Lucas
Nego Célio me pede para seguir. Não é convite; é trânsito orientado. “Fundos”, ele diz, e o corredor estreito parece encolher mais um dedo a cada passo. O som da laje fica atrás como mar em ressaca: bate e volta, sem direito a mergulho. O cheiro muda — menos limão, mais ferrugem, óleo, fiação velha aquecendo a noite.
— Mãos? — Célio pede, sem azedume.
Eu mostro as palmas. Água primeiro, mão visível, sem atalho. Ele assente. Um segurança fecha a porta do bar por fora. Descemos dois degraus. Alguém apagou metade das lâmpadas de propósito. A outra metade aprendeu a viver de pisca.
No fim do corredor, ele. Sombra não precisa da palavra “chefe”; a sala aprende o pronome sozinha. Está encostado, braços cruzados, boné baixo, coluna de quem segura mapa na cabeça. Não ergue a voz. Não levanta queixo. Só ocupa.
— Te vejo — ele diz, como quem registra presença.
— Tô aqui — respondo, e meu peito tenta não parecer tambor.
Ele examina o roxo na minha costela como se fosse extrato bancário.
— Olhar tem preço. — Três palavras que só quem manda sabe dizer sem exagero.
— Eu sei — devolvo. — E pago com conduta, não com desconto.
Um canto da boca dele mexe. Não é sorriso. É ajuste de mira.
— Você entrou. Não correu quando a rua testou. Ajudou velho na escada. Não fez manchete. — Ele recita como se lesse em papel. — E olhou para onde não era para olhar.
— Eu olhei para gente — digo, segurando a palavra para ela não cair torta. — Sem nome. Sem cena.
Célio permanece ao meu lado, não entre nós. É a presença que impede a sala de achar que violência resolve gramática. Respeito — aprendi — tem coreografia.
— Você vende? — Sombra pergunta, a seco.
— Não vendo. — Ele espera a segunda parte. — Não compro.
— Então o que quer?
O ar fica mais estreito. Eu poderia escolher a frase com perfume de malandro humilde. Opto pelo que aprendi ontem, com dor: não pechincho respeito — dou.
— Quero ver ela. — A sala encolhe mais um centímetro. — Não importa ser tua filha. Não importa a laje saber. Não importa o que dizem do Caveira. Eu quero ver. — A palavra “ver” me sai como contrato assinado; sei que é afronta.
Sombra não se mexe. O que mexe é o silêncio, dois milímetros. Célio firma os pés, pronto para o parágrafo seguinte.
— Você tem coragem, surfista? — Sombra pergunta, com desdém medido. — Coragem é fácil com boca. Difícil com mão no bolso e olho baixado.
— Coragem eu aprendi com a regra — respondo. — Calçada e linha do meio. Sem atalho. Sem nome. Sem mão que não foi chamada. Eu não vim comprar, não vim vender. Vim esperar certo.
Ele gira mínimos graus para a esquerda, como quem confere o som da própria espinha. Vê o copo de água na bancada, vê minha postura, vê o pedaço de medo que eu não escondi (e que, por ser verdadeiro, me salva).
— Você acha que esperar te faz homem? — a pergunta bate baixo.
— Acho que me faz vivo.
A lâmpada pisca. Uma moto lá fora fala “te vejo” com o escape. A sala não olha para fora; o morro tem olhos em todo lugar e não desperdiça pescoço.
— Meu lugar não é passeio — Sombra afirma. — É lei. A minha. Você entra quando eu digo. Você sai quando eu decido. E, no meio, você não confunde desejo com direito.
— Eu não confundo — respondo. — Desejo eu digo. Direito, eu não peço. Respeito, eu dou. E peço de volta, sem pechincha.
A respiração dele muda. Não para mais rápida; para mais pesada. O tipo de respiração de quem está ponderando se é hora de virar monstro ou permanecer homem.
— Você sabe que sua frase me irrita — ele anuncia, honesto. — Porque ela é afronta. E, no entanto… — Um quase suspiro. — Eu gosto quando as coisas se dizem sem grito.
— Grito eu deixo para o mar, quando quebra na pedra — respondo, sem graça nem bravata. — Aqui, eu falo baixo.
Célio recolhe um ruído no rádio antes que vire notícia. O corredor respira por nós.
— E se eu disser que não vai ver? — Sombra testa.
— Eu volto outro dia para não ver de novo — digo, e surpreendo a mim mesmo com a paz da frase. — Até não fazer falta. Até merecer. Até ela escolher.
A última sentença fala dentro da sala como faca. Ela escolher. O homem à minha frente é pai e reino no mesmo corpo. Tocá-lo pelo lado do pai é brincar com fio desencapado.
— Você põe nas costas dela uma escolha que não é leve — ele diz, rente.
— Eu tiro das minhas a mentira de que eu mando em alguma coisa — devolvo. — Eu não mando nela. Eu não mando aqui. Eu só mando no meu modo de esperar.
Ele me mede como quem mede quina de móvel que pode, com sorte, caber na sala sem arranhar a parede. É ridículo pensar isso com a costela reclamando, mas o pensamento vem inteiro: às vezes, caber é tudo.
— Se eu souber que você apertou uma esquina que não é tua, eu te apago sem grito — ele informa, quase monótono. — Sem cena. Sem foto. Sem história no bar. Entendeu?
— Entendi.
— Se eu souber que você usou o nome dela para abrir porta, eu troco fechadura com você dentro. Entendeu?
— Entendi.
— Se eu souber que você correu primeiro, eu te tiro do chão — não como ameaça, como manual. — Entendeu?
— Entendi. — E é verdade.
Um tempo. Os homens que respiram pela segurança respiram com a gente. Célio não relaxa. Não é o trabalho dele.
— Você tem um defeito útil, surfista — Sombra sentencia, enfim. — Você fala claro. Me economiza grito. — Passa a mão no boné. — Promete respeito? Não desses de palco. De rua.
— Prometo.
— Então sai pela porta certa. — A frase vem com seca misericórdia. — E grava uma coisa no teu espelho. — Ele inclina o corpo, o enigma pronto: — Se ela escolher, eu saberei antes de você.
A sentença fica no ar, comprida, com as bordas cortando minha vontade de perguntar como. Ele não explica. Não precisa. Pai sabe de águas onde a gente acha que só tem cimento.
— Posso fazer uma pergunta? — arrisco.
— Pode.
— A minha costela doeu mais onde bateu a mão errada ou onde bateu o aviso certo?
Ele não disfarça o canto de boca dessa vez.
— Doeu onde você entendeu que não compra nem vende — e, por isso, vai pagar mais caro. — Ele desfaz a parede com um gesto curto. — Vai. O Célio te devolve à linha do meio.
Célio encosta o ombro no meu, mínimo, sem afeto performático. Guia. A sala me devolve o ar só quando encostamos de volta na luz r**m da lateral. O bar reaprende nosso nome sem falar. O paredão respira. Caio me vê de longe e faz aquele meio aceno de “deu”. Deu.
— Vivo? — Rafa aparece de onde sempre aparece.
— Inteiro o bastante.
— Ele te matou?
— Com frase — respondo, meio rindo. — “Se ela escolher, ele saberá antes de mim.” — Digo alto o suficiente para virar ferro no peito e baixo o suficiente para não virar legenda.
Rafa assobia, baixo.
— Aí é jogo de paciência.
— Sempre foi. — E talvez eu tenha demorado para aprender. Água primeiro.
Bebo. A sensação é de que a garganta é um mar, a costela é uma esquina, e o coração acompanha o ritmo do pulso. No íntimo, repito, como se gravasse em um espelho embaçado:
"Olhar tem seu custo.
Eu não dou. Eu não levo.
Promessa de respeito é voto de sobrevivência."
À porta, n**o Célio não precisa de perguntas. Apenas faz o gesto com o queixo que assegura: "tá liberado". Parto. Sem alarde. Sem despedida.
A moto na viela repete seu "até mais" habitual. Pela primeira vez, a resposta ressoa completa e interna: digo o mesmo — mas da forma correta. Se um dia ela decidir, talvez eu compreenda o que vier. Até lá, a espera acontece onde sou inabalável: na minha postura. Mesmo que doa, a lição foi clara: existir, aqui, é manter-se à tona sem entrar em conflito com a realidade da cidade.