Celebrei a missa da noite com a mesma devoção de sempre, mas percebi que minha mente, em momentos breves, insistia em retornar àquela voz. À forma como ela falava de Deus com tanta certeza, mesmo sem explicar nada sobre si. À palavra “perigo”, dita como quem carrega histórias demais para contar.
Quando saí da igreja. Entrei no carro — um modelo caro, silencioso, que meus pais insistiram que eu tivesse — e segui em direção ao restaurante principal da família.
O movimento estava intenso, como sempre.
Meus pais construíram um império gastronômico respeitado. Restaurantes elegantes, frequentados por empresários, políticos, gente de nome. Ainda assim, quando entro ali vestindo preto, todos me tratam com uma reverência que não tem nada a ver com dinheiro.
— Boa noite, padre Gabriel.
— Que prazer ver o senhor aqui.
— Que Deus abençoe.
Respondo a todos com um sorriso contido, um aceno de cabeça. Nunca gostei de ostentação. Trabalho ali porque gosto, porque me sinto útil, porque a cozinha sempre foi, para mim, uma extensão da disciplina que aprendi na fé.
Meus pais estavam na cozinha.
Minha mãe, elegante como sempre, mesmo com avental. Meu pai, atento aos detalhes, fiscalizando pratos, conversando com funcionários. Quando me viram, os olhos dos dois brilharam.
— Filho — minha mãe disse, aproximando-se para me beijar o rosto. — A missa foi boa? Não conseguimos ir hoje.
— Foi, sim — respondi. — Bem tranquila.
Meu pai sorriu, orgulhoso.
— Não tem um dia em que alguém não fale de você aqui — disse. — Sabia?
Balancei a cabeça, desconfortável.
— Só estou fazendo o que devo.
— E faz muito bem — ele respondeu, firme.
Trabalhei ali por algumas horas. Ajudei na cozinha, revisei números no escritório, conferi fornecedores. Tudo automático. Tudo conhecido. Ainda assim, em algum ponto da noite, me peguei distraído, encarando um relatório sem realmente vê-lo.
Ela voltou.
A voz. As palavras. A sensação estranha de que eu precisava estar ali. No confessionário. Sempre.
Voltamos para casa juntos, como quase todas as noites.
Nossa casa é grande. Imponente. Jardins bem cuidados, portões altos. Meu quarto, no entanto, sempre foi simples, por escolha minha, estante de livros religiosos, uma mesa de madeira, um crucifixo na parede. Luxo nunca me atraiu. Minha escolha sempre foi a sobriedade.
Jantamos em família.
Conversamos sobre o restaurante, sobre a igreja, sobre eventos beneficentes. Meus pais falam de mim com orgulho aberto, sem disfarçar. Eu escuto, agradeço, mudo de assunto.
Quando finalmente me recolhi, o cansaço veio pesado.
Ajoelhei-me ao lado da cama, como faço todas as noites.
Rezei pelos meus pais. Pela igreja. Pela cidade.
E então, sem perceber quando exatamente isso aconteceu, rezei por ela.
Não pedi que seus pecados fossem perdoados. Não pedi que sua vida mudasse. Pedi apenas que Deus a protegesse. Que estivesse com ela nos momentos perigosos que ela não quis detalhar.
E enquanto rezava, uma certeza silenciosa se instalou em mim.
Eu precisava estar ali.
Não sabia por quê. Não sabia por quanto tempo. Não sabia quem ela era.
Mas sabia que aquela voz ainda voltaria.
E que, quando voltasse, algo dentro de mim já não seria mais o mesmo.
No escuro do quarto, encarei o teto por longos minutos, sentindo um peso estranho no peito — não de culpa, não de medo… mas de expectativa.
Como se minha fé estivesse prestes a ser testada de uma forma que eu ainda não conseguia imaginar.
O dia sempre começa antes do sol para mim.
Não é o despertador que me acorda. Nunca foi. É o hábito. É o corpo que aprendeu, desde cedo, que servir exige constância. Abro os olhos ainda no escuro, quando a casa está silenciosa demais até para os pensamentos. O teto do meu quarto surge diante de mim, simples, claro, sem adornos. Poderia ser diferente — meus pais jamais se oporiam — mas eu escolhi assim. Sempre escolhi.
Levanto devagar, sentindo o chão frio sob os pés. Há algo de sagrado nesse primeiro contato com o dia, como se cada manhã fosse uma chance silenciosa de reafirmar quem eu sou. Vou até o banheiro, lavo o rosto, encaro meu reflexo no espelho. A barba grande, bem cuidada, o cabelo loiro ainda desalinhado pelo sono, os olhos azuis que carregam mais peso do que aparentam.
Rezo em silêncio.
Não uma oração longa, nem ensaiada. Apenas algumas palavras que saem quase sem forma, como um sussurro interno. Agradeço por mais um dia. Peço clareza. Peço força. Peço que eu não falhe com ninguém que cruzar meu caminho.
O quarto volta a me envolver quando coloco a batina dobrada com cuidado sobre a cama. Visto-me com calma, cada botão fechado como um gesto de compromisso. A batina nunca foi um fardo. Para mim, sempre foi uma armadura silenciosa.
Quando desço as escadas, o cheiro de café já tomou conta da casa.
Meus pais estão na cozinha. Sempre estão. Minha mãe mexe a colher na xícara com atenção quase cerimonial, enquanto meu pai folheia o jornal, os óculos apoiados na ponta do nariz. Eles levantam os olhos ao mesmo tempo quando me veem.
— Bom dia, meu filho — dizem quase em uníssono.
Há algo de profundamente reconfortante nisso. No jeito como me olham. No orgulho que nunca tentaram esconder. Não é um orgulho exibido, barulhento. É um orgulho quieto, firme, daquele tipo que sustenta.
— Bom dia — respondo, beijando o rosto dos dois.
Sentamos juntos à mesa. Falamos pouco. Nunca precisamos de muitas palavras. Comentam rapidamente sobre o movimento esperado nos restaurantes naquele dia, sobre uma reserva importante à noite, sobre um fornecedor novo. Perguntam da missa. Sempre perguntam.
— Hoje cedo vai estar cheia — digo. — É dia de novena.
Minha mãe sorri, satisfeita.
— Estaremos lá — ela responde, como se fosse uma promessa que não precisasse ser feita.
Saímos juntos. O ar da manhã ainda carrega aquele frio leve que acorda a pele. Entro no carro, caro demais para alguém que escolheu a simplicidade, mas que meus pais realmente insistiram que eu tivesse. Não por ostentação. Por segurança. Por cuidado.
No caminho até a igreja, as ruas ainda estão despertando. Algumas padarias já abertas, o cheiro de pão fresco se misturando ao da cidade que começa a respirar. Cumprimento pessoas mesmo sem parar. Um aceno aqui, um sorriso ali. Alguns fazem o sinal da cruz quando me veem passar. Outros apenas abaixam a cabeça em respeito.
A igreja surge imponente, silenciosa, como se tivesse esperado por mim a noite inteira.
Antes mesmo de entrar, já sou reconhecido.
— Bom dia, padre Gabriel.
— Deus abençoe, padre.
— Que alegria ver o senhor.
Respondo a todos. Olho nos olhos. Chamo alguns pelo nome. Sei o nome de muitos. Sei das histórias, das dores, das perdas, das pequenas vitórias que ninguém mais celebra.
A missa da manhã é cheia.
Meus pais estão na primeira fileira, como quase sempre. Minha mãe com as mãos unidas, meu pai atento, postura ereta, semblante sério. Quando subo ao altar, sinto o peso bom da responsabilidade. Não o peso que sufoca, mas o que ancora.
Falo sobre fé como quem fala de algo vivido, não aprendido em livros. Falo sobre perseverança, sobre estar presente mesmo quando o mundo pede pressa. Vejo cabeças concordarem, olhos marejarem, mãos apertarem terços com mais força.
Sou respeitado aqui. Não por imposição, mas por constância.
Depois da missa, não há silêncio.
As pessoas se aproximam. Pedem bênçãos, conselhos rápidos, palavras que caibam no tempo curto de um corredor. Uma senhora segura minha mão por mais tempo do que o necessário. Um homem agradece por algo que eu disse meses atrás e que ele nunca esqueceu. Uma criança me olha como se eu fosse exatamente aquilo que eu queria ser um dia: um herói possível.
Saio da igreja com o sol já mais alto.
Ao meio-dia, estou no restaurante.
Troco a batina por roupas simples, mas impecáveis. O ambiente muda, mas a postura não. Meus pais já estão a todo vapor. O restaurante é elegante, sofisticado, daqueles que chamam atenção pelo silêncio organizado, pelo serviço impecável, pelos detalhes que só quem tem muito dinheiro consegue manter sem esforço.
Na cozinha, visto o avental.
Ali, não sou apenas o padre. Sou o chef. Sou o filho. Sou o administrador quando necessário. Dou ordens, provo pratos, ajusto temperos. A equipe me respeita sem medo, sem exagero. Sabem quem eu sou. Sabem que sou justo.
Alguns clientes me reconhecem.
— Padre Gabriel? O senhor aqui?
Sorrio.
— Aqui também é lugar de servir, literalmente.
Eles riem, encantados. Alguns fazem questão de vir até a cozinha apenas para me cumprimentar. Outros comentam com admiração sobre como meus pais devem ser orgulhosos. Eles são. Eu vejo nos olhos deles o tempo todo.
Depois do almoço, como com meus pais rapidamente. Uma refeição simples, apesar de todo o luxo ao redor. Conversamos pouco. O tempo é precioso.
Volto para a igreja.
À tarde, o ritmo muda. Confissões, reuniões rápidas, preparação de casamentos, ensaio de batismos. Escuto mais do que falo. Sempre escutei. Há algo de profundamente humano em ouvir sem julgar. As pessoas sentem isso. Talvez seja por isso que confiam tanto.
O dia avança quase sem que eu perceba.
À noite, a missa novamente.
Mais cheia do que a da manhã. Mais intensa. O cansaço tenta se instalar, mas não consegue. Meus pais estão lá outra vez. Às vezes não conseguem vir, por causa do restaurante, mas hoje estão. Sempre que podem, estão.
Quando termina, saímos juntos.
Entramos no carro, os três. Seguimos para o restaurante novamente. Trabalhamos até fechar. Cansados, mas alinhados. Há algo de bonito nessa rotina compartilhada, nessa fé que não se limita ao altar.
Voltamos para casa tarde.
Jantamos juntos. Rezamos juntos. Agradecemos juntos.
Quando finalmente me deito, o corpo pesa, mas a mente permanece desperta. O quarto silencioso me envolve outra vez. Fecho os olhos.
E, por algum motivo que ainda não sei explicar, um pensamento atravessa minha oração.
Uma voz.
Não o rosto. Não a história. Apenas a certeza estranha de que, no meio de tanta gente que me cerca todos os dias, existe alguém que eu ainda não conheço… e que, mesmo assim, já ocupa um espaço silencioso dentro de mim.
E isso, sem saber por quê, me faz permanecer acordado por mais alguns minutos, encarando o escuro, como se algo estivesse prestes a começar.