CAPITULO 35

1467 Words
Dante Mancuso A sala estava mergulhada em penumbra. O monitor à minha frente era a única fonte de luz direta, recortando em sombras duras as linhas do meu rosto. Os olhos estavam fixos nas imagens que deslizavam em preto e branco: Catarina na poltrona, ao lado, o suporte de soro. Tudo parecia calmo. Pacífico. Quase um teatro montado para acalmar o público. Mas eu sabia. Eu sempre soube. O caos mora no detalhe. A câmera do canto captava tudo com nitidez c***l. A enfermeira entrou em cena com aquela delicadeza treinada, passos leves como o tilintar de uma ameaça disfarçada. Jaleco branco impecável, coque preso com a precisão de um bisturi. Ela parecia saída de um catálogo. Quase perfeita demais para confiar. O soro estava nas mãos dela. O estetoscópio pendia no pescoço. Ela se aproximou da poltrona como um soldado bem treinado. Cumprimentou Catarina com a mesma doçura inalterável de sempre. Eu ouvi a voz dela pelo monitor de áudio. Uma encenação fria, rotineira, ensaiada. Mas naquele instante, algo quebrou. Catarina virou o rosto. Encarou-a. E falou. Pela primeira vez em dias, falou. — Você tem filhos? — A voz dela estava rouca, seca como a areia do Saara, mas havia algo ali. Uma centelha. A enfermeira hesitou. Por um segundo. Dois. Três. Eu vi. Eu senti. O controle dela tremeu. — Tenho. Uma menina. Seis anos. Catarina inclinou levemente a cabeça. Uma rainha ferida. Mas viva. — Então você sabe. Eu prendi a respiração. Sentia o gosto do metal na boca. O monitor mostrava cada pequeno movimento. O modo como a enfermeira fugia com os olhos. Como o corpo dela tensionava. Catarina estava diferente. Algo nela tinha mudado. Talvez tivesse sido a escuta do coração do bebê. Tum. Tum. Tum. Eu fechei os olhos por um momento e deixei aquele som me atingir. Aquilo não era apenas uma batida. Era uma promessa. Era meu filho. Quando abri os olhos, vi o momento exato em que Catarina libertou o tornozelo. O movimento era quase imperceptível, mas meus olhos estavam treinados. Ela não hesitou. Ela puxou o soro, arrancando a agulha com um estalo agudo. O sangue respingou na coberta. Eu me levantei antes mesmo que o alarme disparasse. A imagem tremia levemente, mas o que vi foi claro. Ela atacou a enfermeira com a fivela da correia. Um golpe seco. Preciso. A mulher caiu, desacordada. Catarina cambaleou. A barriga parecia pesar o triplo. Mas ela andou. Ela chegou à porta. A tranca foi acionada. Meus homens estavam ali, do lado de fora, e logo eu sai da sala de monitoramento e me juntei a eles. Abaixei a balaclava sobre o rosto. O corpo inteiro tenso. Não era medo. Não era dúvida. Era dor. Uma dor antiga. Quando a porta se abriu, a cena que encontrei me atravessou como uma lâmina. Ela estava ali. Ofegante. Suada. O cabelo grudado à testa. Os olhos — os olhos dela estavam em chamas. O bisturi em punho. Um animal acuado e selvagem. A mulher que eu amava. — Saia da minha frente — ela disse. Minha alma gritou. Mas meu corpo ficou imóvel. Ela ergueu a lâmina. Encostou no pulso. Meus homens deram um passo. Eu os contive com um gesto mudo. — Mais um passo, e eu abro meu próprio pulso. E depois a barriga. Não me testem. Deus, Catarina... Ela não blefava. Eu a conhecia. Se ameaçada, ela sangraria. Não por covardia. Mas por soberania. Levantei as mãos. E pela primeira vez, falei. — Abaixe isso, Catarina — falei. A voz saiu como um sussurro rasgado. Carregado de tudo que fui, de tudo que perdi. Ela congelou. Reconheceu. O bisturi tremia. Os olhos dela começaram a tremer. — Não... — ela sussurrou. — Isso... isso não é possível. Eu sabia que não devia. Mas fiz assim mesmo. Levei a mão à balaclava. Devagar. Com todo o cuidado do mundo. Como quem retira um curativo de um ferimento ainda aberto. Ela recuava. — Não brinca com isso. Não brinca comigo. Mas eu precisava. Não havia mais desculpas. Puxei. O que vi no rosto dela partiu o mundo ao meio. Era amor. Era raiva. Era perda. Era reencontro. Era tudo. — Dante... Ela cambaleou para trás, encostando na parede como se precisasse que o mundo a segurasse. A lâmina caiu no chão com um tilintar seco. Os olhos dela se encheram de lágrimas. Mas não de fraqueza. De uma dor que não se nomeia. Eu avancei um passo. Os homens estavam prontos. Mas eu levantei a mão. — Saiam. Agora. — disse sem tirar os olhos dela. Eles hesitaram, mas obedeceram. A porta se fechou. Ficamos sós. Eu dei mais um passo. — Não... não toca em mim. — Ela ergueu a mão, mas o gesto era mais um pedido do que uma ordem. — Catarina... — Você morreu. — A voz dela quebrou. — Eu escutei. Eu... — Ela fechou os olhos. — Você morreu pra mim. Me aproximei. Cada passo era uma lâmina no meu peito. Eu queria tocá-la. Queria ajoelhar e encostar a cabeça na barriga dela. Ouvir de novo aquele som. Tum. Tum. Tum. Meu filho. Nosso filho. Mas então… Sindy, a enfermeira, já estava de pé. Sangue escorria por sua têmpora, mas seus olhos estavam cravados em Catarina. Havia algo em seu semblante — não fúria, não ódio, mas um tipo perigoso de decisão silenciosa. — Espera — murmurei, mas ela já se movia. Catarina recuou um passo, como um animal acuado, sentindo o perigo antes mesmo de vê-lo. Mas Sindy estava decidida, impiedosa, movida por algo que eu não entendi até ser tarde demais. Em um único movimento preciso, ela cravou a seringa no braço de Catarina. O som da pele sendo perfurada ecoou como um estalo seco nos meus ouvidos. — Não! — gritei, correndo até elas. Catarina tentou se esquivar, tentou lutar, os olhos arregalados pela surpresa e pelo medo. Mas era tarde. O líquido já corria por suas veias. — D-Dante… — ela tentou dizer, e então seu corpo tombou para frente, caindo nos meus braços. — Não! CATARINA! — A segurei quando suas pernas fraquejaram. Ela caiu nos meus braços como uma boneca sem fios. O rosto dela — o mesmo que invadia meus sonhos e meus pesadelos — ficou pálido, sereno, como se dormisse. Mas não era sono. Era algo mais profundo. Algo imposto. — O que você fez? — Minha voz saiu baixa, mas carregada de fúria. Meus punhos estavam cerrados, e todo o meu corpo vibrava com uma tensão que ameaçava explodir. Sindy ajeitou os cabelos loiros atrás da orelha com uma calma absurda. — Relaxa, Dante. Ela vai ficar bem quando acordar. — O que você deu pra ela? Que p***a você fez? — Um sedativo. Um sedativo leve. Seguro. Para ela e para o bebê. Ela está exausta, desidratada, sob um estado de estresse constante. Ela ia entrar em colapso. Ia se ferir. Ou ferir o bebê. — Os olhos dela me encararam com uma frieza clínica. — Ela precisava disso. Você sabe que precisava. Eu a encarei por um segundo que pareceu um século. Cada músculo do meu corpo gritava para tirá-la dali. Para protegê-la de tudo e de todos. Mas Catarina já estava desmaiada nos meus braços. Linda. Frágil. Vulnerável. Inacreditável como alguém tão forte podia parecer tão pequena assim. — Me ajuda a colocá-la na cama — Sindy pediu, como se não tivesse acabado de derrubar uma mulher com uma droga qualquer. — Quanto mais ela descansar, melhor. Eu deveria ter gritado. Mandado Sindy se f***r. Chamado os seguranças. Mas em vez disso, fiz o que ela pediu. Porque tudo o que importava naquele momento era Catarina. Segurei-a com cuidado, com a reverência de um homem carregando o próprio coração. Seus cabelos escorriam pelos meus braços como seda molhada. O calor do corpo dela ainda estava ali, mas havia um silêncio inquietante entre seus lábios e seu peito. Sindy afastou o edredom com calma e ajeitou o travesseiro. Eu a deitei, lentamente, temendo que qualquer movimento brusco pudesse quebrá-la. A mão dela escorregou do colchão e eu a segurei antes que caísse. Era como se, mesmo inconsciente, ela ainda resistisse ao meu toque. Depois fiquei ali, ajoelhado ao lado da cama, observando sua respiração. Quieta. Profunda. Como o mar antes de engolir um navio. — Vai durar quanto tempo? — perguntei sem tirar os olhos dela. — Algumas horas. Talvez menos. — Sindy ajustava os monitores ao lado da cama com eficiência cirúrgica. — Mas o suficiente para estabilizar os níveis. E o suficiente para você decidir o que vai fazer daqui em diante. Eu não respondi. Nem olhei para ela. Eu só podia olhar para Catarina. E rezar para que, quando ela abrisse os olhos, ainda me quisesse. Ainda fosse minha.
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