O silêncio da casa grande ainda adormecida é quase sagrado. Não há passos no corredor, não há vozes, apenas o som distante de algum carro passando ao longe e o canto tímido de um pássaro que insiste em começar o dia antes dos outros.
Levanto devagar..
Vou até o banheiro, lavo o rosto, encaro meu reflexo no espelho.
Sou um homem grande. Alto demais para a maioria dos espaços. Ombros largos, corpo forte, moldado mais pelo trabalho e pela rotina do que por vaidade. A barba cheia emoldura meu rosto sério, e os olhos azuis — que tanta gente comenta — parecem sempre observar mais do que deveriam. Há algo neles que incomoda, dizem. Como se eu enxergasse além.
Talvez eu enxergue mesmo.
Visto a batina com calma. Cada gesto é quase automático. Quando coloco aquela roupa, algo em mim se alinha. Não me anula, não me apaga — apenas me organiza. Sou Gabriel, o padre. O homem que representa algo maior do que ele mesmo.
Antes de sair do quarto, faço uma breve oração. Curta. Íntima. Não peço nada. Apenas agradeço por mais um dia.
Meus pais já estão acordados quando desço.
Eles sempre estão.
Minha mãe ajeita algo na mesa da cozinha, ainda de pijama, cabelos presos de qualquer jeito. Meu pai lê alguma coisa no jornal. Quando me veem, os dois sorriem com aquele orgulho silencioso que nunca precisou ser dito em voz alta.
— Bom dia, meu filho — minha mãe diz, se aproximando para me dar um beijo no rosto.
— Bom dia, mãe.
— Missa cedo hoje — meu pai comenta, levantando-se.
— Como sempre.
Eles vão comigo até a igreja quase todos os dias, eu gosto dessa rotina, é bom ter o apoio e presença deles em tudo. Às vezes o restaurante exige demais, às vezes algum fornecedor atrasa, algum evento surge. Mas sempre que podem, estão ali. Sentados nos primeiros bancos. Olhando para mim como se eu ainda fosse aquele menino pequeno que segurava a mão deles na nave da igreja.
A missa da manhã é tranquila. Frequentada, respeitosa. A igreja se enche de rostos conhecidos. Gente simples, gente rica, gente perdida, gente inteira. Todos me cumprimentam, todos me chamam pelo nome, todos sorriem.
— Bom dia, padre Gabriel.
— Que Deus te abençoe, padre.
— Reza por mim hoje.
Há um respeito que não é forçado. Ele vem naturalmente. Eu sinto isso nos olhares, nos gestos contidos, na forma como as pessoas abaixam o tom de voz quando se aproximam.
Depois da missa, não consigo dar três passos sem ser parado.
Uma senhora quer agradecer uma visita antiga. Um casal pede uma bênção rápida. Um jovem me pede conselho sobre trabalho. Uma mulher segura meu braço por tempo demais enquanto fala, os dedos apertando de leve o tecido da batina, os olhos demorando mais do que o necessário no meu rosto.
Eu percebo.
Sempre percebo.
Ser padre não me cegou para o mundo. Pelo contrário. Me fez enxergá-lo com mais nitidez. Sei quando o olhar de alguém é só admiração espiritual… e sei quando não é.
Não julgo. Apenas sigo.
Ao meio-dia, troco a igreja pelo restaurante.
E é aí que as coisas mudam.
No restaurante, sem a batina, sou outro tipo de presença. Uso roupas simples, mas bem cortadas. Camisa que marca os braços, calça ajustada, relógio caro — presente dos meus pais, que nunca aceitaram minha recusa total ao conforto.
Na cozinha, sou respeitado como chef. No administrativo, como alguém inteligente, atento, responsável. Entre os funcionários, sou quase uma lenda curiosa.
— Padre que cozinha assim devia ser pecado — alguém brinca, arrancando risadas.
Eu rio junto. Sempre ri.
Faço piadas, provoco, converso. Nunca fui distante. Nunca fui aquela figura inacessível. As pessoas se sentem à vontade comigo — talvez até demais.
As mulheres, principalmente.
Os olhares mudam quando não estou de batina. São mais diretos. Mais demorados. Algumas não disfarçam. Outras tentam, mas falham. Já ouvi comentários sussurrados achando que eu não escuto. Já vi mãos ajeitando cabelo quando me aproximo. Já senti o clima mudar.
E eu sigo sendo apenas… normal.
Almoço com meus pais no restaurante. Conversamos sobre o dia, sobre os negócios, sobre a igreja. Eles perguntam das missas, das confissões, das pessoas.
— Você nasceu pra isso, Gabriel — minha mãe diz, mais de uma vez.
E eu acredito que sim.
À tarde, volto para a igreja.
Confissões, batismos, reuniões, preparativos. É um fluxo constante. Gente entra, gente sai. Histórias que começam e terminam ali, naquele espaço silencioso.
Em alguns momentos, enquanto escuto alguém falar, minha mente quase trai minha concentração.
Porque, mesmo sem querer… eu espero.
Espero aquela voz.
Ela não vem todos os dias. E talvez seja isso que mais me inquieta. O fato de eu notar sua ausência. De eu perceber quando ela não aparece.
À noite, celebro a missa novamente. Meus pais estão lá, como quase sempre. Saímos juntos. Entramos no meu carro. Vamos ao restaurante. Trabalhamos até fechar. Voltamos para casa.
Jantamos juntos. Rezamos juntos. Cada um vai para seu quarto.
Quando me deito, o silêncio volta a me envolver.
E é nesse silêncio que penso nela.
Na mulher que não vejo. Que não sei quem é. Que não se revelou. Que não se confessou por completo.
Não sei por quê. Não sei como. Mas algo dentro de mim insiste: ela vai voltar.
E eu preciso estar ali quando voltar.
Não como homem. Não como alguém desejado. Não como alguém visto.
Mas como alguém que foi escolhido para ouvir.
E isso… isso me assusta mais do que deveria, porque eu queria ouvi-la, eu queria a sua presença, mesmo sem ser vista, apenas sentida.