Capítulo 21 — Terço e Papel

1384 Words
Isadora A casa acordou antes do sol. Os rádios mastigavam sílabas, as travas novas faziam barulho de chave dentro de peito, e o corredor carregava um cheiro de desinfetante que fingia limpeza no que era controle. Desci de meias, tentando não acordar a memória do beijo na viela. O quase e o depois dele seguiam incendiando a boca como quando a gente toma chá muito quente e finge que está tudo bem. Dona Nilda me esperava de avental, mas com olhos que não pertencem a objeto doméstico nenhum. Ela viu meu susto antes que eu conseguisse esconder no cabelo preso. — Senta, menina — ela disse, empurrando a xícara pra perto como quem empurra salva-vidas. Sentei, obediente, e devolvi o silêncio. Foi Nilda quem o rompeu do jeito certo: abrindo a gaveta torta da mesa e tirando um terço de contas gastas, envolto num bilhete dobrado pequeno. — Bota no bolso — ela cochichou, aproximando-se como quem dá segredo e bênção na mesma mão. — Coragem não é barulho. O papel pesou mais que o terço. Eu enfiei os dois no bolso do short e senti um lugar dentro de mim respirar. — Nilda… — comecei, e a voz veio com areia. — Eu quero. — Parei, buscando a palavra certa. — Eu quero aquele desconhecido. Quero sem culpar o meu pai por tudo. Não foi Sombra que me empurrou pro beijo. Fui eu quem entrou na viela. E foi ele quem não roubou a minha pressa. Nilda assentiu, como quem ouve a maré dizer seu nome. — Querer não é pecado, Isa. Mentir pra si mesma é que mata de fininho. — Alisou meu ombro. — E culpa é faca que volta para a mão. Teu pai é montanha. Você não precisa derrubar montanha: precisa aprender trilha. Respirei por onde deu. O beijo piscou na memória: mão visível, encostando minha mandíbula de leve; código no som (“Dora respira”); água primeiro no balcão; a sensação de que alguém me quis sem querer me usar. A mesma cena trouxe a sombra do meu pai no poste torto: olhos de inventário, não de vingança. No meio de tudo, eu: viva e acusada de viver. — Ele te trata como gente? — Nilda perguntou, direta. — Trata. E se tivesse que ir embora antes do sim, ele iria. — Senti a verdade estalar. — Esperar não é o forte dos meninos que eu conheci. Nele, é. — Então começa por você esperar você — Nilda sorriu com canto de boca. — E não me faça cara de santa corajosa. Coragem sem barulho não é covardia, é disciplina. — Bateu de leve no meu bolso. — Lê quando o peito esquecer. Antes que eu respondesse, Breno apareceu na porta da cozinha, rádio no ombro, postura de sentinela. — O chefe chamou — avisou. — Sala. Fui. Encontrei Sombra de pé, costas para o mapa agora ainda mais furado de alfinetes. Ítalo ao lado, Vera encostada na parede, aprendendo o chão que pisa, e n**o Célio controlando ruídos invisíveis. Meu pai virou meio rosto quando entrei. Não era guerra. Era auditoria. — Jantar de família — ele disse, direto. — Hoje. Aliados. — Contou nos dedos, não para mim, mas para o mundo: — Senhor Dalmo, Coruja, Padre Remo. — Os nomes caíram como peças que ele sabe montar sem manual. — Você desce, senta, come e sorri. Sem máscara. Sem personagem. — Pausou um segundo, retrovisor interno atento. — Sem me desafiar. — Não vim pra palco, pai — respondi, escolhendo a palavra que não espeta. — Vim pra mesa. E se for pra ser prato, eu subo de volta. — Eu não queria briga, queria fronteira. Ele respirou pela narina como quem mede tempero. Olhou para Vera. — Amanhã, postinho. Uma manhã. Vera leva, Vera traz. — Voltou a mim. — Sem laje por duas semanas continua valendo. E sem viela. — Completou de cabeça baixa, a parecer menos pedra e mais homem. — Rastreio em cima do badboy segue sem encostar. Badboy na boca dele soou aviso e respiro juntos. Eu assenti. Não exigir sangue é gesto que, aqui, não parece grande, mas é. — Eu entendi — falei. — E… obrigada por não transformar meu beijo em guerra. Ele não devolveu a palavra “obrigada”. Devolveu um ajuste: — Tainá entra pela cozinha, fala comigo antes. Não é castigo. É regra. — Eu sei. — E estava grata por isso também. A reunião se dissolveu no prático: Ítalo redefinindo rotas, Breno cortando curiosos com o olhar, Célio organizando porta. Antes de sair, meu pai me chamou pelo nome curto — raridade. — Isa. Virei. — Coragem — ele disse, barato e raro. — Coragem não é barulho. — A frase me atingiu como se tivesse lido o bilhete na minha pele. — Me ajuda a fazer o certo sem virar o monstro que a rua pede. Foi ali que entendi: ele estava tentando. Dentro do que sabe, do que é, do que o fez. Não era licença para tudo; era mão estendida onde geralmente vem punho. — Eu ajudo — respondi. — Se você me ajudar a existir. Voltamos cada um para sua trincheira. No meu quarto, encostei a testa na janela com travas novas. O morro, lá fora, tinha cheiro de frango de domingo marinando cedo e óleo de motor cansado. Tirei o bilhete do bolso. Letras de Nilda, redondas: Coragem não é barulho. Barulho é medo fantasiado. Coragem é passo certo. Sorri. O terço ficou quente na mão. Eu não tenho certeza em nada que vale a pena, mas tenho decisão. E, hoje, ela é esta: quero o desconhecido que não me rouba pressa. Quero sem pendurar culpa todo dia no pescoço do meu pai. Quero sem virar troféu de ninguém. O resto do dia foi preparo: Vera confirmando cardápio, Nilda testando toalha como bandeira branca, Célio medindo tempo de portão a portão, Breno revisando câmera, Ítalo limpando corredor como quem afia faca. Vesti um vestido simples, sem brilho, e um batom que me devolveu o rosto. O terço no bolso; o bilhete, no forro. Tainá chegou pela cozinha, como combinado. Me abraçou com os olhos, não com os braços. — Respira — disse, meia rindo. — Modo sussurro hoje. — Modo sussurro — repeti. — Sobre ele… — Ela procurou a palavra que não vira manchete. — Ele tá. Inteiro o suficiente pra aprender. — Não perguntou, acalmou. Meu corpo entendeu mais que a frase. Tive vontade de chorar sem motivo único. Água primeiro, lembrei, e bebi. Quando os aliados entraram, a casa virou palco sem luzes. Senhor Dalmo trouxe charuto e riso; Coruja trouxe olhos que nunca dormem; Padre Remo trouxe silêncio que pesa mais que sermão. Sentei ao lado do meu pai, não atrás. Comi devagar. Sorri de canto. Ouvia os homens trocarem juramentos em código; por baixo, eu repetia o meu: existir sem virar bandeira. — Tá bonita, Isadora — disse o Padre, com mansidão de quem enxerga além do que convém. — Tô viva — respondi, e ele entendeu que, nesta casa, é quase a mesma coisa. Lá fora, um motor de moto riscou a rua e parou. Célio sequer olhou; sabia o que era. Aviso de sempre. Te vejo. Meus dedos buscaram o bilhete no forro: coragem não é barulho. A noite trouxe o fim tardio, e o alívio precoce. Ao fechar a porta, o morro já repousava. Sentei no chão, encostada na cama, e as memórias vieram: o estranho sem nome, a paciência no toque, o respeito no gesto, o mar em seu perfume. Pensei em meu pai, a montanha que se esforça para não ser estrondo. Pensei nas duas semanas como um aprendizado: a necessidade de existir sem o barulho protetor do lar para não me tornar órfã do silêncio. Apaguei a luz. O terço permaneceu no bolso. O bilhete, na mente. O beijo, um compromisso mudo na boca. E, antes de adormecer, fiz a prece sem altar: — Me mantenha firme no caminho certo, mesmo quando a vontade clama. Não me deixe culpar quem me ama pelo que me falta. Que eu saiba desejar sem me tornar ruído. Lá fora, o morro respondeu na única linguagem que possui: respira. Eu respirei. E escolhi, mais uma vez, a mim.
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