Capítulo 1
O garçom deixou mais uma rodada de Aperol Spritz na mesa.
Era a primeira vez que Sabrina bebia o drinque de aparência alaranjada servido num copo com pé. Maria explicou que a bebida era feita de três partes de Prosecco, duas de Campari Aperol e uma de água gaseificada. A decoração era por conta de uma fatia de laranja e cubos de gelo.
Maria era a sua melhor amiga. As duas se conheceram havia anos, saíram juntas da cidade onde nasceram para vencer na capital. Bem, a história era outra. Elas jamais cogitaram morar numa metrópole. Por isso sossegaram seus rabos adolescentes numa pacata cidade de fazendas, de seis mil habitantes, o dobro de moradores de Belvedere, onde ambas nasceram.
Seis meses atrás, Maria conheceu Julinha em uma festa da faculdade e se apaixonaram. As três então passaram a dividir o apartamento.
Agora elas estavam no bar que fazia concorrência com o salão country na esquina da mesma rua. Uma hora atrás, ela foi notificada que Maria e Julinha se mudariam de casa, iam se casar, fizeram o registro da declaração de união estável e, em breve, adotariam um cachorro. Antes de saber disso, Sabrina fora comunicada da sua demissão da agropecuária em que trabalhava sem carteira assinada, escondida no estoque, recebendo o salário por fora. Sem emprego, não tinha como bancar o apartamento sozinha. A chave de ouro para coroar a m***a toda veio da própria família quando lhe pediram dinheiro emprestado, a mãe doente, o pai aposentado trabalhando sozinho na chácara que não rendia nada e a irmã mais velha desempregada.
Era fato que Sabrina Velasco, que usara documento falsificado para entrar no bar em razão de ter apenas dezessete anos, vivia o ápice do seu inferno astral. E, naquela noite, não foi beber pra se distrair, e sim pra fugir da realidade através de um belo porre.
Maria e Julinha, por outro lado, bebiam pra comemorar.
Aquela era a noite dark side, só tocava música deprê, o que combinava com o seu estado de espírito.
― Mandei pro pai os meus últimos tostões furados. ― disse Sabrina, depois de esvaziar a bebida do copo. ― A grana de uma rescisão de poucos meses de trabalho não é grande coisa. O meu ex-chefe, filho de uma égua, alegou que eu tava no período de experiência.
― Acho melhor conversar direitinho com ele. ― Falou Julinha, na sua morenice latina de olhos verdes e cabelos escuros ondulados ― O cara não assinou a sua carteira, e dizem que ele sonega imposto pra Receita Federal, talvez você consiga entrar num acordo justo.
― Nada de ameaças, pessoal. O cara é sujo, fim de papo. ― Alegou Maria, tão loira e bonita quanto Jodie Foster nos seus vinte e poucos anos. ― Pega o dinheiro e cai fora. Nunca gostei de vê-la trabalhar lá. A gente sabe se cuidar, mas você, anjinho, é muito ingênua.
― Sou uma malandra das ruas. ― Brincou, numa voz arrastada por causa da embriaguez.
Julinha estendeu a mão por cima da mesa e pegou a de Sabrina, endereçando-lhe um olhar carinhoso.
― A Receita Federal vai colocar esse cara no xadrez a qualquer momento, é bem melhor que você não precise mais desse emprego.
― Se quer saber, nós também vamos sair da agropecuária. Consegui uma entrevista num consultório odontológico, como recepcionista, e a Ju vai trabalhar como assistente da nossa professora de Sociologia da Educação, a grana é pouca, mas ajuda.
Sabrina suspirou profundamente.
― E eu voltarei pra casa. ― Balançou a cabeça, com pesar. ― Não tem emprego pra mim nessa cidade, e isso é uma d***a. Gosto muito daqui, do estilo Arizona brazuca. ― Riu-se, com amargor. ― Voltar significa encarar o tipo de vida do qual fugi, pais religiosos, a parentada se metendo um na vida do outro, meus antigos amigos fofoqueiros e um ex-namorado i****a que já devia ter sido pulverizado do planeta. ― Deu de ombros, entristecida. ― Ok, não quero estragar o momento de vocês. Garçom, uma caipirinha de morango! ― Ela se voltou para as amigas e resmungou: ― Vou beber a grana do vale-transporte.
― Tudo vai se ajeitar, você vai ver.
Sabrina esboçou um leve sorriso para Maria, sabendo que viver novamente sob o mesmo teto com os pais não ajeitaria nada. Pelo contrário, bagunçaria a sua cabeça.
Sorveu toda a caipirinha em vários goles, ainda bem que estava doce pra caramba, quem a fez deixou cair o pote de açúcar na vodca e nas frutas.
Recostou-se no encosto da cadeira e suspirou, desanimada.
Custou-lhe sair de casa. Sentia-se responsável por toda aquela pobreza, e não era apenas a econômica. Ela dava trabalho para os seus pais desde a infância. Hiperativa, parava no hospital com luxações e fraturas, nada grave. Brigas na escola e no futebol, que jogava com os amigos do bairro. Foi expulsa das aulas de catequese logo na paróquia em que os pais frequentavam, a mãe era prima do padre. O pai se apegou à filha mais velha, calma, estudiosa, o futuro da família. Bruna conseguiu bolsa de estudos, fez faculdade. Aos 23, estava tão desempregada quanto ela, Sabrina, com o ensino médio incompleto.
Mas havia outro motivo que a afastava de casa. O lar cristão também era a moradia de gente julgadora, rígida e preconceituosa. Ninguém se admitia como racista e homofóbico, mas os seus pais o eram.
Sabrina era a ovelha desgarrada que voltaria com o r**o entre as pernas dando razão aos pais quando lhe diziam que ela só servia pra dar trabalho.
― Aonde vai?
Ouviu Maria perguntar. Respondeu com um meneio vago de cabeça, sentindo que explodiria em lágrimas. O peso do mundo nos ombros.
A versão de The Animals para It’s All Over Now, baby Blue, do Bob Dylan, carregou a atmosfera do bar de tristeza e de uma saudade do que não se lembrava de ter vivido. Ali não havia pista de dança, apenas mesas e cadeiras, e o longo balcão com o barman hipster do outro lado.
Tudo estava acabado, a sua vida com as amigas, sem muita grana, mas leve. Os Velasco viviam no reino da hipocrisia, porque acreditavam que a felicidade estava na boa imagem da família, na fachada impecável sem fraqueza nem defeitos.
Será que um dia lhes contaria que tentou se m***r na vez que dormiu por um dia inteiro? Os soníferos da mãe serviram para algo mais útil que vencer a insônia. O plano deu errado, e Deus não a quis ao Seu lado.
Ela desceu a escada caracol com a intenção de se enfiar no banheiro, fechar-se no reservado da privada e chorar um pouquinho, um tiquinho só.
Esgueirou-se por entre a multidão que se aglomerava em pequenos círculos de conversa em torno das mesas e procurou não esbarrar em ninguém.
Aquele era um lugar moderno, do tipo que combinaria melhor com o público da capital e não com um bando de jecas endinheirados. Um grandalhão soltou uma gargalhada que pareceu sair da garganta como a labareda de um dragão, jogou a cabeça pra trás junto com o cotovelo, batendo contra a lateral da cabeça de Sabrina.
―Ai, c****e!
― Oh, desculpa. ― disse ele, virando-se para ela assim que percebeu o que fizera.
O golpe na cabeça a fez perder o equilíbrio e, como estava um tanto embriagada, nada pôde fazer para evitar o choque contra o sujeito na banqueta diante do balcão do bar. Agarrou-se nas costas dele, esmagando os s***s contra seu corpo. E, diferente do que uma pessoa normal faria, que seria se afastar rapidamente, Sabrina aspirou o cheiro da nuca do cara, um odor cítrico amadeirado.
Ela se afastou ligeiramente quando ele inclinou a cabeça e, ajeitando-se na banqueta alta, voltou-se para fitá-la.
Foi como se a luz do sol iluminasse o bar. Mas não era bem o sol, não podia ser àquela hora da noite, e sim o vermelho do cabelo curto dele, os pontos da barba por fazer nos maxilares duros, o queixo quadrado. A pele clara em contraste com a gola da camisa preta.
Eu ensaio um pedido de desculpas ou finjo demência e continuo agarrada nele?
Continuou muda, olhando descaradamente para seus lábios. Havia um quê de presunção no canto da boca, como se ele tivesse certeza de que ela fosse uma presa fácil. E, ao se agarrar nas costas dele, sentiu a carne firme e enxuta, nada de gordurinha a mais, a musculatura trabalhada, os bíceps definidos.
Os olhos azuis exibiam um ar de surpresa e arrogância.
― Me perdoa... ― Ela sussurrou, hipnotizada pelo leve sorriso que ele lhe endereçou. Queria dizer que um i****a a empurrou, um i****a educado, mas i****a. Queria dizer que tinha um fraco por caubóis, e ele era o mais sexy entre todos. Queria dizer que esbarrar nele foi o ponto alto do seu asqueroso dia, que por um minuto ou dois se esqueceu da desgraceira toda.
― Machuquei a moça? ― Perguntou, solícito, o grandalhão.
Ela o ignorou, os olhos postos no homem de chapéu que parecia paquerá-la.
― Ela tá bem, dá o fora. ― Os lindos lábios do ruivo se mexeram e a voz era firme, mandona e grave.
― Sim, tô bem. ― Tô num planeta sem gravidade, m*l sinto meus pés, o coração pulando de pantufas dentro do peito ― Muito bem. ― Enfatizou, suspirando.
Viu-o esticar um lado da boca num sorriso charmoso. As rugas em torno das pálpebras se acentuaram, linhas fundas que se prolongavam até as têmporas. Aparentava quarenta e poucos anos, cheirava a homem limpo, organizado, metódico, aquele tipo de cara que se cuidava sem ser metrossexual, simplesmente, se mantinha impecável. E ela imaginou o quanto seria delicioso cheirá-lo todo, percorrer cada parte do seu corpo deslizando a ponta do nariz na superfície da pele. Enquanto sua mente a levava pra cama com ele, tirando-lhe a roupa, agarrando-o pelo pescoço, enterrando os dedos nos seus cabelos, esfregando o joelho entre as coxas másculas, descendo a mão pra dentro da calça, pegando o p*u duro sem deixar de beijá-lo na boca, chupando seu lábio inferior, mantendo-o entre seus dentes para depois penetrá-lo no interior com a língua, sentiu que era captada por aquele olhar que lhe vasculhou toda, revirando as gavetas de sua mente e jogando todos os problemas no lixo.
―Acho que já nos conhecemos. ― Ela disse, m*l sentindo as pernas, não ouvindo a própria voz, distraída que estava de si mesma, concentrada toda nele.
― É mesmo? ― A sobrancelha arqueou junto à pergunta feita num tom desconfiado, embora o sorriso charmoso permanecesse descansando na boca.
― Sim, nunca minto.
― Entendo. ― Ele a encarou, parecendo calcular o que ouviu. ― E de onde nos conhecemos? ― Nem tentou fingir que a conhecia.
Sabrina se concentrou no par de olhos perscrutadores e respondeu sem desviar o olhar:
― De outras vidas.
Uma cantada brega, por certo. Ou a maior das verdades. Ela m*l sabia onde estava pisando quando decidiu caminhar se jogar pra cima dele.
O desconhecido, de repente, ficou sério, e a convidou para sair do bar.
Ele podia ser um psicopata, um estuprador... pior, um e********r e assassino em série. Também podia ser um ladrão ou político... vereador, talvez.
A verdade era que Sabrina não estava em condições de pensar, só queria sentir. Voltaria à casa do pecado, do moralismo barato e das fofocas maldosas, a casa do desamor.
Encerraria então em alto estilo a sua despedida da felicidade.
― Vai me m***r?
― Acho que não. ― Respondeu ele, provocando-a com um sorriso de canto de boca.
Foi então que tudo aconteceu.