Partir nunca é simples

1110 Words
Os dias que se seguiram foram como relógios de areia virados de cabeça pra baixo — o tempo escorrendo com mais pressa do que eu queria admitir. Meu apartamento parecia estar contra mim. Cada canto me lembrava do que eu tinha construído ali. As prateleiras cheias de livros técnicos misturados com romances que minha mãe me dava. As garrafas de vinho colecionadas depois de reuniões de sucesso. As pastas organizadas com contratos, rascunhos de planos de expansão, cartas de recomendação que eu mesmo escrevia pro meu time. Era tudo meu. Tudo feito à base de esforço, fuga e foco. O que sobrou de mim quando deixei o Brasil, eu reconstruí aqui. Tijolo por tijolo. E agora… eu tinha que deixar tudo isso pra trás. Pelo menos por um tempo. Claro que podia voltar depois, claro que era temporário, mas eu conhecia a vida bem o suficiente pra saber que nada é tão temporário assim. Passei os três primeiros dias fazendo ligações. Organizando as coisas na filial europeia da Morelli Internacional, redistribuindo funções, deixando meu braço-direito encarregado de acompanhar os contratos mais delicados. O nome dele era Antoine, um francês metódico, um pouco carrancudo, mas com um senso de responsabilidade quase militar. — Vai deixar a gente na mão? — ele brincou, assim que entrei na sala de reuniões com meu ar de “tenho más notícias”. — Na mão, não. Só sob seus cuidados por um tempo — respondi, jogando a pasta sobre a mesa. — Não sei exatamente quanto tempo vou ficar no Brasil, mas espero que seja o suficiente pra impedir meu pai de destruir o que sobrou do bom senso. Ele arqueou uma sobrancelha. — Vai se casar, não é? — Vai. Com uma garota que poderia ser minha colega de faculdade. Se ela tivesse ido pra faculdade, claro. Antoine riu, mas não comentou. Tinha essa mania de não se meter onde não foi chamado — algo que, ironicamente, meu pai nunca aprendeu. — E a sede brasileira da Morelli? — ele perguntou. — Pronta pra te receber? — Acho que não. Mas isso não importa. Eu vou mesmo assim. Passamos horas revisando contratos, alinhando as equipes, anotando tudo o que podia e o que não podia ser resolvido à distância. Foi exaustivo. No fim do dia, minha cabeça latejava. Voltei pra casa com o sentimento de que, mesmo deixando tudo sob controle, ainda havia uma parte de mim resistindo à partida. E não era só pelo trabalho. Era pelo que deixava em silêncio. Pelas coisas não ditas entre mim e Lara. Pelos hábitos que criei. Pela falsa sensação de paz que essa cidade me dava. Lisboa foi meu refúgio — e, como todo refúgio, tinha algo de ilusório. Nos dias seguintes, fui me desfazendo das pequenas rotinas. Guardei os livros mais valiosos em caixas que ficariam no depósito do prédio. Desmontei o escritório improvisado no canto da sala, onde tantas decisões importantes nasceram. Doei algumas roupas, limpei armários, tirei a foto da minha mãe da cabeceira — aquela mesma que levei do quarto dela quando ela faleceu. Olhei aquela imagem por minutos. Ela estava sentada no jardim de casa, sorrindo, com os cabelos presos de forma simples e um vestido branco de verão. Tinha um copo de suco na mão e os olhos levemente apertados por causa do sol. Era uma foto antiga, mas capturava a essência dela com perfeição. — Me desejaria sorte, né? — murmurei, passando o polegar sobre o vidro da moldura. — Ou talvez me mandasse fugir correndo desse circo que virou nossa família. Guardei a foto na mala. Era uma das poucas certezas que levava comigo. No penúltimo dia antes da viagem, fui até a filial uma última vez. Queria conversar com a equipe, deixar claro que minha ausência era uma pausa, não um abandono. O time se reuniu na sala de conferências, todos me olhando com aquela expectativa silenciosa que me fazia lembrar do peso do meu cargo. Respirei fundo e falei: — Eu sei que a notícia veio de repente. E que, provavelmente, vocês estão se perguntando o que vai mudar daqui pra frente. Mas quero deixar uma coisa clara: minha ida pro Brasil não é uma despedida. É só um movimento estratégico. Alguém sorriu no fundo. Outro cruzou os braços, atento. — Durante esse período, Antoine vai assumir a frente. E confiem nele como confiam em mim — continuei, lançando um olhar rápido ao francês. — Estou deixando tudo documentado. Mas se houver dúvida, problema ou urgência, estarei a uma chamada de vídeo de distância. Fiz uma pausa. O silêncio se manteve. — E quando eu voltar, espero encontrar isso aqui ainda melhor do que deixei. Confio em vocês. E sei que vamos continuar crescendo. Não era um discurso ensaiado. Eu não tinha ensaio. Era puro sentimento tentando se expressar com o mínimo de drama. Depois das palmas protocolares, me aproximei de alguns mais antigos, troquei abraços, alguns apertos de mão. Era difícil pra mim demonstrar emoção. Sempre foi. Mas naquela tarde, eu percebi que havia construído algo real ali. E que talvez… uma parte de mim quisesse ficar mais tempo. À noite, Lara mandou outra mensagem. “Não vou te ver amanhã. Achei melhor assim. Boa viagem, Enzo.” Fiquei encarando aquelas palavras por longos minutos. Pensei em ligar. Em responder. Em dizer alguma coisa. Mas preferi respeitar o silêncio dela. Nós éramos adultos demais pra finais dramáticos. E, sinceramente? Não havia final. Só uma pausa. Ou um ponto final implícito. Só o tempo diria. Na madrugada anterior à viagem, não dormi. Sentei na sala, com a mala pronta perto da porta, e fiquei olhando a cidade através da janela. Lisboa era bonita à noite. As luzes refletiam no rio, os bondes noturnos passavam silenciosos, e uma paz melancólica tomava conta das ruas. Eu estava indo embora. Mais uma vez. Mas agora… diferente da primeira, eu não sentia só raiva. Sentia incerteza. Porque, por mais que tentasse racionalizar tudo — o casamento do meu pai, a noiva jovem, a empresa, o passado — havia algo ali, escondido no fundo do peito, que me deixava inquieto. Como se eu estivesse indo não apenas pra “consertar” a bagunça dos outros, mas pra encarar fantasmas que nunca enfrentei de verdade. Minha mãe. Meu pai. A casa antiga. A ausência. E agora… a presença de alguém que eu nem conhecia ainda. Mas que, de alguma forma, já estava me deixando em estado de alerta. Fechei os olhos por um momento. Senti um arrepio leve, como um aviso. E pela primeira vez desde que tudo começou, me perguntei: O que é que eu tô indo encontrar, afinal?
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