Isadora
A laje abre como uma respiração longa. O som sobe do chão e encontra o meu peito por dentro, como se tivesse a senha que nenhuma chave tem. Dora pisa primeiro; Isadora observa à distância, pronta para puxar o freio se necessário. Tainá aperta minha mão e sorri com a sabedoria de quem conhece a pista e os precipícios.
— Três músicas para você entender o terreno — ela dita, meio rindo, meio zelando. — Depois a gente decide se fica.
— Sim, senhora — respondo, ajeitando a máscara de renda. O elástico puxa leve atrás da orelha; não dói. A liberdade é isso: uma folga de elástico.
A batida entra com um grave que me realinha a coluna. Dança com Tainá sempre foi idioma seguro: ela marca o compasso com o ombro, conduz com a palma aberta nas minhas costas, devolve meu corpo para mim. O medo, acostumado a se fingir de mãe, tenta dar ordens; a música manda ele esperar do lado de fora. Eu obedeço à música. Pela primeira vez em muito tempo, o corpo fica leve e a mente fica livre. Não é euforia; é alívio.
— Respirou? — Tainá pergunta, com o sorriso de quem checa oxigênio.
— Pela primeira vez hoje — digo, sentindo os pés fazerem curvas que eu só ensaiava em casa. O terço pousado entre o peito e a renda acompanha a batida como se fosse feito para isso. Santa Rita, minha mãe e Nilda dançam comigo, cada uma no lugar que a saudade reservou.
Fecho os olhos por um segundo e lembro da minha mãe na cozinha, rodopiando com uma colher de p*u, transformando panela em palco e rotina em número musical. Ela dizia que “música rouba a dor sem pedir perdão”. Eu acreditava, mas não sabia o quanto precisava desse roubo até agora. Sinto lágrimas ameaçarem, mas a batida muda, e lá vem um recorte de voz que me puxa de volta ao presente. A dor não some; perde o microfone.
— Vem por aqui — Tainá me guia para o meio, onde há espaço entre dois grupos. — Passo curto, quadril atento, olhar vivo. Hoje você não prova nada. Você vive.
Eu rio, de máscara. Danço. O morro conhece o próprio corpo e me empresta o dele: braços que marcam, bocas que cantam, mãos que tiram do bolso a coreografia de sempre. A luz percorre a fumaça como se escrevesse nossas linhas de destino sem nos consultar. Tudo pode dar errado — e, ainda assim, tudo está certo agora.
— Água? — um vendedor oferece, equilibrando a caixa térmica como quem carrega um tamborim.
— Depois — Tainá responde, por mim. Ela é farol; eu, barco recém-desatracado.
O DJ da a******a solta uma sequência que costura trap e funk. Eu me deixo levar pelo desenho da música, que desenha o meu desenho de volta. É estranho e perfeito: Dora cabe em mim como uma roupa que eu guardei por anos com medo de não merecer vestir. A dor, quando insiste, encontra uma pista lotada e desiste de arrastar cadeira.
— Tudo sob controle? — Tainá encosta a testa na minha, gesto de irmandade que não pede fila.
— Tudo sob música — respondo.
Rimos. Tropeço de leve num passo mais ousado, quase piso no tênis de uma menina com glitter. Peço desculpas com a mão; ela responde que “tá favorável” e me puxa de volta para o centro com a gentileza das que aprenderam cedo a dançar com o mundo sem se machucar mais do que o necessário.
Numa virada, um recorte de voz antiga entra por cima do grave como benção de tia mais velha. A pista abre uma rodinha instantânea. Tainá me tira do centro, me gira pela cintura num gesto que é coreografia e cuidado.
— A roda é para quem sabe — ela avisa, divertida. — Hoje você sabe de outro jeito.
— Sei ser feliz três músicas seguidas — provoco, e ela aplaude meu atrevimento de debutante da noite.
E então, sinto.
Não é toque. É olhar. Há olhares que empurram, outros que pesam, outros que pedem. Este atravessa a multidão e para em mim como se tivesse vindo de muito longe apenas para isso. Não é agressivo; é assombrado. Como quem vê a própria sorte em carne e batom. Meu peito erra o compasso e precisa da mão de Tainá nas minhas costas para lembrar onde é o “um”.
— O que foi? — ela pergunta, sem virar a cabeça.
— Nada — minto com elegância. — Coreografia interna.
Mas eu já sei. O olhar não é de dentro do morro — ou, se é, aprendeu outro léxico. Não mede, descobre. A curiosidade dele tem respeito, e é por isso que me desarma. Num lugar onde tudo parece pronto para fazer barulho, ele escuta. Minha pele acende em lugares que a máscara não cobre. Tenho vontade de ser vista e medo de ser pega; as duas vontades dançam em mim, e a música arbitra: “mais um minuto, depois a gente resolve”.
— Quer sair um pouco pro canto? — Tainá oferece, entendendo risos que eu não dei.
— Ainda não — respondo, e sinto a coragem morder a borda da minha boca. — Hoje eu fico mais um pouco.
A pista muda de metrônomo. O grave desce, a melodia abre espaço. Eu finjo não ver. Viro de lado, deixo a luz pegar meu rosto em outro ângulo, converso com Tainá ao pé do ouvido como se estivesse discutindo o preço do feijão. Bebo um gole de água — agora sim —, respiro pela barriga, conto quatro. Dora sabe andar entre becos; Isadora sabe sobreviver neles. As duas entram em acordo.
— Lembra do plano — Tainá recorda, com voz de trilha baixa. — Você é anônima. Nome falso, coração verdadeiro. A gente não prova, a gente passa.
— Eu passo — confirmo, mas as pernas, traidoras, estão com vontade de ficar.
No canto da laje, o camarote cintila sem ostentar. Vejo de relance três silhuetas: um cara de boné virado que ri com a cabeça, um outro de camiseta preta que observa o set como quem estuda mapa, e ele. O olhar que me achou. Não consigo ler o rosto inteiro; a distância, a luz, a máscara dele — que talvez seja só a sombra — fazem o trabalho de preservar o misterio. Sinto um arrepio subir como escada no escuro. Sedução é isso: a ideia de que há um idioma em comum antes mesmo da primeira palavra.
— Isa — Tainá me chama pelo meu verdadeiro nome, como quem me ancora quando o vento aumenta. — Checa teu corpo. Tá seguro?
Fecho os olhos por um instante. Checo. Ombros soltos, joelhos leves, batimento acelerado, mas não em pânico. Segura. Abro os olhos. A luz brinca na renda da minha máscara e me devolve uma versão de mim que eu não tenho vergonha de gostar.
— Segura — respondo, e Tainá sorri, aliviada por eu saber dizer isso sem teatro.
A música cresce. O DJ — que ouvi chamarem de Caio — levanta uma mão antes da virada. A pista obedece como mar em lua cheia. Na minha periferia, o olhar volta, suave e firme, como quem educa uma fera para aprender carinho. Eu finjo não ver. Não por estratégia; por sobrevivência. A vida me ensinou que reconhecer é aceitar, e aceitar é entrar na parte do jogo em que preço e promessa muitas vezes se confundem.
— Mais uma música — Tainá decide, como minha representante legal perante o destino. — Depois a gente dá uma volta e pega ar.
— Fechado.
O passinho recomeça a poucos metros, risos estouram, uma menina derruba um pouco do copo no próprio tênis e xinga com a leveza de quem tem mais motivos para xingar e não xinga. O morro tem seu humor próprio: sobrevive rindo porque chorar o tempo todo é luxo e cansaço. Eu rio com ele. Sinto o terço esquentar contra a pele. Penso na Nilda dizendo “você não é seu pai” e no pai dizendo “te vejo” sem dizer “te amo”. Penso na minha mãe girando com a colher de p*u e me ensinando a virar do avesso o que me impede.
A música cai num break breve. O coração para junto — é a ilusão perfeita. Quando o grave volta, volto com ele. Minha mão sobe, encontra a de Tainá; entramos juntas num movimento que parece coreografado e é só afinidade de sobreviventes.
O olhar dele se acendeu, repentino, mais próximo, como se a distância na laje tivesse diminuído. Disfarço, continuo a dançar, mas é inútil. Fui notada. E a verdade, nesse instante, veste uma máscara de renda, enquanto meu coração bate, acelerado, superando o ritmo da música.