— Daí, eu pensei: será que tem jeito mesmo de ajeitar esse cômodo? Só um milagre mesmo! — Laurine ria enquanto me contava suas aventuras em uma visita de obra.
Estamos terminando de almoçar juntas no meu segundo dia de trabalho, sendo mais parado do que pensei que seria. Laurine me alertou que antes de eu chegar eles entregaram alguns orçamentos grandes e logo teríamos muito trabalho pela frente.
— Anne, preciso correr… hoje minha mãe chega de Lille! Chao — jogou um beijo no ar e sumiu pelas portas do restaurante.
Pelo pouco que convivi com Laurine, já comecei a perceber como ela é doidinha e empolgada!
Assim que começo a entender sobre o que ela está falando, logo ela já está em outro assunto, minha esperança é que um dia eu acompanhe seus pensamentos…
Como falta um tempo de 20 minutos para o retorno do expediente, resolvo caminhar na praça enquanto ouço músicas no celular.
Há um casal de dançarinos, eles estão dançando balé, o que me admira é a coreografia ter combinado perfeitamente com a música que estou ouvindo, isso me faz sorrir.
Meu sorriso morre sendo substituído por um olhar assustado e desacreditado quando vejo meu fone sendo arrancado da minha orelha por alguém desconhecido.
— Você tem problema? — questionei o intrometido que me olhava com desgosto tão rápido que esqueci de que estava em outro país, acabei dizendo a frase em português.
— Et tu es encore touriste ? Maintenant je comprends le mauvais goût.
(E você é ainda turista? Agora entendo o mau gosto)
— Et tu es encore français ? Maintenant je comprends une mauvaise éducation — arranquei meu fone de sua mão e segui andando.
(E você é ainda um francês? Agora entendo a má educação)
Eu entendi bem o que ele disse? Não pode ser… não. Isso não pode ser real, porque se for, aquele carinha petulante é um xenofóbico! Decepção.
Inconformada, chego no escritório. Aquela situação me deixou tão mexida que fiquei até perdida no que devia fazer. Por sorte recebi uma mensagem de Laurine que como sempre salva meus pensamentos malucos.
“Chérie, volto no fim da tarde… ficou faltando só organizar os arquivos, mas não se preocupe! Farei isso quando chegar, coucou”.
Se eu ficar mais um segundo sem efetuar uma tarefa nesta empresa, volto em dois pulos para o Brasil — rio totalmente nervosa enquanto digito uma resposta para Laurine.
“Lau, pode deixar que faço isso, vou vegetar aqui se não fizer nada hoje! Pergunta: Todos aqui são xenofóbicos? Você é?”
Envio a mensagem e corro para a sala de arquivos, começo a escrever as datas, organizando por nome nas prateleiras. Embora pareça antiquado, costumamos guardar todos os projetos e orçamentos impressos em uma sala, um dia Papi me explicou o motivo: “papéis nunca falham” dissera. Claro que também possuímos cópias em nuvens, de qualquer forma temos tudo o que precisamos em papel e em formato digital.
“Ah! Vou surtar, como pude esquecer de te avisar da reunião com o Sr. John, não me mate! Pare o que estiver fazendo agora e corra para sala dele, você está 40 minutos, atrasada. Aviso: ele é um pouquinho bravo.
Sobre o assunto xenofobia, querida, tá tudo bem? Não importa. CORRE!”
Quem vai surtar sou eu, m*l conheço o sobrinho do Seu Montez e ainda causarei uma bela de uma má impressão — bufo e sigo até a sala dele.
Respiro fundo e encaro a porta. NÃO ERRE — penso enquanto dou duas batidinhas seguidas na porta.
— Entre — ouço um som abafado pela porta.
Giro a maçaneta e encaro John assim que a porta é aberta por completo.
Ele é o cara do fone? — Faço a cara mais séria que tenho.
— Está 43 minutos, atrasada — sustentou o meu olhar — Então além de m*l gosto musical, a senhorita é atrasada? O que mais esperar de você? — Já odeio ele — Onde meu tio estava com a cabeça… — completou sem um pingo de consideração.
— Perdão pelo atraso, senhor — ignoro seus palpites sobre mim e abro um sorriso — Vejo que realmente não me conhece, prazer Anne. Em que posso ajudá-lo?
— Me ajudaria se chegasse no horário na próxima reunião…
— Sem dúvidas, estava arquivando uns projetos e me perdi na hora, peço que aceite meu pedido de desculpas. — Resolvi ser mais rápida e respondê-lo antes de qualquer outro insulto.
— Não é seu trabalho arquivar nada.
— Senhor, eu sei qual é meu trabalho — disse calmamente por fora, mas por dentro eu via uma cena linda, onde eu espancava a cara desse babacão — Creio que seríamos mais produtivos, se déssemos continuidade ao assunto e evitássemos um atraso maior a conversa além do que já proporcionei.
Ele pareceu um pouco impressionado com a minha resposta. Eu é que não vou me estressar com uma pessoa que não merece um fio de cabelo branco meu.
— Bom, senhorita, esta reunião é para definirmos os aspectos da próxima construção que faremos. Ainda não estou com todas as informações, mas amanhã visitamos o terreno e conversaremos sobre.
Uau, toda essa lengalenga para falar só isso? Quase revirei os olhos. Acredito que um e-mail teria sido suficiente ou talvez uma carta? Não sei. Desde que me impedisse de ter que olhar para esse xenofóbico.
— Certo, nos encontramos amanhã? — disse algo totalmente contrário aos meus pensamentos.
— Sim! E para evitar problemas, passo na sua casa e vamos direto.
— Tudo bem, eu estou morando…
— Na casa de aluguel do lado da minha. É eu sei. Esteja pronta!
Como eu não queria trocar mais nenhuma palavra com esse ser humano grosseiro e portador de todos os adjetivos negativos do meu vocabulário “abrasileirado” apenas assenti com minha mão dando um joinha e um sorriso falso.
Volto para sala de arquivos e me concentro em analisar os restantes, procurando não pensar na última conversa que tive.
Laurine não demorou muito para chegar, conseguimos finalizar todos os arquivos e demos fim ao expediente.
— Topa uma pizza na minha casa? — sugiro ao sairmos do prédio.
— Esqueceu que minha mãe está aqui? — questionou — Preciso fazer companhia para ela.
— Não ligo se convidá-la — meu telefone começa a tocar e só escuto Lau dizer irá perguntar o que a mãe dela acha da minha proposta — Alô? Quero dizer Salut, ou melhor, alô?!
Ouço uma risada conhecida, de fato eu teria que dizer alô, só tenho um número que teria que responder em francês, e a dona desse número está na minha frente também ao telefone, mas com sua mãe.
— Annelita, você me surpreende a cada ligação! Quantas vezes preciso te alertar para olhar o identificador de chamadas? Ainda mais agora, que não está no Brasil — embora não esteja vendo, consigo perceber que está sorrindo.
— Perdoe-me papi, estava conversando com Laurine, apenas atendi de supetão — olho no relógio no meu pulso — Ué? Mas aí são quase 23h da noite, esse horário sei que você costuma já estar nos 3° sono.
— De fato, mas desde que uma certa moça voou para longe de mim, tenho que criar o hábito ligar para ela nos horários adequados, não acha? Mas voltando ao que interessa, acabo de sair de uma ligação com meu sobrinho e ele te adorou!
— Tem certeza de que estamos falando da mesma pessoa? — disse sem pensar muito.
— Então realmente houve um desentendimento? Ele me disse que você é atrasada, faz o trabalho que não te pertence e que ainda não aprecia a cultura francesa, não deixando de acrescentar que não sabe por que eu te mandei para aí — ele ria incansavelmente. Já eu bufava de raiva!
— Não entendo como isso pode soar positivo.
— Garanto a você que é, e folgo em saber que continua sendo a mesma — afirma com mais segurança que eu mesma — Duvido muito que seja de sua responsabilidade, o atraso, algo muito importante apareceu para ele ocorrer. Agora, sobre não fazer o seu trabalho, tenho certeza de que estava fazendo exatamente o que precisava ser feito! John é muito dramático querida. — Ouvir isso me tranquilizou, até me fez abrir um sorriso.
— Confesso que ele me assustou! — desabafo quase que ofendida.
— Não se preocupe, se ele te irritar, coloque-o no lugar dele, de preferência em português, ele entende muito bem!
— Como é?
— Sim, filha, até parece que meu irmão não deixaria bem firmado nossa cultura em meu sobrinho. John pode até amar a França, mas conhece muito bem o Brasil, inclusive a nossa língua.
— Ah! — Fiquei um pouco sem palavras, parece que estou me enfiando em uma bela confusão. Visualizo Laurine acenando e dançando de felicidade, presumo que poderá comer em casa hoje — Papi, te juro que estou fazendo o meu melhor, não vou dizer que simpatizei com ele, e sei que é totalmente recíproco, mas estou bem tranquila em relação a isso, pois não vim para cá para ser amiga de seu sobrinho, estou aqui por você!
— Sim, eu sei Annelita e não se preocupe ok? Talvez agora você não veja, mas vocês vão se entender… Por ora, faça exatamente o que precisa fazer, as coisas acontecem nessa vida, não precisamos forçar!
— Tem razão, como sempre — sorrio — Que saudades!
— Saudade é pouco para definir o que estou sentindo. Mas no momento só quero dormir, filha! — ri bastante com esse comentário, sei que para ele é um esforço estar acordado — Vai para casa e descanse também, te amo, Bonne Nuit!
— Te amo! — Desligo e encaro Laurine que já está prontíssima dentro do seu carro.
— Me espera para comer hein! — ela disse em francês
— Ok! — respondo entrando com minhas tralhas no carro.