Capítulo 20 — Aviso Sem Mãos

1528 Words
Lucas A laje tinha acabado de devolver o fôlego à cidade quando peguei a viela mais curta. Rafa ainda discutia com o motorista do aplicativo sobre ponto de encontro; eu preferi descer a pé até a rua principal. Cheiro de óleo, restos de fritura, riso cansado. A noite parecia ter feito as pazes com o próprio susto. O mar me ensinou uma coisa: depois de uma série brava, você recolhe prancha e não tira onda com a sorte. Eu desci calado, de garrafa d’água na mão, repetindo o meu mantra bobo — água sempre primeiro — como quem reza baixinho para não desandar. Foi na esquina baixa, a da casa pintada de verde com poste torto, que o enredo trocou de pista. Dois caras fecharam a passagem: um de boné rente, outro de touca puxada por cima da sobrancelha. Nem hostis, nem amigos — o tipo de gente que o morro usa para perguntar sem precisar de ponto de interrogação. — Perdeu, playboy? — o do boné fez a gentileza de sorrir sem dente. — A rua cobra pedágio pra quem gosta de passear depois da hora. Levantei as mãos abertas, cotovelos soltos, palmas visíveis. Não pechincho respeito — dou. — Boa noite, família. Passagem lisa. Sem cena. — Olhar é convite — o da touca riu, curto. — E convite custa caro. — Eu sei. — Mantive o tom baixo, sem cuspir orgulho. — Hoje não convidei ninguém. Tô voltando. — Voltando de quê? — Boné encostou o ombro na parede, alargando a esquina que já era estreita. — De dançar com a vida dos outros? — Voltando de trabalho, se conta. Ajudei velho, segurei escada, levei água. — Mordi o sarcasmo antes que ele saísse. — Sem manchete. Eles se entreolharam, avaliando o peso da minha resposta. Quando a noite quer te ler, ela usa leitores com a paciência de bibliotecário e a mão de pedreiro. — Onde dorme? — Touca. — Longe daqui. — Quem segura você? — Boné. — Meu próprio freio. — Quem te segura se o freio falhar? — Touca. — A regra. O do boné balançou a cabeça como quem admite que o aluno estudou o suficiente para passar de ano por média, mas não para gabaritar. A mão dele saiu do bolso devagar e tocou meu ombro, o detalhe medido de quem quer desenhar a fronteira. — Tem regra, sim — ele disse. — A primeira é não cortar caminho por onde não te chamaram. — Não corto. — Mostrei as mãos outra vez. — Entro e saio certo. — Entrou — Touca corrigiu. — Sair, a gente vê. O primeiro soco veio como carimbo: curto, no corpo, sem cena. Reto na costela. O ar saiu como tampa de garrafa. Rafa não estava ali para puxar meu orelhão; n**o Célio não atravessou a esquina. Eu respirei onde deu. — Sem herói — eu disse para mim, em voz de pensamento. — Sem herói. Outro golpe, desta vez no plexo, fez meu joelho conversar com o chão. Eu não reagi com punho. Reagi com postura: voltei o tronco, protegi rosto e rins, mantive os olhos no nível certo — baixo o suficiente para não provocar, acesso o suficiente para não parecer entrega. — Tá entendendo? — Boné quis a prova. — Tô. — Engoli sangue. — Respeito primeiro. — Bom. — Touca ajeitou a camisa. — Porque falta de respeito a rua cobra à vista. Curiosidade a rua parcela. Mais um cruzado de aviso, no ombro. A borda da parede mordeu a minha costela. Eu pensei na máscara de renda, no beijo curto que tinha me dado mais ordem que mil sermões. Pensei na mão visível dele — minha — quando encostou na minha mandíbula de leve. Eu queria viver para voltar a olhar sem roubar. — Eu passo — falei, simples. — Passa. — Boné abriu um palmo. — E vê se aprende a gostar de calçada. Esquina baixa não foi feita pra tua pressa. Levantei. Dói mais no orgulho quando você não entendeu o recado da primeira vez. Eu tinha entendido; eles carimbaram o comprovante. Dei dois passos. — Ei. — Touca me segurou pelo cotovelo, macio, sem mão fechada. — Sem foto. Sem after contando o morro como troféu. Se te quiserem vivo, te deixam aprender regra. Se não te quiserem, nem dá tempo de você saber. A frase não veio de Touca. Veio de sombra. Nego Célio apareceu como parede velha que sempre esteve ali. Não tirou a mão do rádio, não trocou a posição do corpo. Só existiu. E quando ele existe, a noite ajeita a postura. — Fecha a esquina — ele disse para os dois, sem serrilha na voz. — Deixa o rapaz pagar o que deve como adulto, não como manchete. Boné e Touca abriram espaço. Não eram inimigos; eram leitores. Entenderam a nota do bibliotecário. O morro, às vezes, funciona como sala de aula com métodos antiquados. Célio me olhou só depois que a noite escolheu ficar quieta. O olhar dele não era abraço, nem pedra. Era contabilidade. — Ficou de pé — ele registrou. — Fiquei. — Aprendeu? — Aprendi que esquina é prova e que olhar parece convite mesmo quando a gente tá só passando. — Aprende a desviar sem parecer que tá com medo. — Ele falou como quem monta móvel: passo a passo. — Calçada e linha do meio. Quando a rua quer te ler, você deixa. Mas não facilita com atalho. Assenti, o ombro ardendo e o lábio cortado me lembrando que o corpo não esquece o que a cabeça finge que dá para negociar. — Você ia reagir? — ele perguntou, só para ter certeza. — Com mão, não. — O sarcasmo veio pedir palco, eu fechei a cortina. — Com boca, às vezes eu estrago. Hoje eu mordi antes. — Melhora. — Ele deu meio passo para me liberar passagem. — Se te quiserem vivo, te deixam aprender regra. — Repetiu com acento de quem sabe que, naquela frase, tem vida e ameaça juntas. — Hoje te deixaram. Amanhã, não conta com isso. — Tô contado comigo, então. — Conta com o lugar também. — Ele apontou com o queixo para a laje que já dormia. — Conduta vira senha. Você já sabe duas. Falta não desperdiçar. — Água primeiro — respondi, quase rindo apesar da dor. — E depois silêncio. O bar viu. A viela ouviu. Não precisa de post. Ficamos um segundo olhando o mesmo pedaço de cimento. Pensei em Sombra. Pensei no homem no alto que ontem mediu o estranho que não correu primeiro. Célio não disse nome nenhum. Não precisava. — Eu volto amanhã? — arrisquei a pergunta errada. — Você volta quando não vier fazer falta. — Ele sinalizou com o queixo em direção ao posto. — Amanhã, melhor o dia te ver trabalhando onde o morro reconhece serviço. Noite você não “ganha” — merece. — Entendi. — Dobra a esquina e sai certo — ele fechou. — Sem olhar pra trás como quem quer briga. Olha como quem aprendeu. Dobrei. Dois passos e o corpo chiou ao lembrar da costela. Tinha sangue na boca, gosto de ferro. Eu revirei a água e lavei o que dava. Na cabeça, uma frase parou de ser lema bonito e virou protocolo: não pechincho respeito — dou. Quem pechincha tenta ganhar no abatimento. Quem dá, paga primeiro e sai vivo. O carro do Rafa encostou três ruas depois. Ele me olhou, sério, o tom que me chama de volta do mar quando a corrente vira. — Aconteceu? — Aconteceu. — Encostei a cabeça no banco, respirei pelo lado que doía menos. — Sai machucado. Não humilhado. — Quer hospital? — Quero cama. E um texto amanhã, de qualquer coisa que não tenha sangue — brinquei, manso. — Te levo. — Ele não perguntou mais nada. Amigos de noite com regra sabem que a narração vem no dia. Enquanto o carro comia ladeira, eu revi a esquina como quem assiste replay em câmera lenta. Boné e Touca não eram monstros; eram vírgulas numa frase que eu insisto em escrever rápido. Célio foi ponto — desses que salvam texto de virar grito. Olhei o retrovisor e vi só a cidade em descanso. Se me quiserem vivo, pensei, vão me deixar aprender mais duas, três, dez regras. Se não me quiserem, eu não saberei — simples assim. Minha parte é não provocar a resposta errada. Chegando em casa, bati uma foto tosca do roxo nas costelas — não para postar, para lembrar. Escrevi com caneta no espelho do banheiro, letra pequena: “Água primeiro. Calçada e linha do meio. Sem atalhos. Conduta > curiosidade.” A cidade não fala “boa noite”. Ela fala “te vejo”. Eu respondi com nod de cabeça, sem mão. O aviso tinha sido dado do jeito certo: sem mãos que me fizessem esquecer a regra — ainda que as mãos tivessem carimbado o corpo para o recado não sair. Eu volto. Inteiro, ou o mais inteiro que der. E, quando eu voltar, que o morro me leia e não precise me corrigir na margem.
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