Lívia
Vestir o vestido foi como aceitar a minha sentença. O tecido, justo e curto, abraçava cada curva do meu corpo, e a gargantilha de argola no pescoço era um constante lembrete da liberdade que eu havia perdido.
No espelho recém-instalado, uma nova Lívia me encarava: a Lívia que agora pertencia a ele. Meus olhos, antes cheios de vida, estavam opacos, carregados de uma fúria contida.
A porta se abriu de repente, revelando o mesmo capanga de antes. Seu olhar, neutro mas frio, avaliou-me com a mesma indiferença que eu já percebera em todos ali. Era evidente que serviam Micael como se ele fosse a única razão de suas existências.
— Ele mandou chamar — disse o capanga.
Assenti e o segui. Meus saltos afundavam nos tapetes do corredor, e cada passo era um grito de desconforto. Eu nunca havia usado saltos; era mais uma parte do intrincado espetáculo de controle de Micael.
Fui levada a uma sala de jantar suntuosa, adornada com madeira nobre, lustres cintilantes e copos de cristal. Parecia um cenário de novela, mas o cheiro de poder e dominação que emanava do ambiente era inconfundível.
Micael já estava à cabeceira da mesa, vestindo uma camisa preta com os primeiros botões abertos. Seus braços musculosos e a pulseira de couro no pulso esquerdo reforçavam sua presença. Sua postura era relaxada, mas seus olhos estavam fixos em mim, como se eu fosse o centro de sua atenção naquela noite.
— Senta — ordenou ele, apontando para a cadeira à sua direita.
Eu me sentei. Dois pratos de comida fina e perfumada estavam à nossa frente, mas eu não conseguia tocar em nada. Estava absorta, tentando decifrar o jogo.
Ele se serviu com calma, cortando a carne com uma despreocupação perturbadora, como se a mulher que ele havia arrancado à força de sua vida não estivesse sentada ao seu lado.
— Está bonita — disse ele, sem desviar os olhos do prato.
— Bonita para quê?
— Para mim.
Engoli a raiva, fixando os olhos no copo d’água.
— Pensei que você fosse me humilhar com um quarto escuro. Não com salto e maquiagem.
Ele riu, um riso breve e seco.
— Você vai entender, com o tempo, que existem muitos tipos de controle. O que eu aplico é o que molda. O que transforma. O quarto escuro quebra. Mas o espelho... o espelho faz você se enxergar como eu quero que se veja.
— Como objeto?
Ele ergueu os olhos, pousando o garfo.
— Como minha.
Calei-me. A comida esfriava no prato, mas a fome havia desaparecido. O silêncio entre nós era denso, carregado de palavras não ditas e limites sendo testados.
— Coma — ele ordenou.
Peguei o talher com as mãos trêmulas. Obedecer era horrível, mas desobedecer... seria pior. Comi devagar, a garganta apertada, o gosto da raiva misturado ao tempero.
— Você terá regras aqui. E vai segui-las — disse ele, enquanto comia com uma elegância assustadora.
— Como um cachorro?
Ele deu um meio sorriso.
— Cães são leais. E bem treinados, protegem seu dono com a vida. Mas você ainda está no estágio de mordida. Vai aprender.
Meu rosto queimou, mas não respondi.
— Regra número um — continuou ele, enxugando a boca com o guardanapo —: você fala quando eu permitir. Regra dois: você nunca sai do quarto sem ser chamada. Três: você não toca em mim sem minha ordem. E quatro… — ele se inclinou para mais perto — você pertence a mim. Aceitando ou não.
Ele segurou meu queixo com firmeza, forçando-me a encará-lo nos olhos.
— Se quebrar qualquer uma dessas, a punição não será com palavras.
Ele me soltou devagar.
— Entendido?
Assenti, os dentes cerrados. Ele voltou a comer como se nada tivesse acontecido.
— Vai ficar aqui quanto tempo? — arrisquei.
— O tempo que eu quiser.
— E depois? Vai me largar? Vai me vender?
Ele parou o garfo no ar, olhando-me como se calculasse mil possibilidades.
— Isso vai depender de você. E de como você vai aprender a se encaixar no meu mundo.
— Eu não sou desse mundo — rebati.
— Agora é.
Após o jantar, fui levada a um cômodo diferente. Era escuro, com paredes acolchoadas e uma cadeira de madeira no centro. Não era um quarto, nem uma sala. Era... estranho. Intimidador.
Micael apareceu alguns minutos depois, sozinho.
— Esse é o lugar onde a maioria aprende — disse ele, trancando a porta.
— Aprende o quê?
— A obedecer com prazer.
Meu coração disparou. Ele se aproximou, os passos lentos. Sua mão alcançou meu braço, e mesmo que fosse um toque leve, o arrepio foi imediato.
— Você está aqui porque foi entregue. Mas pode escolher como será sua experiência. Pode tornar isso um inferno... ou uma transformação.
— Isso é loucura.
— Não, Lívia. Isso é controle. E controle é tudo o que tenho.
Ele me girou de leve, até que eu ficasse de costas para ele. Suas mãos passaram pelos meus ombros, descendo até minha cintura. Não foi carícia. Foi posse.
— Hoje, só vou mostrar.
Ele pegou uma fita de tecido preto e amarrou delicadamente meus pulsos, atrás das costas. Não forcei, não por submissão, mas por medo de piorar a situação.
— Isso não é violência — ele sussurrou em meu ouvido. — Isso é entrega. Você só não percebeu ainda.
Fiquei imóvel, a respiração acelerada. Ele não fez mais nada. Virou-me de frente, tirou a fita com calma e me olhou nos olhos.
— Quando você entender o que é prazer na obediência... vai me agradecer.
Ele saiu da sala sem dizer mais nada, deixando-me ali, tremendo. Não de frio. Mas de algo que eu não sabia nomear. Horas depois, sozinha no quarto, encarei o teto escuro e tentei organizar meus pensamentos. Ele não me tocou. Não me machucou. Mas me feriu com algo muito mais profundo: o controle que entrava sorrindo, que se instalava devagar, que confundia o que era certo e errado dentro de mim.
Eu ainda odiava Micael. Mas pela primeira vez, temi não o que ele faria comigo… e sim o que ele já estava fazendo dentro de mim.