar, agradando o Coronel instantaneamente, que também sorriu ao ouvir aquilo. ... Os primeiros raios solares do dia foram aparecendo. Os sapos coaxavam e os grilos faziam seus ruídos irritantes a cada dez segundos no meio da floresta. As folhas caíam lentamente e o vento batia na cabana de Luiz Felipe com leveza. A sensação de paz ali era maravilhosa, porém não tinha nada bem no interior de Luiz. Ele se tornou uma pessoa fria e amarga. O Luiz Felipe de antes era decidido, inteligente, achava-se um ótimo líder e tinha uma força de vontade absurda, já esse novo Luiz, só o que sobrou foi a força de vontade, pois o resto se resumia a vingança. — Hmpf... O rapaz se sentou no interior da pequena barraca de acampamento e começou a vasculhar sua mochila. Luiz carregava consigo uma pistola Imbel GC, uma Glock 25, quatro pentes de munição de cada, uma lanterna com pilhas abastecidas, algumas latas de atum e sardinha, pacotes de arroz e feijão, dois conjuntos de roupas extras, uma escova de dente gasta, uma pasta de dente pela metade e outros objetos e apetrechos úteis. Por sorte ele tinha encontrado aquela bela e espaçosa mochila militar, a qual carregava para onde ia. — Porra... — resmungou o homem, vendo que uma das barras de cereais que ele trazia estava vencida há muito tempo. Mesmo assim comeu-a. O que seria uma dor de barriga para quem está passando fome? E foi aí que ele sentiu a vontade de reler a carta deixada no corpo de bombeiros de Palmares pela milésima vez. Sim. Amara e os demais tinham sobrevivido e partido de lá. Os sobreviventes seguiram o combinado, porém deviam estar desnorteados e extremamente desolados pelo ocorrido na batalha do condomínio. Luiz não os culpava por terem ido embora, talvez fosse a coisa certa a se fazer até mesmo antes da guerra. O rapaz pegou a folha de papel A4, desenrolou-a com cautela e forçou a vista para ler mais uma vez (mesmo já tendo decorado letra por letra). “Caros amigos e sobreviventes do ataque ao condomínio. Eu não sei quantos de vocês sobreviveram (e nem se sobreviveram), porém me sinto no dever moral e também familiar de avisá-los: eu (Amara Nakamura), Mariana, Alice, Pedro, Célia, Albertinho, Luíza e Sarah estamos vivos. Nosso plano de fuga quase deu certo, pois no meio do caminho fomos metralhados e muitos de nós se foram. Contudo, o que quero dizer não é exatamente isso, mas sim o fato de que estamos indo embora daqui. Já se passaram dois meses e ninguém apareceu, até mesmo os infectados diminuíram na região, e por decisão unânime todos quiseram se mudar. Para onde exatamente eu não sei, só que a cidade escolhida foi Tamandaré, litoral do nosso estado e seguindo o que foi previamente acordado no condomínio. Lá estaremos perto do mar, com muitos suprimentos intocados, peixes, barcos e tudo mais. Com um pouco de sorte podemos sobreviver! E, para finalizar esta carta, eu quero pedir desculpas aos amigos que se foram e dizer que eu torço muito para que quem a encontre seja Isaac. Se realmente meu desejo for atendido pelo destino, tenho algo a dizer: Isaac, Meu amor, eu te amo muito, muito e muito. Nunca vou lhe esquecer. Saiba que eu lembrarei de cada um dos nossos momentos juntos. Infelizmente já se passaram meses e você não deu notícias, só me resta acreditar que está morto (mas no fundo irei manter as esperanças!). Por fim, desejo sorte a quem estiver lendo e peço que venham nos encontrar. Amara Nakamura. P.S.: Se alguém que não nos conheça encontrar essa carta, por favor: deixe-a onde encontrou. P.S.2.: Se quem encontrou a carta for do grupo do Coronel, saiba que um dia vamos nos vingar, seus filhos da puta!”. Ao terminar de ler, Luiz Felipe abriu um sorriso bobo. Ele conhecia Amara bem e lia cada uma daquelas palavras com a voz dela em sua mente. Infelizmente muitos tinham morrido no trajeto, talvez até mais do que as pessoas que ela citou na carta, pois já haviam se passado seis meses desde a batalha. Se arrependimento matasse, nesse exato momento ele teria morrido, pois a cada vez que lia aquele pedaço de papel desejava mais e mais ter mandado Carla junto com o grupo de Amara. Mas não tinha o que se fazer. Luiz abriu o zíper da cabana e botou o rosto para o lado de fora. Ele ainda estava na mesma floresta em que tinha salvado o casal dos e**********s. Por medo de sua aparência, o casal decidiu fugir, o que já era esperado. Mas o rapaz tinha se conformado, pois aquilo era uma escolha pessoal de cada um, isso definia a liberdade. Só que quando Luiz Felipe saiu da cabana, ele teve motivos para sorrir. Pela primeira vez em muito tempo. Uma imensa placa posta na beirada de uma rodovia que tinha perto daquela floresta avisava: “Bem-vindo a Tamandaré”. Luiz tinha acampado ali perto já por isso. Ele finalmente havia chegado ao seu destino. Em breve se reencontraria com seus amigos e sentaria ao redor de uma mesa com eles para matar a saudade. Ou não.
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