Não foi difícil lembrar da noite anterior.
Talvez porque ela ainda estivesse presente nos gestos, no silêncio entre as palavras, no buquê improvisado sobre a cômoda um pouco deslocado demais para parecer natural.
Felipe parecia diferente. Não apenas pelo rosto mais magro, pela barba por fazer ou pela camisa de linho amassada.
Havia algo nos olhos dele. Algo gasto, como quem carrega o peso de um tempo que passou sem licença.
Quando estendeu o buquê, a voz saiu baixa, quase envergonhada.
— Fiquei tomando coragem para vir... desde que soube que você tinha voltado.
Kiara aceitou as flores com um aceno sutil. E respondeu com a mesma delicadeza contida:
— Eu não voltei, Felipe. Só estou visitando minha mãe.
Ele sorriu. Um sorriso manso, cansado, de quem já esperava aquela resposta.
— Quer caminhar um pouco?
Ela assentiu. Pela educação, talvez. Pela nostalgia. Ou por respeito ao que já haviam sido.
Caminharam lado a lado pela rua de terra batida, onde ela aprendera a pedalar e caíra tantas vezes.
Não falaram muito. Algumas lembranças vieram à tona, quase todas inofensivas.
O cachorro que ainda latia alto, o portão da Dona Ivone que rangia do mesmo jeito, o cheiro de jasmins misturado à terra úmida depois da chuva.
Quando voltaram à varanda da casa, ele se virou com uma expressão que ela reconheceu.
A mesma de outras vezes. Antes de dizer coisas que ela talvez não quisesse ouvir.
— Eu não te esqueci, Kiara.
Ela não respondeu. Apenas o olhou. E foi quando ele a beijou.
Foi um beijo lento, hesitante, como se procurasse algo que talvez ainda estivesse ali. Mas não estava. Ela não afastou o rosto. Também não correspondeu.
Ficou. Quieta. Presente, mas distante.
Como quem observa de fora uma história que já terminou. Quando ele recuou, os olhos de Felipe carregavam mais do que tristeza. Havia uma espécie de compreensão amarga. Inevitável.
Kiara sentiu um aperto no peito. Não era culpa. Nem raiva. Era uma pena discreta por ele, por ela, pelo que já haviam sido.
Ela queria poder dizer que ainda doía. Mas a verdade era que não doía mais.
E isso, talvez, fosse o pior tipo de adeus. Não disseram mais nada.
**
Havia um cansaço em Kiara que não vinha apenas do corpo. Era como se mente e coração travassem um duelo silencioso sem vencedores, apenas fragmentos de dúvida espalhados por dentro.
Nicolas estava sumido.
E Felipe... reaparecera.
Desde a visita inesperada na noite anterior, Kiara m*l conseguira dormir.
Tentara racionalizar tudo: o silêncio de Nicolas, a súbita presença de alguém que, um dia, ocupara tanto espaço.
Mas, naquela manhã de segunda-feira, enquanto comia o último pedaço de bolo de fubá ao lado da mãe, compreendeu que não havia lógica capaz de acalmar um coração inquieto.
Despediram-se na varanda com abraços demorados e promessas de se falarem mais.
Kiara entrou no carro com um suspiro longo e uma lista silenciosa de tarefas:
O voo de volta para São Paulo seria rápido. Voltaria à capital, arrumaria as malas para Washington e, depois, Noruega.
Acompanharia Nicolas como ele pedira ou, ao menos, como havia sugerido antes de mergulhar naquele silêncio incômodo.
Nem mesmo a perspectiva da viagem a animava.
São Paulo lhe parecia distante, não em quilômetros, mas em sentido.
Voltaria à rotina, sim. Mas com uma parte dela suspensa, como se faltasse uma página na história que insistia em não se concluir. Enviara a Nicolas a data e a hora de sua chegada. A mensagem fora entregue. Mas nunca respondida.
Um bilhete deixado ao vento.
E quanto a Felipe...
Ela sabia agora: nunca foi amor.
Fora uma ilusão gentil, um abrigo emocional. Uma sensação de escolha, de segurança. Estivera encantada, não por ele, mas pela ideia de ser amada.
Pela promessa de um amor possível. Sim, acreditava ter amado Felipe.
Na medida em que se ama alguém com quem se constrói mais expectativa do que história.
Os olhos de Kiara se encheram de lágrimas súbitas e quentes.
Piscou várias vezes, rápida, numa tentativa inútil de contê-las.
Não choraria por ele.
Não de novo.
**
A porta se fechou atrás dela com um clique seco.
Kiara largou as chaves na mesinha da entrada e deixou as malas no meio da sala, esquecidas; testemunhas silenciosas de um retorno sem entusiasmo.
O apartamento estava exatamente como o deixara: silencioso, arejado, com aquela sensação vaga de que algo importante lhe escapava pelas frestas.
Eram oito da manhã. Dormira pouco e viera com o rádio desligado.
A mente cheia demais até para músicas.
Só queria um banho. E café.
Caminhou até a cozinha, descalça, os ombros ainda curvados sob o peso de uma bagagem emocional que não cabia em malas comuns.
E foi então que o viu.
Nicolas.
Ali.
Tranquilamente instalado em sua cozinha. Descalço, camisa branca desabotoada, mangas dobradas até os cotovelos. Lia algo no tablet, apoiado no balcão, enquanto mexia o café na xícara favorita dela.
Aquela de porcelana azul-claro, com uma rachadura discreta na alça, que ela escondia no armário de cima só para ninguém usar.
Por um segundo, Kiara parou. O choque foi silencioso. Preciso. Como um vidro que trinca por dentro antes de quebrar por fora.
Mas ela não gritou.
Não exigiu explicações.
Não pediu desculpas por voltar.
Aproximou-se com a calma ensaiada de quem se recusa a sangrar diante do algoz. E, sem dizer palavra, tomou a xícara da mão dele como quem reivindica o que é seu por direito.
Bebeu um gole longo, olhando para a parede à frente.
Depois, virou-se e encostou-se na bancada com indiferença calculada.
— Obrigada por cuidar dela pra mim.
Disse, referindo-se à xícara como se fosse um animal de estimação. Nicolas arqueou uma sobrancelha, mas não sorriu. Pegou outra xícara no armário com a calma dos cínicos e serviu-se.
— Como está sua mãe? Perguntou, mudando a trilha sonora da manhã.
Ela engoliu em seco.
— Está bem. Respondeu, após uma pausa. — Fizemos bolo no domingo.
Ele assentiu levemente. Os olhos tocaram os dela por um segundo. Depois voltaram ao tablet.
— Gostei do que li no memorando com os espanhóis. Direto. Estratégico.
Pausou. — Obrigado por ter assumido. Vou incluir uma bonificação no seu próximo contracheque.
Kiara o encarou. Era só isso?
Nicolas a observou. Havia algo no olhar, não exatamente culpa. Mas talvez… um saber.
— Se quiser dormir mais antes de começarmos a revisar a semana, tem algumas horas.
Disse ele, já saindo da cozinha.
— Vou precisar de você hoje.
Ela ficou.
Sozinha, com a xícara entre as mãos.
O gosto do café misturado ao da espera. Da confusão. Da raiva contida.
E daquela quase ternura.
Ele estava de volta.
Como Felícia dissera. Como se nunca tivesse ido.
**
Ela acordou pouco mais de quatro horas depois.
Os lençóis ainda embolados em torno das pernas, a luz filtrando suave pelas cortinas. Sentia-se entorpecida, não descansada, mas anestesiada. Como se os últimos dias tivessem sido apenas um sonho confuso do qual ainda não conseguira despertar.
Vestiu a primeira coisa que encontrou: moletom cinza-claro, largo nas pernas, um top escuro, o cabelo preso num coque displicente. O tipo que se arma quando se desiste de controlar o mundo.
Desceu os poucos degraus do corredor, os pés descalços, ainda ajustando a alça do top no ombro. Pensou em café; sempre ele, mas a ideia morreu quando ouviu uma voz grave vindo da sala.
Sentado em sua sala. Uma xícara sobre a mesa lateral, notebook à frente, uma pilha de documentos organizados. Usava jeans escuros, camisa branca com as mangas dobradas. A mão direita segurava o celular junto ao ouvido. A esquerda riscava algo nos papéis. A voz baixa e firme preenchia o ambiente com a naturalidade de quem já fazia parte dele.
Ela encostou-se à parede do corredor, em silêncio.
Ele levantou os olhos. E viu. Ela, com o coque desfeito, os ombros nus, descalça.
Os olhos dele pararam nela, parecia hipnotizado.
Houve uma pausa do outro lado da linha. Longa demais para ser confundida com falha no sinal.
Kiara também ficou parada. Contudo, Sem uma palavra, virou-se e caminhou até a cozinha. Um gesto simples, definitivo
E então ouviu:
— Eu... com licença só um... um instante. Disse Nicolas, a voz vacilando pela primeira vez desde que o conhecera.
Ele gaguejou.
A palavra saiu torta, como se não soubesse o caminho da própria boca.
Ela não precisaria se virar para saber: algo nele também havia estremecido.
**
Kiara voltou minutos depois, transformada em outra versão de si mesma ou, ao menos, na que sabia vestir. Calça de alfaiataria preta, blusa de seda marfim, cabelos presos num r**o de cavalo discreto. Brincos pequenos, batom nude. A imagem de quem estava no controle, mesmo que fosse ao contrário.
Encontrou Nicolas ainda na sala, como se não tivesse se movido.
— Me desculpa por ter dormido tanto. Disse ela, com o tom de assistente.
Ele levantou os olhos.
— Não se desculpe por fazer o que mandei fazer. Dormir.
Simples. Frio.
Ela apenas assentiu.
— Temos um jantar hoje à noite. Anunciou ele, fechando o notebook. — Um investidor do setor tecnológico. Emiradense. Está de passagem por São Paulo antes de seguir para Nova York. E os investidores espanhóis, também estarão lá. Ele falava, sem tirar os olhos dela. — Preciso que venha comigo.
Ela o olhou, surpresa.
— Hoje à noite?
— Sim. Então não precisa ir ao escritório. Ele caminhou até o aparador, pegando o celular. — Alguém virá aqui no fim da tarde. Cabelo, maquiagem, vestido.
Ela piscou.
— Por que eu? Perguntou, finalmente. — Por que não leva alguém mais... apropriada?
Ele a olhou por cima do ombro, impassível.
— Porque o custo é menor do eu contratar alguem. Disse e completou, com a mesma frieza. — E está por dentro das negociações com os espanhóis. Eles provavelmente vão querer falar sobre isso.
A resposta caiu como gelo em copo de cristal.
Ela se manteve firme.
— Entendi. Respondeu, com um meio sorriso.
Mas o que ela realmente entendeu era que ele ainda sabia exatamente onde atingir.
**
Às cinco em ponto, o interfone tocou. Kiara atendeu com um murmúrio breve e, minutos depois, a campainha soou. Abriu a porta e deu de cara com um homem baixo, de blazer branco, óculos redondos e uma maleta de rodinhas que parecia pesar mais que ele. Atrás dele, uma mulher elegante, com ar de editora de moda parisiense e uma arara portátil repleta de vestidos pendurados em capas de tecido fosco.
— Boa tarde, musa! Disse o homem, entrando com familiaridade. — Eu sou Ramon, seu anjo da autoestima hoje. E essa é Diane, fada madrinha da elegância.
Kiara deu um sorriso, surpresa pela energia contagiante da dupla.
— Eu não sabia que viria um esquadrão inteiro...
— Querida, você vai jantar com um dos maiores investidores de tecnologia do Oriente Médio. Disse Diane, já instalando a arara ao lado da janela da sala. — E com Nicolas. O mínimo que podemos fazer é te deixar deslumbrante.
Ela riu, meio incrédula, meio resignada.
— Eu só trabalho com ele...
— Amor, ninguém “só trabalha” com Nicolas D’Alencar. Disse Ramon, abrindo a maleta com um clique dramático. — Ou ele te arrasta para o inferno ou te oferece champanhe no topo do mundo. Às vezes, os dois no mesmo dia.
Kiara deixou-se conduzir até a cadeira posicionada na frente do espelho da penteadeira. Enquanto Diane abria os vestidos e Ramon espalhava pincéis, iluminadores e paletas como se fosse pintar um quadro, ela suspirou fundo.
— Vai doer? Perguntou, meio brincando, meio séria.
— Só se você resistir. Respondeu Ramon, começando com um primer levemente perfumado. — Agora fecha os olhos, e deixa o mundo lá fora por uma hora. Hoje, a estrela é você.
Aquela frase, dita com humor e ternura, pegou Kiara de surpresa. Porque fazia tempo que ela não se sentia estrela de nada e muito menos da própria vida. Então, por uma hora, ela cedeu. Permitiu-se.
Ramon transformou seu rosto com traços delicados, realçando os olhos com uma sombra âmbar que fazia seus cílios parecerem ainda mais longos. Diane testou dois vestidos, mas o terceiro um modelo longo, azul petróleo, de ombro único e corte impecável. Fez os olhos de ambos brilharem ao mesmo tempo.
— Perfeita. Decretou Diane. — Elegante, sutilmente fatal, inatingível.
Quando Kiara se olhou no espelho, não reconheceu de imediato o reflexo. Não porque estivesse muito diferente. Mas porque, pela primeira vez em muito tempo, parecia exatamente como queria ser vista: forte, linda e no controle.
Mesmo que por dentro ainda existissem fendas sutis que só ela conhecia.
Ramon terminou o último toque de iluminador com um sorriso orgulhoso.
— Pronta para conquistar o mundo, ou pelo menos deixá-lo confuso.
Ela sorriu.
— Pronta para fingir que não estou nervosa.
E Diane, ajustando o caimento do vestido em seu ombro, sussurrou como um segredo:
— Toda mulher poderosa sabe que a primeira mentira da noite é sempre essa.