A Voz Que Retorna

1081 Words
O confessionário sempre teve um cheiro muito específico. Madeira antiga, cera de vela, incenso entranhado nas fibras do tempo. Um cheiro que não incomodava, mas também não passava despercebido. Era quase como se a própria igreja respirasse ali dentro, lenta, paciente, eterna. Entrei como fazia todos os dias. Fechei a porta atrás de mim com cuidado, sem ruído. O hábito já era automático: ajeitar a batina, tocar de leve o crucifixo no peito, respirar fundo antes de sentar. Sempre fazia isso. Sempre. Um pequeno ritual dentro do ritual maior. Um gesto íntimo que ninguém via. Do outro lado da divisória de madeira, o espaço permanecia vazio. Pelo menos era o que eu acreditava. Fiquei alguns segundos em silêncio, ouvindo apenas o eco distante da igreja — um banco rangendo, passos leves, talvez uma vela sendo acesa. O mundo lá fora continuava, mesmo quando eu me sentava ali para ouvir dores que quase nunca eram simples. — Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo… — murmurei, mais para mim do que para qualquer outro. Esperei. E então… ouvi. Não foi o som do joelho tocando o chão. Nem o rangido da madeira denunciando presença. Foi a voz. Aquela voz. — Padre…? Meu corpo inteiro reagiu antes da minha mente. Endireitei a postura na mesma hora. O coração deu um salto seco no peito, daqueles que não doem, mas avisam. Avisam que algo saiu do eixo. Que algo inesperado acabou de acontecer. Era ela. Não havia dúvida alguma. Eu reconheceria aquela voz em qualquer lugar. Baixa, feminina, firme, mas com uma delicadeza estranha — como se carregasse cansaço e fé ao mesmo tempo. — Sim, minha filha — respondi, tentando manter o tom sereno, neutro, o mesmo de sempre. Mas eu não era o mesmo de sempre. Desde a primeira vez que ela sentara ali — e saíra sem conseguir se confessar — algo havia ficado suspenso dentro de mim. Um silêncio que não se fechou direito. Uma curiosidade que eu não deveria ter permitido nascer. Ouvi o som leve da respiração dela do outro lado. Um suspiro contido, quase imperceptível, mas eu ouvi. Ali dentro, qualquer detalhe parecia maior. — Desculpa… — ela disse. — Eu não sabia se… se podia voltar. Aquela frase simples me atingiu de um jeito estranho. Não pelo conteúdo, mas pela forma. Pela hesitação. Pela maneira como ela parecia pedir permissão para existir naquele espaço. — Este lugar é para todos — respondi, com cuidado. — Sempre. Houve um pequeno silêncio. Não um silêncio vazio. Era carregado. Como se ela estivesse organizando pensamentos, escolhendo palavras que não queriam ser escolhidas. — Da outra vez… — ela começou, mas parou. Esperei. Aprendi cedo que o silêncio também é uma forma de escuta. — Eu fiquei com medo — ela completou, por fim. Fechei os olhos por um instante. Medo. Essa palavra eu conhecia bem. Conhecia desde muito antes de vestir a batina. Desde os corredores frios do orfanato, desde as noites em que eu me perguntava se alguém ainda lembrava que eu existia. O medo muda de forma, mas nunca desaparece completamente. — Medo de quê? — perguntei, com suavidade. Ela riu de leve. Um riso curto, quase sem humor. — De falar demais… ou de falar errado. De ser julgada. De decepcionar Deus. Engoli em seco. Quantas vezes eu mesmo já não tinha sentido algo parecido? Mesmo sendo padre. Mesmo sendo “o exemplo”. — Deus não se decepciona com quem busca — respondi. — Ele acolhe. Ouvi um movimento do outro lado, como se ela tivesse mudado de posição no banco. — Eu acredito muito nisso — ela disse. — Acredito mesmo. Se não acreditasse, acho que já teria desistido de muita coisa. Essa frase ficou suspensa no ar. “Desistido de muita coisa.” Não perguntei. Não ainda. — Você disse, na última vez, que acreditava em Deus — lembrei, com cuidado. — Ele sempre esteve com você. — Esteve… e está — ela respondeu sem hesitar. — Principalmente quando eu passei por situações… perigosas. E ainda passo. Meu peito se apertou. Perigosas. A palavra ecoou dentro de mim como um sino distante. Minha mente tentou imaginar, mas eu a contive. O confessionário não era lugar para suposições. Era lugar para escuta. — Às vezes — continuei — a fé se fortalece exatamente nesses momentos. — Foi o que me salvou — ela disse, num tom mais baixo. — Eu sei que tem gente que perde a fé quando sofre. Mas comigo foi o contrário. Eu sentia… como se alguém estivesse sempre me puxando de volta. Fechei a mão em torno do rosário que eu trazia no bolso. Um hábito antigo, quase inconsciente. — Você sente que Deus te protege? — perguntei. — Sinto — ela respondeu, sem vacilar. — Mesmo quando eu faço escolhas que talvez… não sejam as melhores. Essa frase me atravessou como uma lâmina fina. Escolhas. Quantas eu fiz ao longo da vida achando que eram minhas, quando na verdade eram caminhos traçados muito antes? Eu sempre me perguntei isso, em silêncio. — Todos nós fazemos escolhas imperfeitas — respondi. — Isso não nos afasta automaticamente de Deus. Ela ficou quieta por alguns segundos. — O senhor fala de um jeito… diferente — disse, de repente. Franzi levemente o cenho. — Diferente como? — Não parece… distante. Nem automático. Parece que o senhor acredita mesmo no que diz. Um calor estranho subiu pelo meu peito. Não era vaidade. Era algo mais profundo. Uma sensação de ser visto, mesmo sem ser visto. — Eu acredito — respondi, com honestidade. Ela respirou fundo outra vez. — Eu não vim me confessar hoje — disse. — Ainda não. Meu coração bateu mais forte. — Eu só queria… ouvir. Saber se ainda tem lugar pra mim aqui. Olhei para a madeira à minha frente como se, de alguma forma impossível, ela pudesse me devolver o olhar dela. — Sempre há lugar — respondi, firme. — Enquanto houver fé, mesmo que pequena. Ela ficou em silêncio. Um silêncio longo. Tão longo que eu cheguei a pensar que ela tinha ido embora de novo. Então, bem baixo, quase como uma oração: — Obrigada, padre Gabriel. Meu nome. Ela disse meu nome, de novo. E naquele instante, eu soube — com uma certeza que me assustou — que aquela voz voltaria. E que, de algum jeito que eu ainda não compreendia, ela já tinha começado a ocupar um espaço perigoso dentro de mim.
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