No apartamento que dividiam, Kiara preparava uma bebida na cozinha, envolvida pelo som suave da chaleira e pela quietude inquietante daquela manhã. Por um raro instante, esqueceu que aquele espaço que deveria ser só seu, era na verdade, dividido com a própria personificação da sua inquietação.
O som da fechadura girando rompeu o instante.
A porta se abriu, e ele entrou com a naturalidade de quem já era dono do lugar. Ou de quem nunca deixou de ser.
Sem dizer uma palavra, foi direto à geladeira... pegou a caixa de leite e bebeu ali mesmo, da embalagem. Kiara, com um olhar de censura quase maternal, estendeu um copo.
No movimento descuidado, o leite escorreu pela lateral, manchando a camisa.
E então, como se fosse a coisa mais trivial do mundo, ele tirou a camisa ali mesmo.
Ela ficou imóvel. Os olhos seguiram o traço dos ombros dele, a pele clara, o físico magro, esculpido por músculos discretos. A penugem no peito parecia desenhada sob medida. Os braços longos, as pernas firmes e aquela maldita calça que caía perigosamente abaixo da linha dos quadris. Tudo nele parecia uma provocação ao seu bom senso.
Kiara respirou fundo. Precisava lembrar quem era. E o que queria.
— Não vou com você para Washington. Disse, por fim, com voz firme, segurando cada palavra como se fosse um frágil objeto. — A nova assistente... ou o novo, vai tomar o meu lugar.
Nicolas virou-se lentamente. Pegou o copo com a bebida que ela havia preparado, tomou um gole sem cerimônia, ignorando o olhar de protesto nos olhos dela.
— Iremos para Washington, depois Noruega... e de lá, direto para Brasília. Disse com a leveza de quem anuncia uma sequência de escalas banais. — Então... poderemos nos despedir de vez.
Kiara sorriu. Um sorriso curto. Doído nos cantos da boca.
— Eu volto para São Paulo. Já tenho uma proposta em andamento.
Ele arqueou uma sobrancelha, levemente curioso.
— E quem é o seu novo chefe?
— Olavo Tavares. Respondeu. — O encomendador da última reunião.
Ele fez uma breve pausa. Havia algo entre o sarcasmo e o incômodo em seu olhar.
— Sabe que ele tem chulé?
Ela riu, num som leve, mas sem cair na armadilha.
— Não pretendo tirar o sapato dele, se é isso que está insinuando.
Nicolas deu um passo. Só um. Mas foi o bastante para que o ar entre eles mudasse e se tornasse denso, quente, quase íntimo.
Kiara sentiu a garganta secar.
Mas então, como quem desperta de um transe ou prefere fingir que nada aconteceu, ele perguntou, com uma naturalidade quase c***l:
— Vai querer uma carta de recomendação?
Ela sustentou o olhar. O tom dele era neutro, quase frio, mas os olhos... os olhos diziam outra coisa. Algo que talvez nem ele soubesse traduzir.
— Claro. Respondeu, com a elegância precisa de quem aprendeu a não vacilar. Sabia que ter uma carta assinada por Nicolas D’Alencar abriria portas. Querendo ou não, a empresa dele era respeitada no mundo inteiro.
— Vou preparar. Disse apenas.
E foi tudo.
Ele virou-se e saiu.
Nenhuma palavra a mais. Nenhuma hesitação.
A porta se fechou com um clique seco — um som pequeno, mas que ecoou como um ponto final.
**
Dois dias depois
Maio m*l havia começado, Kiara já sentia como se estivesse trabalhando com ele havia mais de três anos, e não apenas quatro meses.
O contrato previa jornadas entre doze e dezoito horas por dia, o que, no papel, ela aceitara com naturalidade. O problema era quando Nicolas se tornava inacessível. Não profissionalmente, ele sempre entregava tudo com precisão quase cirúrgica, mas pessoalmente quando ele se fechava por completo.
Como agora.
Com o Dia das Mães se aproximando, Kiara se preparava para visitar a própria mãe no interior. Um ritual simples, mas sagrado. Havia avisado para ela com antecedência.
De Nicolas, sabia pouco.
Sabia apenas que crescera em um orfanato. Nunca tocaram no assunto e ele tampouco parecia inclinado a dividir.
Mas uma ou duas vezes, ao organizar documentos, encontrara pacotes no armário dele, embrulhados em papel de seda, com laços discretos e etiquetas sem nome. Presentes silenciosos, guardados como se tivessem sido preparados e jamais entregues.
O motivo... ela não saberia dizer.
E talvez, por isso mesmo, tenha fechado a porta sem fazer perguntas.
Mas agora, com o silêncio dele se estendendo por dia, algo estava fora do lugar.
Nicolas não sumia. Nunca assim.
**
Na manhã de quarta, após revisar a agenda compartilhada pela terceira vez, Kiara cedeu ao impulso:
“Tudo certo com você? Preciso saber se devo assumir a reunião com os espanhóis. ”
Esperou. Três minutos. Depois cinco.
O celular permaneceu mudo. Nenhuma entrega de leitura. Nenhuma resposta.
Suspirando, endireitou os ombros, calçou os saltos e entrou na sala de reuniões como se o comando já fosse dela desde sempre.
*
Meia hora depois, já com os slides encerrados e os cumprimentos feitos, Kiara dispensou o restante da equipe, desligou o projetor e recolheu os papéis com a leveza de quem está acostumada a apagar incêndios. Mas por dentro, algo lhe incomodava.
Nicolas nunca sumia daquele jeito.
*
No início da tarde, aproveitou uma brecha entre compromissos para caminhar até a padaria da esquina, um de seus refúgios improvisados nos dias em que a formalidade da empresa se tornava opressora.
Sentou-se em uma mesinha próxima à vitrine, pediu um cappuccino e uma fatia de bolo de laranja. Estava com o olhar perdido na espuma do cappuccino que não tinha demorado a chegar, quando ouviu uma voz familiar.
— Posso sentar ou ainda está avaliando se o açúcar da vida compensa o amargor do chefe?
Kiara ergueu os olhos e sorriu, surpresa.
— Felícia!
A mulher, com um vestido de linho cru, óculos escuros e cabelo preso de forma impecavelmente displicente, largou a bolsa na cadeira e sentou-se com um suspiro dramático.
— Nem me ofereceu um pedaço de bolo... decepcionante.
Kiara riu, empurrando o prato na direção dela.
— Ele está sumido. Disse, após um gole de café. — Não responde mensagens, não apareceu hoje, e não delegou nada oficialmente. Eu só... assumi.
Felícia assentiu, sem surpresa.
— Maio, né?
Kiara franziu o cenho.
— Como assim?
— Você sabe... o mês. Felícia respondeu, como se isso bastasse. Diante do silêncio intrigado de Kiara, ela acrescentou: — O segundo domingo. Dia das Mães.
— Mas… Kiara hesitou. — Nicolas não tem mãe. Quer dizer, cresceu num orfanato.
Felícia deu um sorriso enigmático, e cortou um pedaço do bolo.
— Todo mundo tem uma mãe, Kiara. Mesmo que ausente. Ou falha. Ou complicada.
Kiara não respondeu. Só esperou, atenta.
Felícia mastigou lentamente, depois apoiou os cotovelos na mesa, inclinando-se levemente para frente.
— No ano passado, exatamente dois dias depois do Dia das Mães, ele apareceu no escritório como se nada tivesse acontecido. Impecável, calado, mais metódico do que o habitual. Mas havia algo... Ela fez um gesto vago com a mão. — Nos olhos. Como se ele tivesse estado em algum lugar longe. Longe mesmo. E voltado com menos certezas do que foi.
— Você acha que ele vai aparecer só na terça feira? Kiara perguntou, num tom mais baixo.
— Ele sempre volta. Felícia respondeu. — Como se nada tivesse mudado.
Kiara ficou em silêncio, mexendo distraidamente no café já frio.
Felícia, talvez percebendo que tinha dito mais do que pretendia, voltou ao tom leve.
— Mas olha, se ele continuar desaparecido, acho que você pode assumir a empresa também. Já tem o vestido certo para isso.
— Muito engraçada. Kiara revirou os olhos, mas sorriu. Embora estivesse se perguntando o porquê de ele estar sumido.
**
O cheiro de bolo de fubá com erva-doce se espalhava pela cozinha como um acalanto. A chaleira apitava, e Kiara, sentada à mesa de madeira antiga, segurava a caneca quente entre as mãos. O calor não era suficiente para aplacar o frio discreto que sentia por dentro, um frio que não vinha do tempo, mas da ausência.
Ela havia saído de São Paulo no sábado à tarde, depois de passar horas olhando para o celular. Enviara uma única mensagem para Nicolas, breve, como quem oferece um último fio de conexão:
“Viajo hoje. Interior. Até segunda. Espero que esteja bem. ”
Sem resposta.
Nem visualização.
Agora, a 150 km de distância da rotina insana, a casa da mãe parecia outra dimensão, muito mais lenta, mais silenciosa, quase excessiva em lembranças.
— Está calada demais, filha. Comentou Dona Clarice, sentando-se à frente dela com uma xicara de chá. — E isso só acontece quando tem coisa demais aí dentro.
Kiara sorriu, sem graça.
— Só cansaço, mãe. A semana foi longa.
A mãe arqueou uma sobrancelha, experiente.
— Foi mais que isso. Tem olheira de quem dorme m*l, respiração de quem segura coisa no peito... e um jeito de olhar para o nada que só vi em mulher apaixonada tentando fingir que não está.
Kiara baixou os olhos.
— Não é isso, mãe.
— Não? Clarice descascava uma laranja com delicadeza. — Então é o quê?
Houve um silêncio. Um silêncio denso, daqueles que pedem coragem para serem rompidos.
— É complicado. Kiara disse, por fim. — Não sei o que sinto. E muito menos o que ele sente. Às vezes, acho que estamos nos movendo em direções opostas, e mesmo assim... não consigo parar de olhar para trás.
Clarice parou por um segundo, os dedos ainda sujos do sumo da laranja.
— Tem homem que aparece para ensinar. Outros, para confundir. E tem uns raros... que fazem os dois. Ela ergueu o olhar, firme. — Só não deixa que a ausência dele ocupe mais espaço do que a presença de quem te ama.
Kiara sorriu, tocada.
— Obrigada.
— Eu não disse isso para te consolar, minha filha. Disse porque eu sei. Porque vivi.
A tarde passou entre cafés, risadas contidas e um álbum antigo que Clarice insistiu em mostrar, como se as fotos da infância de Kiara pudessem lembrar à filha quem ela era, antes de tudo.
Quando o céu começou a escurecer e os grilos assumiram a trilha sonora do quintal, Kiara estava no antigo quarto, deitada na cama onde um dia sonhou com o mundo.
Foi então que ouviu o portão bater.
Passos firmes no corredor. E, logo em seguida, a voz da mãe chamando da cozinha:
— Filha... tem alguém aqui perguntando por você.
Kiara desceu os degraus devagar. Cada passo parecia mais denso.
E então o viu.
Felipe.
Com a camisa de linho amarrotada, os olhos fundos e um buquê de flores que não combinava com nada ao redor, nem com ele, nem com o momento.
— Oi, Kiara. Disse, com a voz mais baixa do que o habitual. — Eu precisava te ver.
Ela parou, surpresa, o coração errando o compasso por um motivo completamente diferente.
Não era o nome de Felipe que ela esperava ouvir naquela noite.