Lívia
A mão dele ainda queimava na minha pele.
Não era dor. Era o contrário — e isso me apavorava mais. O toque foi leve, quase carinhoso. Mas a maneira como Micael encostou em mim, com aquela confiança absoluta de quem sabe que já venceu, me deixou com o coração disparado por motivos que eu me recuso a admitir.
Eu não queria que aquilo significasse alguma coisa.
Mas significou.
E quando ele disse “Minha”, o mundo pareceu parar por um segundo.
Não respondi. Apenas saí da sala com as pernas trêmulas e o orgulho ferido. Aquilo não era amor. Não era carinho. Era controle. Ele me isolou, me privou de tudo, e agora oferecia um toque como se fosse um prêmio.
Só que... funcionou.
E esse era o problema.
Na manhã seguinte, acordei com um papel dobrado na bandeja do café. A comida tinha voltado — ainda não significava liberdade, mas sim uma trégua. Um intervalo entre a guerra que Micael travava comigo.
Abri o bilhete, já esperando mais uma frase fria e calculada.
Mas era diferente.
“Tarefa 1: Arrumar sua cama.
Sem dobras. Lençol esticado.
Câmera ligada.”
Era só isso.
Nada mais.
Fechei o papel com raiva. Era uma ordem infantil. Uma provocação. Ele queria que eu me dobrasse por algo tão simples… e ainda assim, eu fiquei ali parada, encarando a cama.
Minutos depois, dobrei o lençol.
Não porque queria. Mas porque, no fundo, sabia que ele estava me observando. E se não obedecesse, talvez voltasse o silêncio. O castigo.
E por mais que eu odiasse admitir, aquela ausência me quebrou mais do que qualquer violência poderia.
Depois do almoço — que também veio com um bilhete — a segunda tarefa chegou.
“Hoje você irá até a biblioteca. Tem um livro sobre obediência. Leia o primeiro capítulo.
Às 16h, estarei lá para discutir.”
Obediência.
A palavra grudava na minha garganta como caco de vidro.
Peguei o caminho até a biblioteca acompanhada por um dos seguranças. O lugar era amplo, com estantes altas, cheiro de madeira antiga e uma iluminação suave demais para o que se escondia ali.
O livro estava separado. Capa preta. Nenhum título na frente.
Folheei até encontrar o capítulo.
“A verdadeira submissão começa na mente.
É quando a vontade de agradar supera a vontade de resistir.
Quando o corpo espera, e a mente já obedece.”
Fechei o livro com força.
Eu não era submissa. Nunca fui. Nunca serei.
Eu era livre. Pelo menos por dentro.
Às 16h em ponto, ele apareceu.
Usava camisa branca, mangas dobradas. A barba por fazer e os olhos com aquele mesmo brilho calmo e perigoso.
Se sentou na poltrona ao lado e cruzou as pernas. Olhou para mim como se eu fosse um experimento que ele acompanhava de perto.
— Leu?
— Li.
— O que sentiu?
— Nojo.
Ele sorriu.
— E curiosidade?
Revirei os olhos, mas meu coração acelerou.
— Esse livro é uma lavagem cerebral — eu disse. — Ele tenta convencer as mulheres de que servir é bonito. Mas isso é só controle disfarçado de escolha.
— Controle é necessário — ele respondeu. — Inclusive para você. Principalmente para você.
— Eu não sou uma selvagem.
— Não. Você é uma tempestade. E tempestades… precisam de direção. Senão, destroem tudo. Inclusive a si mesmas.
Eu o encarei, sentindo as palavras entrarem como veneno doce. Era isso que ele fazia. Manipulava com elegância. E eu começava a entender o perigo real.
Micael não era apenas c***l.
Ele era convincente.
Depois da leitura, ele me conduziu até uma das salas menores da casa. Um espaço vazio, apenas com almofadas no chão e um espelho enorme na parede.
— A próxima tarefa é simples — ele disse, parado no centro do cômodo. — Sente-se diante do espelho.
Fiz o que ele pediu. Relutante, mas fui.
— Agora diga em voz alta três coisas que você enxerga em si mesma.
— Você tá brincando?
— Não. Fale.
Cruzei os braços.
Ele não se moveu. Nem ergueu a voz.
Apenas ficou ali, parado, esperando.
A tensão cresceu. O silêncio me forçava a ceder.
— Tá — suspirei. — Vejo... medo.
Ele assentiu.
— Vejo... raiva.
— Ótimo. E a terceira?
Demorei.
— Fraqueza — murmurei.
Ele se aproximou. Ficou atrás de mim, os olhos dele nos meus através do reflexo.
— E agora veja três coisas que eu vejo.
— Não me interessa o que você vê.
— Vai ouvir mesmo assim.
Ele abaixou a voz, como se o mundo parasse ali dentro.
— Eu vejo força. Vejo fogo. E vejo alguém que ainda não entende que pode se libertar… no momento que parar de lutar contra a própria natureza.
— E essa “natureza” é se ajoelhar pra você?
— Não. É entender que servir pode ser uma escolha. E escolher... é poder.
Me virei, encarando ele de frente.
— Eu nunca vou escolher pertencer a você.
— Já está escolhendo. A cada ordem que cumpre. A cada palavra que escuta. A cada vez que me espera... mesmo sem querer.
Fiquei em silêncio.
Porque ele estava certo.
E isso me matava.
***
À noite, ele não apareceu.
Mas deixou outro bilhete.
“Você foi bem hoje.
Amanhã, uma nova ordem.
Continue cedendo. Aos poucos, você vai sentir a paz da entrega.
Assinado: O homem que você odeia por te entender melhor do que você mesma.”
A raiva subiu como fogo na garganta.
Rasguei o papel.
Mas, no fundo, guardei cada palavra na memória.
E me odiei por isso.