7. Capitulo – Vestígios de Um Cuidado

1831 Words
O carro deslizou suavemente até a frente da mansão, o motor silenciando como um sussurro entre as árvores podadas com precisão e o brilho sutil das luzes do jardim. O motorista desligou o motor e, sem pressa, desceu, abrindo a porta com a mesma discrição de sempre. Nicolas saiu primeiro, ajeitando o paletó como quem acaba de deixar uma reunião. Voltou a assumir aquele ar descontraído e perigosamente charmoso. Quando abriu a porta para Kiara, percebeu a sua hesitação e inclinou-se com um meio sorriso. — Quer que eu a leve no colo de novo? Ela arqueou a sobrancelha, cruzando os braços ainda com o blazer dele sobre os ombros. O rosto, marcado pelas emoções da noite, trazia de volta aquele brilho teimoso nos olhos. — E seus amigos acharem que somos um casal? Ele a olhou com calma. O sorriso permaneceu, suavizado por um toque quase imperceptível de algo mais profundo. Baixou a voz, quase um sussurro: — De todas as suposições que já fizeram sobre mim… essa talvez fosse a que eu menos me incomodaria. Kiara desviou o olhar e desceu do carro devagar, os pés tocando o chão com cuidado, como se precisasse se reequilibrar. Ainda havia peso nos ombros — da noite, das dúvidas, de si mesma. Mas algo leve, quase imperceptível, se insinuava por baixo: um pressentimento novo. E, ao lado dele, no meio do jardim silencioso, o mundo parecia menos duro. Entrou no quarto em silêncio, sentindo o toque fresco dos lençóis perfeitamente esticados e o aroma sutil de lavanda no ar. A luz suave do abajur transformava o ambiente em um refúgio acolhedor. Tudo o que queria era deitar e esquecer o mundo lá fora. Mas bastou fechar a porta para ouvir o som da maçaneta do quarto ao lado girando — o quarto de Nicolas. Claro. Suspirou, tirando os sapatos com cuidado, quando a voz dele escapou, abafada pela madeira, mas inconfundível: — Se quiser companhia, meu minibar tem vinho. E a mim. Ela revirou os olhos, um sorriso leve escapando contra sua vontade. Pegou a almofada da cama e lançou contra a parede, como se ela fosse ele. — Boa tentativa. Murmurou para si mesma. Foi até a janela e a abriu devagar. Lá fora, o som do mar quebrava em ondas calmas, como se o tempo estivesse suspenso naquela noite. Por um instante — só um — pensou em abrir a porta, atravessar o corredor estreito. Pensou em se permitir. O desejo ficou preso na garganta, acompanhado de um medo silencioso que a segurava. Sacudiu a cabeça, fechou a janela e puxou as cobertas. O mundo já era complicado demais. Nicolas... era outro tipo de tempestade. Deitou-se, os olhos fixos no teto. Só por um instante, pensou. Mas não hoje. ** Kiara despertou com a luz suave da manhã filtrando-se pelas cortinas. O som hipnótico e constante do mar parecia o mesmo, mas havia algo diferente naquele despertar — a sensação ambígua de estar em um lugar onde não pertencia totalmente... e, ao mesmo tempo, onde algo silenciosamente a aguardava. Sentou-se na cama, puxando os cabelos para o lado, ainda meio sonolenta, e foi então que notou a mala ao seu lado. Uma mala elegante, preta e discreta. Certamente não estava ali quando ela chegara na noite anterior. Franziu o cenho e se aproximou. Ao abrir, o espanto veio imediato. Lá estavam suas roupas — cuidadosamente dobradas — junto a artigos de higiene, maquiagem, escova de cabelo e até o perfume que usava em dias importantes. Tudo intacto, organizado com precisão. Passou os dedos pelos objetos, o coração acelerando. Uma parte dela quis acreditar que fosse apenas mais uma das logísticas impecáveis que Nicolas mantinha. Outra parte hesitou. — Ele não... — murmurou, incrédula. Mas era evidente que sim. Talvez não tivesse montado a mala pessoalmente, mas alguém o fizera a seu pedido. Alguém que conhecia suas rotinas. Ele. Era o tipo de gesto que Nicolas fazia parecer casual, prático. Mas havia algo ali — algo íntimo, deliberado. Um cuidado que não combinava com a fachada de chefe indiferente. E isso a desconcertava — a tocava, irritava e desarmava. Suspirou, apoiando as mãos nas laterais da mala. — Não se emociona, Kiara. É só mais uma jogada dele. Disse para si mesma, fechando a mala com cuidado. Mas o coração, esse, estava menos convencido. Desceu os poucos degraus que levavam ao jardim lateral com passos firmes, ainda secando o cabelo com os dedos. A brisa matinal trazia o aroma do mar, e o som das ondas se misturava aos risos vindos do lado de fora. E então ela o viu. Nicolas, encostado preguiçosamente na varanda, café na mão, camisa de linho aberta, rindo de algo que uma mulher dizia. A loira vestia biquíni branco e saída de banho transparente, que não escondia absolutamente nada. O corpo, esculpido para provocar, postava-se com confiança, olhar afiado, emanando desejo. O riso de Nicolas era leve, despreocupado — aquele mesmo que Kiara conhecia: usado em jantares para conquistar aliados ou nos flertes ocasionais que ela preferia ignorar. Mas naquele instante, o mundo desacelerou por um segundo. Quando ele a viu ali parada, o olhar mudou. Não era mais o sorriso casual, nem o charme ensaiado. Era outra coisa — um silêncio em forma de olhar que desceu lentamente pelo decote leve da camiseta, seguindo até o short que marcava a curva da cintura. Um segundo. Dois. Então, seus olhos subiram novamente, encontrando os dela. Havia surpresa — e algo que Kiara não soube ou não quis decifrar. A loira continuava falando, mas ele já não ouvia. Kiara manteve o queixo erguido, não desviou o olhar, mesmo com o coração acelerado. Passou por eles com naturalidade, como se fosse apenas mais uma manhã qualquer — como se não tivesse acabado de acordar em uma casa desconhecida, vestindo roupas que ele mandara preparar, enquanto seu chefe flertava com uma mulher saída de uma revista de verão. Por dentro, porém, algo se retesava — um incômodo novo, irritantemente sensível. Quando chegou à beira da piscina, fingiu observar a vista, embora sentisse o peso do olhar dele ainda sobre si. E pela primeira vez naquela manhã, Nicolas não sabia se queria continuar a conversa com a loira — ou atravessar o jardim e descobrir o que exatamente passava pela cabeça de Kiara. Ela entrou na sala de jantar, iluminada pelos amplos janelões que deixavam a luz da manhã se espalhar pelos móveis claros e elegantes. O aroma de café fresco, frutas e pães recém-assados preenchia o ambiente. Elisabeth e Rodrigo estavam sentados à mesa, rindo de algo que Rodrigo contava animadamente, enquanto a loira de antes — agora com um robe leve sobre o biquíni — tomava o café com calma. Elisabeth foi quem a viu primeiro, e, com o mesmo caloroso entusiasmo da noite anterior, abriu um sorriso: — Kiara! Bom dia! Vem se juntar a nós. Tem suco de laranja fresco, café, tudo que quiser. Sem esperar resposta, puxou uma cadeira ao lado dela. Nicolas virou-se também, apoiado casualmente no balcão, e, com aquele ar insolente que parecia nunca abandoná-lo pela manhã, deixou escapar: — Achei que fosse um sonho… — pausou, os olhos passeando por ela com descaro elegante — mas não. Você realmente acorda assim. Ela prendeu o sorriso nos lábios, os olhos semicerrados. — E eu pensei que você estivesse ocupado rindo das piadas da... Olhou sutilmente para a mulher ao lado de Elisabeth, ainda sem saber o nome. Elisabeth salvou o momento: — Ah! Onde estão meus modos? Kiara, essa é Bianca, minha irmã. Acabou de voltar de Paris. Bianca, essa é a Kiara, braço direito do Nicolas. Pelo que percebi... o motivo do humor inédito dele. Bianca sorriu elegantemente, estendendo a mão com delicadeza: — Prazer. Já ouvi falar bastante de você… ainda que não diretamente. Kiara apertou a mão dela com um sorriso educado. — Igualmente. E sim, sou só a assistente dele. — “Só” a assistente. Repetiu Nicolas, sacudindo a cabeça teatralmente. — Já disse que precisa atualizar o seu título. Diretora da minha sanidade seria mais justo. Rodrigo soltou uma risada abafada, e Elisabeth arqueou uma sobrancelha sugestiva para Kiara, como quem diz “hum, sei...”. Kiara, mantendo a compostura, sentou-se, pegou um pedaço de fruta e, com um leve levantar de sobrancelha para Nicolas, retrucou: — Se eu sou diretora da sua sanidade, você devia estar muito mais equilibrado. O sorriso dele se alargou, satisfeito. A tensão entre os dois dançava como uma linha invisível — e, por um instante, até Bianca pareceu perceber que havia algo ali. Algo mais sutil e profundo do que qualquer um na mesa estava pronto para admitir. Terminaram o café entre trocas de sorrisos, olhares e pequenas provocações. Kiara se despediu com gentileza e voltou ao quarto, sentindo que precisava ficar sozinha. Ao fechar a porta atrás de si, encostou-se por um instante, como se deixasse lá fora não apenas os outros, mas também a tensão instável que flutuava no ar desde a noite anterior. Avistou o presente que havia separado para o pai, ainda intacto, sobre a poltrona ao lado da mala. Aproximou-se devagar, deslizando os dedos pela embalagem com cuidado, como se tocar aquilo fosse tocar uma ferida aberta. Sem pensar, abriu a mala e colocou o embrulho dentro, fechando-a com um suspiro. Então ouviu batidas suaves na porta. Respirou fundo antes de abrir. Nicolas estava ali — sem o charme fácil, sem o sorriso habitual. Sério, com os olhos fixos nos dela. — Posso entrar? Ela deu espaço com um leve aceno. Ele entrou devagar, sem pressa, ficando parado no meio do quarto. — Está tudo bem com você? Perguntou, voz baixa, mas firme. Kiara assentiu brevemente, evitando sustentar o olhar dele. — Está sim. Ele cruzou os braços, encostando-se levemente na cômoda. — Você está mentindo. Ela ergueu os olhos para ele, as palavras presas na garganta. Mas não disse nada de imediato. Apenas o observou, como se ponderasse até onde podia ir. — E se eu estiver? Rebateu. — Você também não se abre comigo, Nicolas. Você me deixa ver sua vida inteira, mas nunca realmente você. Então… por que eu faria diferente? O silêncio pairou, pesado. Ele a encarava como se cada palavra tivesse um peso inesperado. O rosto não se alterou de imediato, mas havia algo nos olhos — algo vulnerável, além do que Kiara esperava. Ele deu um passo à frente. Outro. Parou antes de alcançá-la. — Não sou bom em dividir certas partes. Disse por fim. — Mas não significa que não me importe. Kiara engoliu em seco, mantendo a expressão firme, apesar do nó na garganta. — Eu também me importo. Só estou exausta de fingir que não sinto nada. O olhar deles ficou preso por alguns segundos intensos, silenciosos, carregados de tudo o que nenhum dos dois conseguia ou queria dizer. Nicolas deu um leve aceno de cabeça e recuou com a mesma calma com que entrou.
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