Isadora
A Pipa Azul ainda vibrava o eco do susto quando Tainá me puxou para a Rua 1. O beijo ficou morno entre meus lábios, como promessa que o corpo entende antes da cabeça; o medo ficou frio na nuca, lembrando que aqui alegria sempre vem com vigia.
— Duas músicas, Isa. — Tainá, arfando, mas firme. — Sem cena.
Assenti, tentando guardar na pele o gesto dele — mão visível, respeito primeiro — como quem enrola um cobertor contra vento. Dei três passos e encontrei o vento: Sombra, encostado no sombreado do poste torto, n**o Célio a dois passos, Breno e Ítalo ocupando silenciosamente o que, há um minuto, era rua.
O morro desaprendeu o barulho por um segundo. Preto no branco: meu pai sabia.
— Para casa. — A voz dele não estava alta; estava decidida. — Agora.
Célio abriu corredor, e a cidade obedeceu como quem desvia de rio. Alguém esbarrou no meu ombro; Breno bloqueou sem tocar. Dei mais dois passos e Tainá passou à frente, braços abertos, linha de fogo onde ninguém tinha pedido.
— Foi comigo — ela disse, encarando Sombra com os olhos de quem não tem sobrenome para usar como escudo. — Eu que trouxe, eu que fiquei, eu que tirei Dora da roda quando a maré virou. Castiga eu.
— Sai da frente, Tainá — falei, o tremor tentando me roubar clareza. — Eu falo.
— Não precisa — ela insistiu, coragem e afeto no mesmo lugar.
Sombra levantou a mão um centímetro. Silêncio. A rua tem um ouvido para esse gesto. Célio não mexeu o rádio; não era caso de polícia — era caso de pai.
— Isadora — ele disse meu nome inteiro, sem máscara. — Olhos para mim.
Olhei. E o que vi doeu mais que raiva: cansaço. Aquele que nasce quando quem ama precisa virar muralha o tempo todo.
— Eu não vou negar — falei, enfileirando as palavras para não tropeçar nelas. — Não fui sequestrada pela noite; eu a escolhi. — Senti o peso, senti a liberdade, senti o risco. — Eu escolhi entrar, dançar, respirar. E eu escolhi falar com ele. Sem nome. Sem cena. Com respeito.
O rosto de Sombra não mudou. Mudou o ar.
— Com respeito. — Ele repetiu como quem testa lâmina. — Na viela. Às 22h14. — Olhou para Célio, que não confirmou nem negou. — Palavras curtas. Quase beijo. — Respirou. — Beijo.
O sangue me subiu às orelhas. Tainá cruzou mais os braços, como se pudesse me esconder num gesto.
— Fui eu que puxei, chefe — ela reforçou. — O senhor sabe. Maré virou. Eu tirei.
— Eu vi. — Sombra não olhou para ela; olhava para mim. — Eu vi também ele. — Um átimo de pausa. — Não correu primeiro. Ajudou velho, endireitou passo. Entrou e saiu certo. — A frase veio seca. Fiquei sem ar, como se por um segundo a montanha tivesse me devolvido reciprocidade. — Mas é estranho. E estranho aqui não passa sem ser lido.
— Lê comigo, então — pedi, mais ousada do que planejei. — Não me corta na edição de sempre.
— Você não edita a minha guerra — ele devolveu, sem subir o tom. — Eu que edito o que te mantém viva. — Virou o rosto para o lado. — Célio.
Nego Célio avançou o necessário.
— Rastreia o badboy — disse Sombra, escolhendo a palavra com uma ironia sem humor. — Quero entender, não punir. Nome, mar, onde dorme, quem segura, quem o segura. Se é onda ou trabalho. Se é postura ou pose. — Olhou de novo para mim. — Sem encostar. Sem foto. Sem sumir com o rapaz. — E, para fechar: — Se tiver mão errada, eu mesmo fecho.
Preto no branco. As ordens estavam dadas como ata de reunião do submundo. Célio concordou com a cabeça; a cidade, em volta, fingiu que não conhecia nossos nomes.
— Pai… — tentei.
— Não me chama de pai quando quer me quebrar a guarda — ele cortou, e a frase me acertou como um copo de água gelada no peito. — Isadora, se eu erro aqui, você paga com a vida. E eu pago com a alma.
— Eu não sou moeda — respondi, sentindo a voz segura o pranto. — Eu não sou diploma para pendurar em parede de sala. Eu sou pessoa. Eu quero o posto. Eu quero a viela quando a música não grita. Eu quero escolher quem me olha sem me diminuir.
Breno e Ítalo se entreolharam, desconforto em corpo de soldado. Tainá, com o queixo em riste, parecia feita de promessa.
— Isadora — Sombra novamente, mais baixo, perigoso por ser mais humano. — Isso aqui é território. Território tem lei. — Fez um gesto mínimo, e os homens esvaziaram meio metro ao redor. — Você acha que gosto de ver o teu nome atravessado em boato? Acha que não sei que tem gente por dentro que manda “te vejo” feito lembrete de que a casa vaza?
A mensagem temida cortou minha espinha. Tainá olhou para mim, faísca de proteção e culpa no mesmo olho.
— Se o senhor acha que fui eu… — Tainá começou, pronta para apanhar de responsabilidade.
— A lealdade de vocês duas, a meu ver, é o que me sustenta e me desafia simultaneamente — ele interveio. — E eu escolho deliberadamente — deu um leve tapa no peito — reagir com controle, e não com fúria. Por isso, a regra é clara: preto no branco. Rastreiem o badboy, observem o comportamento dele, mas sem contato físico. — Ele se virou para mim. — E você, terá duas semanas de castigo: nada de laje, nada de viela. O encontro no posto de saúde — acertamos um horário matinal com a Vera. Sem máscara. Sem nome falso. — A pausa foi uma concessão. — Comigo sabendo de tudo.
Eu respirei, entre alívio e sufoco. Condição ainda era corrente, mas a corrente deixou passar água.
— Tira a mão de Tainá, então — pedi. — Não barra a casa para ela. Ela me salvou.
Ele olhou Tainá pela primeira vez como quem mede uma muralha nova.
— A casa é dela também — decidiu. — Mas a partir de hoje entra pela cozinha e fala comigo antes. — Tainá assentiu, grata sem se curvar.
— Obrigada, chefe.
Célio trocou um olhar comigo — não de pena, de pacto: “conduta mantém porta aberta”. Breno já driblava dois curiosos que queriam saber de quem a filha do Caveira era “a menina da máscara”. Ítalo fez sombra onde a sombra do Sombra não alcançava.
— Vamos — Sombra disse por fim. — Antes que a noite invente mais história.
Entramos no carro. Vera ajeitou o espelho, pé ligeiro no freio. A cidade passou pela janela com cheiro de óleo, fritura e promessa quebrada. No colo, minhas mãos não paravam: os dedos queriam escrever numa língua que eu ainda não domino.
— Ele… — comecei, olhando o vidro, sem coragem de usar nome nenhum. — Ele não invadiu. Esperou. Falou baixo. — Busquei as palavras como quem tateia um curativo. — Não correu quando todo mundo correu.
— Eu vi — Sombra respondeu, sem virar o corpo. — E é por isso que eu quero entender. Quem não corre pode ser homem. Pode ser isca. Preto no branco: eu não erro contigo duas vezes no mesmo capítulo.
Sorri de raiva e amor ao mesmo tempo. Dona Nilda diria que esse é o veneno que se toma quando se nasce dentro. Eu nasci dentro. Mas, naquela noite, no preto no branco, eu escrevi com caneta que não apaga:
— Eu escolhi. — Falei, simples. — E continuo escolhendo — não contra você; por mim.
No retrovisor, os olhos dele. Não eram de guerra. Eram de homem que sustenta o que ama sem saber se vai perder pelo certo.
— Então paga o preço — ele disse, enfim, mais pai do que chefe. — Viva. Fique viva. — Tocou o painel leve, quebrando o feitiço. — E me ajuda a não virar monstro tentando te proteger.
Virei o rosto para a janela e deixei a Rocinha me atravessar como um salmo torto. Tainá me escreveu: “Respira.” Respondi: “Respiro.”
No portão, Nilda esperava com a casa nos olhos.
— Deu? — ela sussurrou.
— Deu. — E, pela primeira vez, sem culpa, completei: — E eu disse em voz alta: não fui sequestrada pela noite; eu a escolhi.
Nilda sorriu, orgulho e temor dividindo a mesma xícara.
— Pois então agora caminha bonita nesse escuro. — Pousou o terço na minha mão. — E deixa o preto no branco só para o papel. O resto é no modo sussurro.
Subi para o quarto com o coração acelerado. Lá fora, Célio falava tranquilamente no rádio. No andar de cima, Sombra voltava a ser apenas Sombra, mas eu ainda o sentia como pai. Em alguma parte da cidade, o badboy que hesitou primeiro estava sendo incorporado à estratégia do dono do morro: rastrear para compreender.
Fechei os olhos com um único pedido na escuridão: que essa compreensão não se tornasse eliminação. E, se acontecesse, que eu tivesse a força de reescrever tudo de novo — no que fosse preciso — minha escolha completa.