Lucas
A laje tinha acabado de devolver o fôlego à cidade quando peguei a viela mais curta. Rafa ainda discutia com o motorista do aplicativo sobre ponto de encontro; eu preferi descer a pé até a rua principal. Cheiro de óleo, restos de fritura, riso cansado. A noite parecia ter feito as pazes com o próprio susto.
O mar me ensinou uma coisa: depois de uma série brava, você recolhe prancha e não tira onda com a sorte. Eu desci calado, de garrafa d’água na mão, repetindo o meu mantra bobo — água sempre primeiro — como quem reza baixinho para não desandar.
Foi na esquina baixa, a da casa pintada de verde com poste torto, que o enredo trocou de pista. Dois caras fecharam a passagem: um de boné rente, outro de touca puxada por cima da sobrancelha. Nem hostis, nem amigos — o tipo de gente que o morro usa para perguntar sem precisar de ponto de interrogação.
— Perdeu, playboy? — o do boné fez a gentileza de sorrir sem dente. — A rua cobra pedágio pra quem gosta de passear depois da hora.
Levantei as mãos abertas, cotovelos soltos, palmas visíveis. Não pechincho respeito — dou.
— Boa noite, família. Passagem lisa. Sem cena.
— Olhar é convite — o da touca riu, curto. — E convite custa caro.
— Eu sei. — Mantive o tom baixo, sem cuspir orgulho. — Hoje não convidei ninguém. Tô voltando.
— Voltando de quê? — Boné encostou o ombro na parede, alargando a esquina que já era estreita. — De dançar com a vida dos outros?
— Voltando de trabalho, se conta. Ajudei velho, segurei escada, levei água. — Mordi o sarcasmo antes que ele saísse. — Sem manchete.
Eles se entreolharam, avaliando o peso da minha resposta. Quando a noite quer te ler, ela usa leitores com a paciência de bibliotecário e a mão de pedreiro.
— Onde dorme? — Touca.
— Longe daqui.
— Quem segura você? — Boné.
— Meu próprio freio.
— Quem te segura se o freio falhar? — Touca.
— A regra.
O do boné balançou a cabeça como quem admite que o aluno estudou o suficiente para passar de ano por média, mas não para gabaritar. A mão dele saiu do bolso devagar e tocou meu ombro, o detalhe medido de quem quer desenhar a fronteira.
— Tem regra, sim — ele disse. — A primeira é não cortar caminho por onde não te chamaram.
— Não corto. — Mostrei as mãos outra vez. — Entro e saio certo.
— Entrou — Touca corrigiu. — Sair, a gente vê.
O primeiro soco veio como carimbo: curto, no corpo, sem cena. Reto na costela. O ar saiu como tampa de garrafa. Rafa não estava ali para puxar meu orelhão; n**o Célio não atravessou a esquina. Eu respirei onde deu.
— Sem herói — eu disse para mim, em voz de pensamento. — Sem herói.
Outro golpe, desta vez no plexo, fez meu joelho conversar com o chão. Eu não reagi com punho. Reagi com postura: voltei o tronco, protegi rosto e rins, mantive os olhos no nível certo — baixo o suficiente para não provocar, acesso o suficiente para não parecer entrega.
— Tá entendendo? — Boné quis a prova.
— Tô. — Engoli sangue. — Respeito primeiro.
— Bom. — Touca ajeitou a camisa. — Porque falta de respeito a rua cobra à vista. Curiosidade a rua parcela.
Mais um cruzado de aviso, no ombro. A borda da parede mordeu a minha costela. Eu pensei na máscara de renda, no beijo curto que tinha me dado mais ordem que mil sermões. Pensei na mão visível dele — minha — quando encostou na minha mandíbula de leve. Eu queria viver para voltar a olhar sem roubar.
— Eu passo — falei, simples.
— Passa. — Boné abriu um palmo. — E vê se aprende a gostar de calçada. Esquina baixa não foi feita pra tua pressa.
Levantei. Dói mais no orgulho quando você não entendeu o recado da primeira vez. Eu tinha entendido; eles carimbaram o comprovante. Dei dois passos.
— Ei. — Touca me segurou pelo cotovelo, macio, sem mão fechada. — Sem foto. Sem after contando o morro como troféu. Se te quiserem vivo, te deixam aprender regra. Se não te quiserem, nem dá tempo de você saber.
A frase não veio de Touca.
Veio de sombra.
Nego Célio apareceu como parede velha que sempre esteve ali. Não tirou a mão do rádio, não trocou a posição do corpo. Só existiu. E quando ele existe, a noite ajeita a postura.
— Fecha a esquina — ele disse para os dois, sem serrilha na voz. — Deixa o rapaz pagar o que deve como adulto, não como manchete.
Boné e Touca abriram espaço. Não eram inimigos; eram leitores. Entenderam a nota do bibliotecário. O morro, às vezes, funciona como sala de aula com métodos antiquados.
Célio me olhou só depois que a noite escolheu ficar quieta. O olhar dele não era abraço, nem pedra. Era contabilidade.
— Ficou de pé — ele registrou.
— Fiquei.
— Aprendeu?
— Aprendi que esquina é prova e que olhar parece convite mesmo quando a gente tá só passando.
— Aprende a desviar sem parecer que tá com medo. — Ele falou como quem monta móvel: passo a passo. — Calçada e linha do meio. Quando a rua quer te ler, você deixa. Mas não facilita com atalho.
Assenti, o ombro ardendo e o lábio cortado me lembrando que o corpo não esquece o que a cabeça finge que dá para negociar.
— Você ia reagir? — ele perguntou, só para ter certeza.
— Com mão, não. — O sarcasmo veio pedir palco, eu fechei a cortina. — Com boca, às vezes eu estrago. Hoje eu mordi antes.
— Melhora. — Ele deu meio passo para me liberar passagem. — Se te quiserem vivo, te deixam aprender regra. — Repetiu com acento de quem sabe que, naquela frase, tem vida e ameaça juntas. — Hoje te deixaram. Amanhã, não conta com isso.
— Tô contado comigo, então.
— Conta com o lugar também. — Ele apontou com o queixo para a laje que já dormia. — Conduta vira senha. Você já sabe duas. Falta não desperdiçar.
— Água primeiro — respondi, quase rindo apesar da dor.
— E depois silêncio. O bar viu. A viela ouviu. Não precisa de post.
Ficamos um segundo olhando o mesmo pedaço de cimento. Pensei em Sombra. Pensei no homem no alto que ontem mediu o estranho que não correu primeiro. Célio não disse nome nenhum. Não precisava.
— Eu volto amanhã? — arrisquei a pergunta errada.
— Você volta quando não vier fazer falta. — Ele sinalizou com o queixo em direção ao posto. — Amanhã, melhor o dia te ver trabalhando onde o morro reconhece serviço. Noite você não “ganha” — merece.
— Entendi.
— Dobra a esquina e sai certo — ele fechou. — Sem olhar pra trás como quem quer briga. Olha como quem aprendeu.
Dobrei. Dois passos e o corpo chiou ao lembrar da costela. Tinha sangue na boca, gosto de ferro. Eu revirei a água e lavei o que dava. Na cabeça, uma frase parou de ser lema bonito e virou protocolo: não pechincho respeito — dou. Quem pechincha tenta ganhar no abatimento. Quem dá, paga primeiro e sai vivo.
O carro do Rafa encostou três ruas depois. Ele me olhou, sério, o tom que me chama de volta do mar quando a corrente vira.
— Aconteceu?
— Aconteceu. — Encostei a cabeça no banco, respirei pelo lado que doía menos. — Sai machucado. Não humilhado.
— Quer hospital?
— Quero cama. E um texto amanhã, de qualquer coisa que não tenha sangue — brinquei, manso.
— Te levo. — Ele não perguntou mais nada. Amigos de noite com regra sabem que a narração vem no dia.
Enquanto o carro comia ladeira, eu revi a esquina como quem assiste replay em câmera lenta. Boné e Touca não eram monstros; eram vírgulas numa frase que eu insisto em escrever rápido. Célio foi ponto — desses que salvam texto de virar grito.
Olhei o retrovisor e vi só a cidade em descanso. Se me quiserem vivo, pensei, vão me deixar aprender mais duas, três, dez regras. Se não me quiserem, eu não saberei — simples assim. Minha parte é não provocar a resposta errada.
Chegando em casa, bati uma foto tosca do roxo nas costelas — não para postar, para lembrar. Escrevi com caneta no espelho do banheiro, letra pequena:
“Água primeiro.
Calçada e linha do meio.
Sem atalhos.
Conduta > curiosidade.”
A cidade não fala “boa noite”. Ela fala “te vejo”. Eu respondi com nod de cabeça, sem mão. O aviso tinha sido dado do jeito certo: sem mãos que me fizessem esquecer a regra — ainda que as mãos tivessem carimbado o corpo para o recado não sair. Eu volto. Inteiro, ou o mais inteiro que der. E, quando eu voltar, que o morro me leia e não precise me corrigir na margem.