Capítulo 6

929 Words
Lívia A mão dele ainda queimava na minha pele. Não era dor. Era o contrário — e isso me apavorava mais. O toque foi leve, quase carinhoso. Mas a maneira como Micael encostou em mim, com aquela confiança absoluta de quem sabe que já venceu, me deixou com o coração disparado por motivos que eu me recuso a admitir. Eu não queria que aquilo significasse alguma coisa. Mas significou. E quando ele disse “Minha”, o mundo pareceu parar por um segundo. Não respondi. Apenas saí da sala com as pernas trêmulas e o orgulho ferido. Aquilo não era amor. Não era carinho. Era controle. Ele me isolou, me privou de tudo, e agora oferecia um toque como se fosse um prêmio. Só que... funcionou. E esse era o problema. Na manhã seguinte, acordei com um papel dobrado na bandeja do café. A comida tinha voltado — ainda não significava liberdade, mas sim uma trégua. Um intervalo entre a guerra que Micael travava comigo. Abri o bilhete, já esperando mais uma frase fria e calculada. Mas era diferente. “Tarefa 1: Arrumar sua cama. Sem dobras. Lençol esticado. Câmera ligada.” Era só isso. Nada mais. Fechei o papel com raiva. Era uma ordem infantil. Uma provocação. Ele queria que eu me dobrasse por algo tão simples… e ainda assim, eu fiquei ali parada, encarando a cama. Minutos depois, dobrei o lençol. Não porque queria. Mas porque, no fundo, sabia que ele estava me observando. E se não obedecesse, talvez voltasse o silêncio. O castigo. E por mais que eu odiasse admitir, aquela ausência me quebrou mais do que qualquer violência poderia. Depois do almoço — que também veio com um bilhete — a segunda tarefa chegou. “Hoje você irá até a biblioteca. Tem um livro sobre obediência. Leia o primeiro capítulo. Às 16h, estarei lá para discutir.” Obediência. A palavra grudava na minha garganta como caco de vidro. Peguei o caminho até a biblioteca acompanhada por um dos seguranças. O lugar era amplo, com estantes altas, cheiro de madeira antiga e uma iluminação suave demais para o que se escondia ali. O livro estava separado. Capa preta. Nenhum título na frente. Folheei até encontrar o capítulo. “A verdadeira submissão começa na mente. É quando a vontade de agradar supera a vontade de resistir. Quando o corpo espera, e a mente já obedece.” Fechei o livro com força. Eu não era submissa. Nunca fui. Nunca serei. Eu era livre. Pelo menos por dentro. Às 16h em ponto, ele apareceu. Usava camisa branca, mangas dobradas. A barba por fazer e os olhos com aquele mesmo brilho calmo e perigoso. Se sentou na poltrona ao lado e cruzou as pernas. Olhou para mim como se eu fosse um experimento que ele acompanhava de perto. — Leu? — Li. — O que sentiu? — Nojo. Ele sorriu. — E curiosidade? Revirei os olhos, mas meu coração acelerou. — Esse livro é uma lavagem cerebral — eu disse. — Ele tenta convencer as mulheres de que servir é bonito. Mas isso é só controle disfarçado de escolha. — Controle é necessário — ele respondeu. — Inclusive para você. Principalmente para você. — Eu não sou uma selvagem. — Não. Você é uma tempestade. E tempestades… precisam de direção. Senão, destroem tudo. Inclusive a si mesmas. Eu o encarei, sentindo as palavras entrarem como veneno doce. Era isso que ele fazia. Manipulava com elegância. E eu começava a entender o perigo real. Micael não era apenas c***l. Ele era convincente. Depois da leitura, ele me conduziu até uma das salas menores da casa. Um espaço vazio, apenas com almofadas no chão e um espelho enorme na parede. — A próxima tarefa é simples — ele disse, parado no centro do cômodo. — Sente-se diante do espelho. Fiz o que ele pediu. Relutante, mas fui. — Agora diga em voz alta três coisas que você enxerga em si mesma. — Você tá brincando? — Não. Fale. Cruzei os braços. Ele não se moveu. Nem ergueu a voz. Apenas ficou ali, parado, esperando. A tensão cresceu. O silêncio me forçava a ceder. — Tá — suspirei. — Vejo... medo. Ele assentiu. — Vejo... raiva. — Ótimo. E a terceira? Demorei. — Fraqueza — murmurei. Ele se aproximou. Ficou atrás de mim, os olhos dele nos meus através do reflexo. — E agora veja três coisas que eu vejo. — Não me interessa o que você vê. — Vai ouvir mesmo assim. Ele abaixou a voz, como se o mundo parasse ali dentro. — Eu vejo força. Vejo fogo. E vejo alguém que ainda não entende que pode se libertar… no momento que parar de lutar contra a própria natureza. — E essa “natureza” é se ajoelhar pra você? — Não. É entender que servir pode ser uma escolha. E escolher... é poder. Me virei, encarando ele de frente. — Eu nunca vou escolher pertencer a você. — Já está escolhendo. A cada ordem que cumpre. A cada palavra que escuta. A cada vez que me espera... mesmo sem querer. Fiquei em silêncio. Porque ele estava certo. E isso me matava. *** À noite, ele não apareceu. Mas deixou outro bilhete. “Você foi bem hoje. Amanhã, uma nova ordem. Continue cedendo. Aos poucos, você vai sentir a paz da entrega. Assinado: O homem que você odeia por te entender melhor do que você mesma.” A raiva subiu como fogo na garganta. Rasguei o papel. Mas, no fundo, guardei cada palavra na memória. E me odiei por isso.
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