Acordo todos os dias antes do sino da igreja tocar pela primeira vez.
Não é o barulho que me desperta — é o hábito. O corpo aprende, mesmo quando a mente insiste em permanecer num lugar onde o silêncio é mais confortável que a vigília. O quarto onde durmo é simples, quase austero demais para alguém que cresceu cercado de abundância. Uma cama de madeira escura, uma mesa pequena com uma Bíblia sempre aberta na mesma página — o Salmo que fala sobre retidão — e uma janela estreita por onde o sol entra de mansinho, como se também tivesse medo de interromper meus pensamentos.
Levanto devagar. Meus pés tocam o chão frio, e por um segundo fico ali parado, respirando fundo, sentindo o peso do dia antes mesmo dele começar. Há algo reconfortante nisso. A previsibilidade. A certeza de que cada gesto tem um propósito, cada passo um destino traçado muito antes de mim.
Visto a batina com a mesma calma com que faço tudo. O tecido escuro desliza pelo meu corpo grande, largo demais para os padrões comuns de um padre, dizem. Já ouvi isso algumas vezes — não como crítica, mas como surpresa. Um padre alto, musculoso, barba cheia, cabelos loiros sempre penteados de forma simples. Não foi algo que escolhi. Apenas sou assim. Às vezes sinto que minha aparência antecede minha fé, e isso me incomoda mais do que deveria.
Antes de sair do quarto, faço uma oração curta. Não peço nada específico. Nunca peço. Apenas agradeço. Me ensinaram desde cedo que quem pede demais esquece de agradecer.
A igreja ainda está vazia quando chego. O cheiro de madeira antiga misturado com incenso é quase parte de mim. Caminho pelo corredor central sentindo o eco dos meus próprios passos, como se cada som fosse uma lembrança de que estou sozinho — e, paradoxalmente, nunca estive tão acompanhado.
Celebro a primeira missa do dia para poucos fiéis. Sempre os mesmos rostos. As senhoras da primeira fila que me viram crescer, que me viram criança ajudando o padre anterior, que agora me olham com aquele orgulho quase maternal. Homens mais velhos que apertam minha mão com força demais depois da bênção final, como se quisessem testar minha solidez, minha permanência.
— Nosso padre é diferente — já ouvi cochicharem.
— Parece tão jovem… mas fala como um homem vivido.
Se soubessem.
Depois da missa, fico mais um tempo na igreja. Atendo pequenas demandas, conversas rápidas, pedidos de oração. Nada profundo. Nada que mexa comigo. Ainda.
Quando o relógio se aproxima do meio-dia, troco a batina por roupas comuns. Camisa branca, mangas dobradas, calça escura. A barba permanece. Nunca consegui — nem quis — abrir mão dela. Meus pais dizem que me deixa mais sério. Mais confiável.
O restaurante fica a poucas quadras da igreja.
Foi o primeiro deles. O mais tradicional. Fachada discreta, mas elegante. Dentro, o movimento nunca para. O cheiro é uma mistura viva de alho, ervas, carne grelhando, pão fresco. Um cheiro que me acompanha desde a infância. Um cheiro que me lembra que, antes de ser padre, eu fui filho.
Meus pais já estão lá quando chego.
Minha mãe vem até mim primeiro, como sempre. Me abraça com força, mesmo sabendo que não sou mais um menino. O perfume dela — suave, quase imperceptível — ainda é o mesmo de quando eu chegava do orfanato nos primeiros anos. Meu pai observa de longe, braços cruzados, sorriso contido. Orgulho é algo que ele demonstra em silêncio.
— A missa foi boa? — ela pergunta.
— Foi tranquila — respondo. Sempre é.
Vou direto para a cozinha. Coloco o avental. Lavo as mãos com cuidado quase ritualístico. Aqui, o altar é outro. O fogo substitui as velas. As panelas fazem o papel dos sinos. E, estranhamente, é onde me sinto mais humano.
Cozinhar sempre foi minha forma de oração que não passa pelas palavras.
Os funcionários me respeitam de um jeito curioso. Alguns me chamam de “padre”, outros de “chef”. Nunca Gabriel. Como se meu nome fosse algo íntimo demais para aquele espaço. Não me incomoda. Talvez eu também não saiba mais quem é Gabriel fora dos títulos que me deram.
Durante o serviço, tudo flui. Meus movimentos são precisos. Automáticos. O corpo forte foi moldado não apenas pela disciplina da fé, mas pelo trabalho físico, pelas longas horas em pé, pelo peso das panelas, pelo calor constante.
Às vezes, clientes pedem para me cumprimentar.
— É verdade que o senhor é padre mesmo?
— O senhor que celebrou o casamento da minha filha, lembra?
Sorrio. Respondo. Ouço. Dou conselhos rápidos. A fé me acompanha até ali, como se estivesse impregnada na pele. Meus pais observam tudo com olhos brilhando. Para eles, sou a realização de tudo que sonharam quando decidiram adotar um menino sem passado.
Um filho padre.
Um filho honrado.
Um filho de Deus.
No meio da tarde, quando o movimento diminui, sento com eles no escritório no fundo do restaurante. Falamos sobre contas, fornecedores, expansão do outro restaurante. Confiam em mim plenamente. Não apenas como filho, mas como homem íntegro. Como alguém incapaz de falhar moralmente.
Isso pesa.
Pesa mais do que qualquer panela de ferro.
Quando o dia começa a escurecer, volto para a igreja. Troco novamente de roupa. Retorno ao papel que todos esperam que eu desempenhe com perfeição. O confessionário me aguarda em silêncio, como sempre.
Entro. Fecho a porta.
Sento do meu lado, ajusto o tecido da batina, respiro fundo.
E então… ouço passos.
Leves. Quase hesitantes.
Meu coração acelera por um motivo que ainda não sei nomear.
A cortina do outro lado se move. Não vejo nada. Nunca vejo. Mas sinto. Há algo diferente no ar. Um perfume discreto, feminino, que não combina com a frieza da madeira antiga.
Ela se senta.
— Perdoai-me, padre… — a voz surge baixa, contida, como se tivesse atravessado um longo caminho até chegar ali.
Fecho os olhos por um instante.
Algo dentro de mim — algo antigo, profundo, perigoso — desperta.
E eu sei, sem entender como, que aquela não será uma confissão comum.
Não será a última.
E, certamente, não será a mais inocente.
Mas ainda não sei disso.
Ainda.