Capítulo 15 — Convite que Custa Caro

1707 Words
Isadora O silêncio da rua ainda não tinha sido quebrado pelos latidos quando os rádios já cortavam o ar. Desci a escada, sentindo o terço queimar na minha pele, e encontrei a sala transformada: papéis impressos e telefones abertos em mapas estavam por toda parte, com homens jovens encostados nas paredes. Sombra estava de pé, imponente, as mãos cruzadas nas costas e o rosto tenso, um presságio de algo iminente. — Senta. — A ordem não admitia questionamentos. Sentei. Ele espalhou sobre a mesa três prints de localização: uma bolinha azul andando do portão lateral até a Viela da Pipa Azul; outra parada no posto de saúde; outra voltando por uma rota que eu jamais teria percebido como “errada”. Ao lado, a cópia de uma planilha com horários. O nome “Dora” rabiscado a lápis. — Você quer falar primeiro? — ele disse, sem ironia. — Não vou negar. — Minha voz veio inteira, apesar do tremor escondido nos dedos. — Quero estudar. Quero viver. O posto precisa de mão, e eu preciso de ar que não foi filtrado por você. Um silêncio pontudo se instalou. Breno, o segurança de cicatriz na sobrancelha, ajeitou o rádio no ombro. Ítalo, magro, olhos de torre, observou sem piscar. n**o Célio ficou ao fundo, quieto como árvore velha. — Estudar — Sombra repetiu, como quem experimenta uma palavra que não confia. — Estuda aqui, com professora, com tudo pago. Viver aqui, com a rua entrando na janela quando eu deixar. — Viver de aluguel da tua permissão não é viver — respondi. — Eu não sou vitrine. Sou gente. Ele virou o rosto devagar, como se encostasse a raiva num gancho para não usá-la antes da hora. — Você sabe a regra do morro. — A frase veio baixa. — Olhar é convite. E convite custa caro. Você convida a rua, a rua te cobra. E me cobra, duas vezes. Abri as mãos sobre a mesa, as impressões me olhando de volta como espelhos tortos. — Eu não rompi nada. Eu entrei certo e saí certo. Usei nome falso, máscara, horário curto. Eu voltei. — Voltou porque eu deixei existir caminho. — Ele apontou para as setas desenhadas nos mapas. — E voltou vista. — Tocou num print invisível, aquele que mora na minha nuca desde o baile. — Te vejo. A mensagem seca, impressa na minha memória, atravessou a sala como navalha. Ele sabia. Não do homem — do cerco. Não era ciúme; era controle puro. — Quem te reporta? — arrisquei, medindo o chão. — Não te diz respeito quem — ele cortou. — Te diz respeito que. — E, sem levantar a voz: — A partir de agora, escolta reforçada. Breno e Ítalo alternam porta e corredor. Vera te leva e traz. Telefone novo: sem internet, sem câmera. Rotas revistas a cada saída. Tainá, acesso limitado à casa por quinze dias. — Olhou minha reação, a dor no meio da sobrancelha. — Limite não é punição; é cerca contra o abismo. — Punição é viver com porta aberta e janela lacrada — falei, sentindo a voz me arriscar. — Eu não sou negócio teu, pai. A palavra “pai” o moveu um milímetro para trás. Abriu e fechou a mão, como quem reeduca os próprios músculos. — Você é minha vida. — Ele raramente usava esse registro. — E minha fraqueza. Se eu errar com você, o morro me destrói por dentro. — Tornou à dureza: — Assunto encerrado. — Não está. — Juntei coragem onde a infância costuma se encolher. — Eu quero o posto. Quero aprender a existir para além do teu sobrenome. Se você me tranca, eu minto. Se você me põe escolta, eu aprendo a driblar. Eu não vou parar. Ele me encarou com uma calma que doeu mais que grito. — Então paga o teu convite. — Fez um gesto para Breno. — Começa hoje. A ação se espalhou da sala para o resto da casa. Breno comunicava-se pelo rádio, Ítalo reinstalava uma câmera discreta no corredor, Vera preparava a chave do carro, Célio estava no portão, e havia uma dupla nas motos. As barreiras invisíveis cresciam como hera: um novo cadeado no portão lateral, a fechadura trocada na lavanderia, sensores reativados nas janelas e uma nova senha no wi-fi que nem era meu. Meu quarto perdeu espaço, o ar ficou mais denso. — Tainá? — perguntei, implorando sem joelho no chão. — Acesso controlado. — Sombra. — Quando vier, fala comigo antes. — Fez uma pausa. — E não testa a sorte hoje. Saí da sala com um tremor que tentava chamar de dignidade. Dona Nilda esperava na cozinha com o olho atento das que sabem onde a corda desfia. Colocou um pão na minha mão e outra coisa: um chaveiro pequeno, ferro frio, com fita azul gasta. — Se um dia você precisar escolher você — ela disse, cochichando no fundo da garganta, para que nem o azulejo escutasse —, tem uma saída que teu pai esqueceu que existe porque confia demais no próprio mapa. A chave abre a caixa da bomba d’água lá nos fundos. Atrás, tem um trinco velho que dá para a travessa do Seu Onofre. Da travessa, você desce pelo Beco do Pinho e entra pela porta lateral da Capela de Santa Rita. — Tocou meu terço por cima da blusa. — Dona Celeste vai entender se você disser: “vim pagar promessa sem vela.” — Nilda… — A voz falhou. — Se ele descobre… — Se ele descobre, eu seguro o mundo com ele. — Fez o sinal da cruz na minha testa, como quando eu era criança com febre. — Mas você não morre dentro da própria casa. O pão pesou como pedra na mão. Sentei no banco, engoli seco. Vera apareceu na porta, discreta. — Moça, o carro tá pronto. Vamos ao cursinho como o chefe determinou. — A palavra “cursinho” veio com aspas invisíveis. — Vamos. — Levantei. Breno veio atrás, Ítalo ficou à frente. A escolta tinha a elegância silenciosa de quem sabe que intimida sem pancada. Saímos. A rua me olhou com a curiosidade de sempre, agora aparada por um respeito estranho: duas motos acompanhando, porta traseira abrindo na hora certa, mão que impede o passo de alguém se aproximar demais. O morro, naquele dia, não era o meu morro: era o muro dele. E eu, dentro. No sinal da Estrada, um motoqueiro de capacete espelhado parou no corredor. O vidro refletia minha máscara imaginária. Olhou sem olhar. Vazou quando a luz abriu. Vigilância por dentro, vigia por fora, câmera no corredor. Minha pele aprendeu o preço das palavras: convite. No cursinho — que naquela manhã virou mesa numa sala vazia, com Leda resignada folheando apostilas —, tentei colar meu corpo no texto. “Liberdade é contrato de risco.” Sublinhei com a mão firme. Vera esperou do lado de fora, Breno no corredor, Ítalo trocando de posição a cada vinte minutos. Quando voltei, a casa tinha novas rotas internas: tapetes recolhidos (ruído denuncia), portas que não fechavam mais “por dentro”, luzes com sensor adaptado. — Almoço — Nilda avisou, mas eu só queria vento. Na sala, Sombra olhava outra vez o mapa da parede, agora com alfinetes a mais. Senti que ele me percebeu antes de eu existir no cômodo. — Hoje à noite vamos receber aliados. — Ele não anunciou: determinou. — Você desce, senta, come, sorri. Nada de postura de guerra. Dora fica em casa. Isadora fica ao lado. — Eu não sou joia de mesa — respondi, cansada de escovar a língua antes de cada frase. — Você é minha filha — ele disse, pela primeira vez naquela manhã com a palavra que me doía do jeito bom e do r**m. — E isso basta. — Não basta — retruquei, e foi ali que o corpo tremeu do jeito certo, o que cria fissura. — Eu não sou só sua filha. Eu sou eu. — Respirei, segurando o pranto que queria me fazer pequena. — Eu volto ao posto. Nem que seja uma vez por semana. Nem que seja meia hora. Nem que seja pela porta dos fundos da Santa Rita, se você trancar todas as outras. Ele me olhou longo. O aviso que veio foi caro e claro: — Convite você já fez. Agora paga ficando viva. — Virou-se para a parede. — E obedece até que eu ache outro preço que não seja o teu sangue. Fiquei imóvel, como quem apanha do lado que pedia abraço. Voltei para o quarto com a chave de Nilda detonando contra a perna, a vontade de fugir brigando com a necessidade de ficar. A janela do fundo agora tinha travas; ainda assim, o céu estava inteiro do lado de fora. Tainá mandou uma mensagem curta: “Tô aqui.” Respondi: “Eu também. Por enquanto.” Sentei no chão, encostei a cabeça na cama, rezei sem reza. O baile visitou minha memória: máscara de renda, olho travado, sorriso de canto — o playboy que não sabia o preço do meu nome. Eu quis o nome dele naquela hora, quase como se isso me desse seio para respirar. Engoli a vontade. Convites demais na mesma semana matam gente. À noite, desmontaram a mesa grande. Aliados chegaram com perfume caro e olhos que medem. Eu sentei, comi, sorri pelo canto. Sombra em eixo, a casa em ordem militar. Nilda passou atrás de mim e pousou a mão nas minhas costas: ferro e colo. — Se precisar de ajuda, você sabe onde me encontrar — ela sussurrou, quase sem mover os lábios. — Capela de Santa Rita. A senha é “Pagar promessa sem vela.” A chave está com você. Apertei a fita azul no bolso e senti, por um instante, poder. Não o dele. O meu: o poder de saber a saída. Embora eu não tenha fugido naquela noite, adormeci com a sensação de que uma porta me chamava pelo nome. E finalmente compreendi o título que a vida me impôs: um convite caro. Aquele que convida a própria liberdade assina um contrato com a própria coragem. Eu assinei esse contrato. Agora, eu pago o preço.
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