11. Capítulo — A Sombra de Maio

1820 Words
No apartamento que dividiam, Kiara preparava uma bebida na cozinha, envolvida pelo som suave da chaleira e pela quietude inquietante daquela manhã. Por um raro instante, esqueceu que aquele espaço que deveria ser só seu, era na verdade, dividido com a própria personificação da sua inquietação. O som da fechadura girando rompeu o instante. A porta se abriu, e ele entrou com a naturalidade de quem já era dono do lugar. Ou de quem nunca deixou de ser. Sem dizer uma palavra, foi direto à geladeira... pegou a caixa de leite e bebeu ali mesmo, da embalagem. Kiara, com um olhar de censura quase maternal, estendeu um copo. No movimento descuidado, o leite escorreu pela lateral, manchando a camisa. E então, como se fosse a coisa mais trivial do mundo, ele tirou a camisa ali mesmo. Ela ficou imóvel. Os olhos seguiram o traço dos ombros dele, a pele clara, o físico magro, esculpido por músculos discretos. A penugem no peito parecia desenhada sob medida. Os braços longos, as pernas firmes e aquela maldita calça que caía perigosamente abaixo da linha dos quadris. Tudo nele parecia uma provocação ao seu bom senso. Kiara respirou fundo. Precisava lembrar quem era. E o que queria. — Não vou com você para Washington. Disse, por fim, com voz firme, segurando cada palavra como se fosse um frágil objeto. — A nova assistente... ou o novo, vai tomar o meu lugar. Nicolas virou-se lentamente. Pegou o copo com a bebida que ela havia preparado, tomou um gole sem cerimônia, ignorando o olhar de protesto nos olhos dela. — Iremos para Washington, depois Noruega... e de lá, direto para Brasília. Disse com a leveza de quem anuncia uma sequência de escalas banais. — Então... poderemos nos despedir de vez. Kiara sorriu. Um sorriso curto. Doído nos cantos da boca. — Eu volto para São Paulo. Já tenho uma proposta em andamento. Ele arqueou uma sobrancelha, levemente curioso. — E quem é o seu novo chefe? — Olavo Tavares. Respondeu. — O encomendador da última reunião. Ele fez uma breve pausa. Havia algo entre o sarcasmo e o incômodo em seu olhar. — Sabe que ele tem chulé? Ela riu, num som leve, mas sem cair na armadilha. — Não pretendo tirar o sapato dele, se é isso que está insinuando. Nicolas deu um passo. Só um. Mas foi o bastante para que o ar entre eles mudasse e se tornasse denso, quente, quase íntimo. Kiara sentiu a garganta secar. Mas então, como quem desperta de um transe ou prefere fingir que nada aconteceu, ele perguntou, com uma naturalidade quase c***l: — Vai querer uma carta de recomendação? Ela sustentou o olhar. O tom dele era neutro, quase frio, mas os olhos... os olhos diziam outra coisa. Algo que talvez nem ele soubesse traduzir. — Claro. Respondeu, com a elegância precisa de quem aprendeu a não vacilar. Sabia que ter uma carta assinada por Nicolas D’Alencar abriria portas. Querendo ou não, a empresa dele era respeitada no mundo inteiro. — Vou preparar. Disse apenas. E foi tudo. Ele virou-se e saiu. Nenhuma palavra a mais. Nenhuma hesitação. A porta se fechou com um clique seco — um som pequeno, mas que ecoou como um ponto final. ** Dois dias depois Maio m*l havia começado, Kiara já sentia como se estivesse trabalhando com ele havia mais de três anos, e não apenas quatro meses. O contrato previa jornadas entre doze e dezoito horas por dia, o que, no papel, ela aceitara com naturalidade. O problema era quando Nicolas se tornava inacessível. Não profissionalmente, ele sempre entregava tudo com precisão quase cirúrgica, mas pessoalmente quando ele se fechava por completo. Como agora. Com o Dia das Mães se aproximando, Kiara se preparava para visitar a própria mãe no interior. Um ritual simples, mas sagrado. Havia avisado para ela com antecedência. De Nicolas, sabia pouco. Sabia apenas que crescera em um orfanato. Nunca tocaram no assunto e ele tampouco parecia inclinado a dividir. Mas uma ou duas vezes, ao organizar documentos, encontrara pacotes no armário dele, embrulhados em papel de seda, com laços discretos e etiquetas sem nome. Presentes silenciosos, guardados como se tivessem sido preparados e jamais entregues. O motivo... ela não saberia dizer. E talvez, por isso mesmo, tenha fechado a porta sem fazer perguntas. Mas agora, com o silêncio dele se estendendo por dia, algo estava fora do lugar. Nicolas não sumia. Nunca assim. ** Na manhã de quarta, após revisar a agenda compartilhada pela terceira vez, Kiara cedeu ao impulso: “Tudo certo com você? Preciso saber se devo assumir a reunião com os espanhóis. ” Esperou. Três minutos. Depois cinco. O celular permaneceu mudo. Nenhuma entrega de leitura. Nenhuma resposta. Suspirando, endireitou os ombros, calçou os saltos e entrou na sala de reuniões como se o comando já fosse dela desde sempre. * Meia hora depois, já com os slides encerrados e os cumprimentos feitos, Kiara dispensou o restante da equipe, desligou o projetor e recolheu os papéis com a leveza de quem está acostumada a apagar incêndios. Mas por dentro, algo lhe incomodava. Nicolas nunca sumia daquele jeito. * No início da tarde, aproveitou uma brecha entre compromissos para caminhar até a padaria da esquina, um de seus refúgios improvisados nos dias em que a formalidade da empresa se tornava opressora. Sentou-se em uma mesinha próxima à vitrine, pediu um cappuccino e uma fatia de bolo de laranja. Estava com o olhar perdido na espuma do cappuccino que não tinha demorado a chegar, quando ouviu uma voz familiar. — Posso sentar ou ainda está avaliando se o açúcar da vida compensa o amargor do chefe? Kiara ergueu os olhos e sorriu, surpresa. — Felícia! A mulher, com um vestido de linho cru, óculos escuros e cabelo preso de forma impecavelmente displicente, largou a bolsa na cadeira e sentou-se com um suspiro dramático. — Nem me ofereceu um pedaço de bolo... decepcionante. Kiara riu, empurrando o prato na direção dela. — Ele está sumido. Disse, após um gole de café. — Não responde mensagens, não apareceu hoje, e não delegou nada oficialmente. Eu só... assumi. Felícia assentiu, sem surpresa. — Maio, né? Kiara franziu o cenho. — Como assim? — Você sabe... o mês. Felícia respondeu, como se isso bastasse. Diante do silêncio intrigado de Kiara, ela acrescentou: — O segundo domingo. Dia das Mães. — Mas… Kiara hesitou. — Nicolas não tem mãe. Quer dizer, cresceu num orfanato. Felícia deu um sorriso enigmático, e cortou um pedaço do bolo. — Todo mundo tem uma mãe, Kiara. Mesmo que ausente. Ou falha. Ou complicada. Kiara não respondeu. Só esperou, atenta. Felícia mastigou lentamente, depois apoiou os cotovelos na mesa, inclinando-se levemente para frente. — No ano passado, exatamente dois dias depois do Dia das Mães, ele apareceu no escritório como se nada tivesse acontecido. Impecável, calado, mais metódico do que o habitual. Mas havia algo... Ela fez um gesto vago com a mão. — Nos olhos. Como se ele tivesse estado em algum lugar longe. Longe mesmo. E voltado com menos certezas do que foi. — Você acha que ele vai aparecer só na terça feira? Kiara perguntou, num tom mais baixo. — Ele sempre volta. Felícia respondeu. — Como se nada tivesse mudado. Kiara ficou em silêncio, mexendo distraidamente no café já frio. Felícia, talvez percebendo que tinha dito mais do que pretendia, voltou ao tom leve. — Mas olha, se ele continuar desaparecido, acho que você pode assumir a empresa também. Já tem o vestido certo para isso. — Muito engraçada. Kiara revirou os olhos, mas sorriu. Embora estivesse se perguntando o porquê de ele estar sumido. ** O cheiro de bolo de fubá com erva-doce se espalhava pela cozinha como um acalanto. A chaleira apitava, e Kiara, sentada à mesa de madeira antiga, segurava a caneca quente entre as mãos. O calor não era suficiente para aplacar o frio discreto que sentia por dentro, um frio que não vinha do tempo, mas da ausência. Ela havia saído de São Paulo no sábado à tarde, depois de passar horas olhando para o celular. Enviara uma única mensagem para Nicolas, breve, como quem oferece um último fio de conexão: “Viajo hoje. Interior. Até segunda. Espero que esteja bem. ” Sem resposta. Nem visualização. Agora, a 150 km de distância da rotina insana, a casa da mãe parecia outra dimensão, muito mais lenta, mais silenciosa, quase excessiva em lembranças. — Está calada demais, filha. Comentou Dona Clarice, sentando-se à frente dela com uma xicara de chá. — E isso só acontece quando tem coisa demais aí dentro. Kiara sorriu, sem graça. — Só cansaço, mãe. A semana foi longa. A mãe arqueou uma sobrancelha, experiente. — Foi mais que isso. Tem olheira de quem dorme m*l, respiração de quem segura coisa no peito... e um jeito de olhar para o nada que só vi em mulher apaixonada tentando fingir que não está. Kiara baixou os olhos. — Não é isso, mãe. — Não? Clarice descascava uma laranja com delicadeza. — Então é o quê? Houve um silêncio. Um silêncio denso, daqueles que pedem coragem para serem rompidos. — É complicado. Kiara disse, por fim. — Não sei o que sinto. E muito menos o que ele sente. Às vezes, acho que estamos nos movendo em direções opostas, e mesmo assim... não consigo parar de olhar para trás. Clarice parou por um segundo, os dedos ainda sujos do sumo da laranja. — Tem homem que aparece para ensinar. Outros, para confundir. E tem uns raros... que fazem os dois. Ela ergueu o olhar, firme. — Só não deixa que a ausência dele ocupe mais espaço do que a presença de quem te ama. Kiara sorriu, tocada. — Obrigada. — Eu não disse isso para te consolar, minha filha. Disse porque eu sei. Porque vivi. A tarde passou entre cafés, risadas contidas e um álbum antigo que Clarice insistiu em mostrar, como se as fotos da infância de Kiara pudessem lembrar à filha quem ela era, antes de tudo. Quando o céu começou a escurecer e os grilos assumiram a trilha sonora do quintal, Kiara estava no antigo quarto, deitada na cama onde um dia sonhou com o mundo. Foi então que ouviu o portão bater. Passos firmes no corredor. E, logo em seguida, a voz da mãe chamando da cozinha: — Filha... tem alguém aqui perguntando por você. Kiara desceu os degraus devagar. Cada passo parecia mais denso. E então o viu. Felipe. Com a camisa de linho amarrotada, os olhos fundos e um buquê de flores que não combinava com nada ao redor, nem com ele, nem com o momento. — Oi, Kiara. Disse, com a voz mais baixa do que o habitual. — Eu precisava te ver. Ela parou, surpresa, o coração errando o compasso por um motivo completamente diferente. Não era o nome de Felipe que ela esperava ouvir naquela noite.
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