Eu observo de longe antes de tomar coragem. Ela continua sentada, a postura elegante demais pra alguém que levou um bolo, mas o jeito como brinca com o guardanapo denuncia a inquietação. Ruiva, olhos verdes intensos, vestido sóbrio, caro, daquele tipo que não grita riqueza — sussurra. Não é cliente comum. Não é presença comum. E, ainda assim, há algo nela que parece… deslocado, como se aquele restaurante não fosse exatamente onde ela queria estar naquela noite.
Respiro fundo e me aproximo.
— Está tudo bem por aqui? — pergunto, num tom natural, o mesmo que uso com qualquer cliente, ainda que algo dentro de mim esteja mais atento do que deveria.
Ela levanta o olhar devagar. Quando nossos olhos se encontram, percebo um brilho contido, quase um misto de frustração e orgulho ferido. Um sorriso curto surge, educado, ensaiado.
— Acho que sim… — ela responde. — Quer dizer, aparentemente levei um bolo.
Inclino levemente a cabeça, demonstrando atenção real.
— Sinto muito por isso.
Ela solta um suspiro curto, desses que carregam mais do que palavras.
— Marquei de conhecer um rapaz hoje. Conversávamos há um tempo. Ele não apareceu. Nem avisou. — dá de ombros, fingindo leveza. — Acho que isso responde muita coisa, né?
Há uma tristeza discreta ali, não dramática, mas honesta. Daquelas que a gente aprende a esconder com o tempo.
— Às vezes as ausências falam mais alto que qualquer explicação — digo, antes mesmo de pensar se deveria.
Ela me encara por um segundo a mais do que o normal, como se avaliasse não só a frase, mas quem a disse.
— É… falam mesmo.
Ela ajeita a bolsa no colo, já se preparando para levantar.
— Bom, vou indo. Não faz sentido ficar.
Antes que eu pense demais — antes que pese o olhar dos meus pais em alguma mesa próxima, antes que a razão me alcance — as palavras escapam.
— Fique.
Ela para. Me olha de novo.
— Como?
— Fique um pouco mais — digo, agora com mais firmeza. — O jantar é por conta da casa. Quero que se sinta à vontade.
Ela arregala levemente os olhos, surpresa sincera.
— Eu não posso aceitar isso.
— Pode, sim — respondo, simples. — Sem segundas intenções. Só… fique.
Ela hesita. Dá um sorriso que, dessa vez, chega aos olhos.
— Só aceito se você jantar comigo.
O pedido cai entre nós como algo leve demais pra ser simples.
Meu corpo reage antes da mente: eu recuo um passo, olho em volta. Meus pais. Os clientes. O ambiente. Tudo o que eu sou. Tudo o que esperam de mim.
Volto o olhar pra ela.
E, contra a lógica, contra o protocolo, contra o hábito de sempre saber exatamente onde piso… eu concordo.
— Tudo bem — digo. — Eu janto com você.
E algo me diz, de um jeito silencioso e insistente, que aquela decisão não era pequena.
Eu me afastei alguns passos do salão com o coração um pouco acelerado, coisa rara. Não era culpa, nem medo. Era aquela sensação estranha de quando algo simples ganha um peso que não deveria ter… mas tem.
Meus pais estavam próximos ao caixa, conversando baixo com o gerente sobre o movimento da noite. Mesmo depois de tantos anos, eu ainda me impressionava com a postura deles: elegantes, seguros, acostumados a comandar ambientes cheios de gente importante. Restaurantes chiques exigem esse tipo de presença. E eles dominavam isso como poucos.
Aproximei-me devagar.
— Pai… mãe… — chamei, num tom contido, quase como se estivesse pedindo permissão para algo muito maior do que realmente era.
Minha mãe foi a primeira a me olhar. Sempre foi assim. Ela tinha um radar afinado comigo desde o dia em que me trouxe para casa, ainda menino, com os olhos grandes demais para o mundo e poucas palavras na boca. Bastava um olhar meu para ela saber que algo se passava.
— Aconteceu alguma coisa, meu filho? — perguntou, já colocando a mão no meu braço.
Respirei fundo antes de responder.
— Tem uma mulher sentada sozinha ali… mesa perto da janela. Ruiva. Ela marcou de encontrar alguém, mas levou um bolo. Parece… abatida. Eu pensei em oferecer o jantar por conta da casa. Só isso. Fazer companhia. Nada além.
Meu pai franziu o cenho por um instante, não por desconfiança, mas por hábito. Ele sempre pensava antes de falar. Sempre avaliava o contexto inteiro.
— E por que isso te incomodou tanto? — perguntou.
Demorei um pouco para responder. Porque a verdade não vinha pronta.
— Não sei explicar direito… — comecei, sincero. — Mas senti no coração que não era só educação. Foi como… como se fosse certo não deixar aquela pessoa sair daqui se sentindo descartável. Sozinha.
Minha mãe sorriu de leve. Um sorriso pequeno, mas cheio de significado.
— Gabriel… — disse ela — você é padre, sim. Mas antes disso, você é humano. E compaixão nunca foi pecado. Deus te mandou um sinal para acompanhar aquela alma, tudo bem atender.
Meu pai assentiu logo em seguida.
— Você não vai fazer nada errado — completou. — Vai sentar, conversar, fazer companhia. Isso não diminui quem você é. Pelo contrário. Mostra exatamente quem você é.
Olhei para os dois, sentindo um alívio quase infantil.
— Vocês não se importam?
— Meu filho… — minha mãe apertou minha mão. — Nós criamos você para ser um homem bom. Não um homem distante.
Aquela frase ficou ecoando dentro de mim.
Agradeci com um aceno e voltei em direção à mesa da mulher. Enquanto caminhava, senti alguns olhares se voltarem para mim. Era comum. Quando eu não estava com a batina, o impacto era outro. As pessoas se surpreendiam. Algumas mulheres olhavam demais. Alguns homens também. Eu sempre fingia não perceber.
Mas naquela noite, por algum motivo, eu percebia tudo.
Ela ainda estava sentada, mexendo no celular sem realmente prestar atenção na tela. O copo de água intacto à sua frente. Quando me aproximei, ela levantou o olhar.
Os olhos verdes encontraram os meus.
Havia ali uma mistura curiosa de orgulho ferido e vulnerabilidade. Beleza não lhe faltava. O cabelo ruivo caía em ondas bem cuidadas pelos ombros, a pele clara contrastando com o vestido escuro, elegante sem ser exagerado. Ela parecia alguém acostumada a ser notada… e ainda assim, esquecida naquela noite.
— Conversei com meus pais — falei, puxando a cadeira devagar. — Eles acharam uma boa ideia eu ficar um pouco com você, se ainda quiser companhia.
Ela arqueou a sobrancelha, surpresa.
— Seus pais? — perguntou, confusa.
Sorri de leve.
— Os donos do restaurante. E… meus pais.
Ela riu, um riso curto, sincero.
— Então estou sendo convidada pela família inteira? Que honra.
— Digamos que sim.
Sentei-me à frente dela, mantendo uma postura aberta, tranquila. Nada invasivo. Nada forçado.
— Obrigada por insistir — disse ela, agora com a voz mais suave. — De verdade. Eu ia embora me sentindo… i****a.
— Ninguém é i****a por confiar — respondi. — Às vezes as pessoas é que não estão à altura do encontro que marcaram.
Ela me observou por alguns segundos, como se estivesse tentando me decifrar.
— Você fala como alguém que escuta muito — comentou.
— É… faz parte do meu trabalho.
Ela riu outra vez.
— E o que você faz?
Hesitei. Não por vergonha. Mas porque aquela palavra sempre mudava tudo.
— Sou padre.
O efeito foi imediato. Os olhos dela se arregalaram levemente, depois suavizaram, como se algo tivesse se reorganizado dentro dela.
— Um padre… — repetiu, quase para si mesma. — Claro que é.
— Isso é bom ou r**m? — perguntei, com um meio sorriso.
— Surpreendente — respondeu. — Você não parece… distante.
— Tento não ser.
O garçom voltou para anotar o pedido, e ela finalmente pediu comida. Um prato simples. Disse que não estava com muita fome. Pedi o mesmo.
Enquanto esperávamos, a conversa fluiu com uma naturalidade que me pegou desprevenido. Falamos sobre coisas pequenas. A cidade. O movimento do restaurante. Música. Viagens. Ela evitava falar demais sobre si mesma, e eu respeitei. Não era minha função arrancar verdades.
Em algum momento, ela me olhou com mais atenção.
— As pessoas gostam muito de você, sabia? — disse, apontando discretamente para o salão. — Todo mundo te cumprimenta. Te respeita.
— Eu cresci aqui — respondi. — E tento tratar todo mundo da mesma forma.
— Isso é raro.
Ficamos em silêncio por alguns segundos. Não um silêncio desconfortável. Um silêncio cheio.
E, contra toda lógica, contra toda regra que eu impunha a mim mesmo, um pensamento atravessou minha mente sem pedir licença:
Será que é isso que Deus quer dizer quando fala em presença?
Naquela noite, enquanto eu conversava com uma mulher que não conhecia, longe da batina, longe do confessionário, senti algo parecido com o que senti ao ouvir aquela voz misteriosa dias atrás.
Uma inquietação boa.
Uma curiosidade que não vinha da carne, mas da alma.
E, sem saber, eu estava mais uma vez sendo colocado no caminho de alguém que mudaria tudo.
Mas isso… eu ainda não sabia.