O sompro da tempestade

1361 Words
O conselho real estava em alvoroço. Na sala de pedra onde os nobres decidiam o destino de Velmora, o ar estava pesado. Mapas estavam espalhados sobre a mesa central, marcados com manchas de sal e símbolos estranhos. O marechal Theros, homem de voz grave e mãos calejadas, apontava para o litoral com expressão sombria. — A embarcação n***a foi avistada novamente. Três noites seguidas. Sempre à mesma distância. Nunca se aproxima, nunca recua. Como se estivesse... esperando. O rei, sentado em seu trono de marfim, franziu o cenho. — Um navio pirata não ousaria se aproximar tanto. Não sem atacar. Isso é provocação. — Ou ritual — disse o arquimago Veylan, com os olhos semicerrados. — Há magia no ar. O mar está inquieto. Os ventos mudam de direção sem aviso. E há rumores de que os sonhos estão sendo invadidos. Todos se calaram. Lysandra, sentada ao lado do pai, manteve o olhar fixo no mapa. Ela já sabia. Sentia. O navio não estava ali por Velmora. Estava ali por ela. Na noite anterior, ela havia sonhado com Alaric novamente. Mas desta vez, ele não estava sozinho. Atrás dele, sombras com olhos brilhantes sussurravam em línguas esquecidas. E o mar... o mar chorava sangue. — Ele está me chamando — disse, quebrando o silêncio. Todos se viraram para ela. — O pirata? — perguntou o rei, com incredulidade. — Alaric. Ele fez um pacto. O mar canta meu nome. E agora... ele está vindo. O rei se levantou, furioso. — Isso é absurdo! Ele foi banido! Condenado! n******e simplesmente retornar como um fantasma! — Mas retornou — disse Veylan, com calma. — E não como homem. Como lamento. Como maldição. Lysandra se levantou. — Eu preciso vê-lo. O rei arregalou os olhos. — Você está louca? — Talvez. Mas se não o enfrentar, ele continuará. O mar não se calará. E Velmora... afundará. --- Naquela noite, Lysandra vestiu um manto escuro e desceu até os portões do castelo. A cidade dormia, mas o mar não. As ondas batiam com fúria, e o céu estava coberto por nuvens que pareciam vivas. Ela caminhou até o cais, onde um pequeno barco a aguardava. Veylan a acompanhava, silencioso. Não havia guardas. Não havia cerimônia. Apenas destino. — Ele não é mais o homem que você conheceu — disse o mago. — O mar o moldou. E o amor... o destruiu. — Eu sei — respondeu Lysandra. — Mas talvez, se eu escutar... o mar se cale. Eles partiram. O barco cortou as águas como uma oferenda. E ao longe, o Espinho do Vento aguardava, com velas negras e olhos invisíveis. O encontro estava próximo. E o lamento... prestes a ser respondido. O barco cortava as águas como uma lâmina silenciosa. Lysandra mantinha os olhos fixos no horizonte, onde o navio n***o aguardava como uma sombra imóvel. O mar, embora agitado, parecia abrir caminho para ela, como se reconhecesse sua presença, como se soubesse que ela era o centro do lamento. Veylan, ao seu lado, murmurava encantamentos de p******o. Pequenos círculos de luz flutuavam ao redor do barco, mas mesmo eles pareciam hesitar diante da força que se aproximava. — O mar não está apenas inquieto — disse o mago. — Ele está faminto. Lysandra não respondeu. Dentro dela, algo se movia. Não era medo. Era uma estranha mistura de culpa e curiosidade. Como se parte dela quisesse entender o que Alaric havia se tornado. Como se, no fundo, ela soubesse que sua rejeição havia sido o primeiro golpe na construção daquela loucura. O Espinho do Vento crescia diante deles, imponente. As velas negras tremulavam como asas de corvos, e o casco parecia feito de madeira e ossos. Nenhum som vinha do navio. Nenhum movimento. Apenas presença. O barco de Lysandra se aproximou lentamente, até encostar na lateral do navio. Uma escada de corda foi lançada, como um convite silencioso. — Eu subo sozinha — disse ela a Veylan. O mago hesitou, mas assentiu. Sabia que aquele encontro era mais do que físico. Era um confronto de almas. Lysandra subiu. Cada passo na escada parecia pesar mais do que o anterior. Quando finalmente pisou no convés, o silêncio a envolveu como um manto. O navio estava vazio. Nenhum marinheiro. Nenhum som. Apenas ela... e ele. Alaric surgiu das sombras como um espectro. A coroa de espinhos ainda adornava sua cabeça, mas seus olhos estavam diferentes. Não havia mais brasas. Havia abismo. Um vazio que parecia puxar tudo ao redor. — Lysandra — disse ele, com voz rouca. — Você veio. Ela manteve a postura firme. — O mar não me deu escolha. Alaric sorriu, mas era um sorriso quebrado. — O mar apenas canta o que o coração n******e calar. Ela olhou ao redor. — Onde está sua tripulação? — Eles se foram. O mar os levou. Um por um. Em troca de cada palavra que você nunca disse. Lysandra sentiu um nó na garganta. — Você destruiu vilas. Queimou portos. Fez pactos com forças que nem entende. Tudo por... mim? — Não por você — disse ele, se aproximando. — Por o que você representa. Por o que você negou. Amor. Reconhecimento. Luz. Ela recuou um passo. — Isso não é amor, Alaric. É obsessão. O mar rugiu ao redor do navio, como se discordasse. Alaric estendeu a mão. — Toque minha alma, Lysandra. E o mar se calará. Ela olhou para a mão dele. Estava fria, pálida, marcada por cicatrizes que não eram físicas. E então, sem saber por quê, ela tocou. O mundo parou. O mar silenciou. E por um instante, Lysandra viu tudo, o baile, o olhar, a queda, o pacto, os gritos, os naufrágios. Viu o homem que Alaric fora. E o monstro que o mar havia moldado. Ela soltou a mão. — Eu sinto muito — disse, com sinceridade. Alaric fechou os olhos. — O mar... ouviu. E então, o navio começou a afundar. Não com violência, mas com paz. Como se tivesse cumprido seu propósito. Lysandra foi envolvida por uma esfera de luz conjurada por Veylan, que a puxou de volta ao barco. Enquanto o _Espinho do Vento_ desaparecia nas profundezas, Alaric olhou para ela uma última vez. E sorriu. ----- A esfera de luz que envolvia Lysandra a levou de volta ao pequeno barco como um suspiro divino. Veylan a segurou com força, os olhos arregalados diante do que acabara de testemunhar. O Espinho do Vento afundava lentamente, como se o mar o estivesse acolhendo, não punindo. As velas negras desapareceram sob as ondas, e o convés rangia como um velho lamento sendo engolido pela eternidade. Nenhum grito. Nenhuma explosão. Apenas silêncio. Alaric não tentou fugir. Não implorou. Apenas olhou para Lysandra até o último instante, com um sorriso que não era de vitória, nem de derrota, era de paz. Lysandra caiu de joelhos no barco, o corpo tremendo. Não de medo, mas de algo mais profundo. Algo que ela não sabia nomear. O toque havia revelado tudo. O amor, a dor, a loucura. E agora, o mar estava calmo. Veylan olhou para o horizonte, onde o navio desaparecera. — Ele se foi. E com ele, o lamento. Lysandra fechou os olhos. O vento tocava seu rosto com suavidade, como se o mar estivesse agradecendo. Mas dentro dela, algo havia mudado. Ela não era mais a princesa fria de Velmora. Era a mulher que escutou o mar. Que tocou a alma de um homem perdido. Que viu o abismo, e não recuou. O barco retornou à costa ao amanhecer. A cidade estava silenciosa, como se tivesse sentido a mudança. Os pescadores olhavam o mar com respeito. Os monges murmuravam orações. E o rei, ao ver a filha retornar, não disse nada. Apenas a abraçou, como se soubesse que ela havia enfrentado algo que nenhum exército poderia combater. Naquela noite, Lysandra voltou aos jardins. As roseiras estavam mais vivas. A fonte jorrava com força. E o céu, finalmente, tinha estrelas. Ela olhou para o mar uma última vez. — Adeus, Alaric — sussurrou. — Que o mar te guarde. Que o amor te liberte. E o mar, pela primeira vez em muito tempo, permaneceu em silêncio.
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