*Boa leitura! Caso queiram a continuação, deixem o seu comentário.
“Nicolas era um safado”.
Felícia, sua antecessora, havia-lhe dito isso quando indicara a vaga como assistente de Nicolas, entre uma tragada de cigarro e uma piscadela conspiratória.
— Ele vai te encantar, depois deixar-te louca. Só te digo uma coisa: não se apaixone.
Kiara rira na época. Um riso nervoso, como quem não leva a sério a previsão de uma tempestade até que o céu escureça de verdade.
Naquele primeiro dia, ainda sem saber se duraria uma semana no cargo, ela foi convocada por Nicolas para lidar com uma ex-namorada aos prantos que insistia em ligar para o escritório como se o mundo estivesse acabando.
Recostado na cadeira, exibia o tédio estudado de sempre.
— Prefiro computadores. Disse, enquanto ela desligava o telefone pela terceira vez.
— Percebi.
— Nada de lágrimas, nada de dramas. Acrescentou, fitando-a com aquele olhar que parecia atravessar a alma e vasculhar intenções.
Ela corou. Ele notou.
— Não estou dizendo que prefiro filmes adultos, Kiara.
— Eu... não pensei isso.
— Estou dizendo que prefiro computadores a pessoas. E riu.
Na época, ela não entendeu o recado completo. Agora, meses depois, fazia sentido, cada palavra, cada silêncio.
Ela recordava tudo aquilo enquanto tentava organizar os papéis sobre a mesa. O problema era que não conseguia mais separar o homem do mito, o chefe do desejo.
Nicolas era um enigma elegante, como um código que se decifra com paciência, mas que teima em não se revelar por completo.
Sabia o modelo de helicóptero, os restaurantes, o vinho que evitava. Mas não sabia se ele preferia café amargo ou adoçado.
Porque, como o próprio Nicolas, o café dele variava o tempo todo.
Às vezes, preto e forte como a madrugada.
Outras vezes, doce demais, como se dissesse que alguém o conhecia melhor.
Era isso.
Ela conhecia os gestos, os sorrisos, até os silêncios. Mas não o coração.
E mesmo sem saber o que havia dentro dele… era como se o seu coração soubesse.
**
Kiara desligou o telefone com um suspiro, quando uma voz familiar surgiu no corredor. Ela olhou para o homem, alto, cabelos quase grisalhos e sorriso fácil, era o esposo de Elisabeth, a anfitriã norueguesa de algumas noites passadas. “O nome dele... Rodrigo”, lembrou-se de repente.
— Boa tarde, Kiara. Sabe onde anda o homem mais ocupado de São Paulo?
Ela ergueu os olhos, surpresa, mas sorriu de leve ao ver o marido de Elisabeth se se aproximando com aquele andar despreocupado, o paletó aberto e um sorriso fácil que parecia abrir portas.
— Está numa reunião com a equipe de segurança digital, mas deve terminar em breve. Quer que eu avise?
— Não se preocupe, espero um pouco. Disse ele, apoiando as mãos nos bolsos da calça como quem não tem pressa, e depois lançou um sorriso caloroso. — Queria mesmo era saber como você está. Elisabeth não parou de falar de você desde o jantar. Acha que conseguimos te convencer a aparecer mais por lá?
Kiara riu, tentando disfarçar o aperto no peito. Rodrigo a envolvia com uma simpatia discreta, quase fraterna. Fazia com que ela se sentisse acolhida, como se pertencesse àquele círculo barulhento de afeto e tradição. E Elisabeth... Elisabeth havia sido um sopro de doçura em um fim de semana que deixara suas emoções em ruínas.
— Ela é um amor. Foi muito gentil comigo. Disse Kiara, sincera.
Rodrigo assentiu, sorrindo.
— Elisabeth adorou você. Disse que não via Nicolas daquele jeito fazia tempo. Talvez você consiga arrastar ele mais para perto da gente. Ele vive como se a vida fosse feita só de reuniões e códigos. A família sente falta.
Kiara sorriu, mas desviou o olhar.
Se soubesse, pensou.
Se soubessem que aquele laço tênue que parecia estar começando a se formar logo se romperia.
Que em breve, ela seria só uma lembrança para Elisabeth. Uma assistente que talvez tenha feito Nicolas sorrir por um tempo, mas que partiu antes de virar mais uma entre tantas histórias m*l resolvidas da vida dele.
— Vou tentar. Respondeu baixo, quase como um segredo que dizia mais para si mesma do que para Rodrigo.
Mas ela já sabia.
Nicolas surgiu como uma tempestade silenciosa: passos longos, expressão séria, camisa social meio desalinhada como se tivesse passado horas perdido entre reuniões e voos atrasados. Seus olhos focaram diretamente em Rodrigo, e antes mesmo de cumprimentos formais, a pergunta escapou:
— Ingrid? Está bem?
Rodrigo sorriu, acenando com a cabeça.
— Está sim. Com a Elisabeth, como sempre. Eu só queria mesmo te ver. Às vezes tenho que aparecer pessoalmente, senão você some do mapa.
Nicolas sorriu de canto, mas seus ombros relaxaram visivelmente. Havia algo em Rodrigo que conseguia quebrar as defesas que ele mantinha até mesmo dormindo.
— E a Elisabeth? Ele perguntou, agora com o tom mais leve.
— Reclamando que você não aparece mais. Disse Rodrigo com uma piscadela. — Mas é por isso que vim. Vamos passar uma temporada na Noruega, e pensei que talvez você aceitasse aquele convite antigo. Vai como meu convidado. E, claro, não vou te poupar. Completou com uma risada. — Vai trabalhar.
Nicolas sentou e girou levemente a cadeira em direção à tela do computador, os olhos analisando rapidamente a agenda. Sua mente funcionava como uma linha de código: lógica, precisão, tudo cronometrado. Mas o tom tranquilo de Rodrigo rompeu, ainda que por um segundo, essa arquitetura.
— Na próxima semana, preciso ir a Washington. Disse, como se falasse mais para si mesmo do que para os dois à sua frente. — Tem uma reunião com o Departamento de Segurança Cibernética. É inadiável.
— Depois disso... Londres. Também tentei cancelar, mas é necessário. — Sua voz diminuiu ligeiramente de intensidade, quase imperceptível.
Rodrigo esperava, paciente, como quem conhecia bem o tempo que o amigo precisava para aceitar o que sentia, mesmo que fosse apenas uma viagem.
— Mas a Noruega pode ser viável. Completou Nicolas por fim, olhando diretamente para o amigo. — Se for mesmo uma temporada, consigo organizar. E acho que devo isso a vocês.
Kiara, que observava a cena de sua mesa, captou a hesitação breve no olhar de Nicolas. Um homem cercado por compromissos e distâncias, que raramente dizia "sim" a algo que não envolvesse contratos ou firewalls. E, mesmo assim, ali estava ele, considerando viajar como convidado. Talvez por amizade. Talvez por cansaço.
Rodrigo se levantou, ajeitando a manga do paletó com a naturalidade de quem conhece profundamente cada canto daquele escritório. Olhou uma última vez para Nicolas e disse com um sorriso contido:
— Leva casaco. O verão deles ainda é frio para quem vive entre São Paulo e a Europa. Rodrigo falou, sorrindo.
Nicolas riu com o canto da boca, aquele sorriso que Kiara conhecia bem, contido, irônico, mas genuíno.
— E diz à Elisabeth que eu vou cobrar a promessa de waffles caseiros.
Rodrigo se despediu com um aceno gentil, e antes de sair, lançou um último olhar para os dois, quase cúmplice, como quem sabia mais do que dizia.
Assim que a porta se fechou, o silêncio foi preenchido pelo leve som das teclas do computador diante de Kiara.
Nicolas se virou em sua direção, as mãos nos bolsos da calça, aquele ar displicente que ele usava como escudo.
— Organize tudo, por favor. Disse, com a voz mais baixa, mas ainda firme. — A viagem. Voos, hospedagem, transporte. Se possível, ainda hoje.
Kiara assentiu, já abrindo uma nova aba no navegador, mas antes que ele voltasse para sua sala, ela o encarou.
— Só para saber... é Noruega com escalas ou sem escalas?
Ele arqueou uma sobrancelha, o sorriso ensaiando nos lábios.
— O que for mais eficiente. Mas… se puder evitar perder tempo, melhor. Estou tentando não atrasar minha promessa de waffles.
Ela mordeu a parte interna da bochecha para não rir.
Ele a olhou por mais um segundo. Como se quisesse dizer algo, mas não dissesse.
E então, simplesmente virou-se, caminhando de volta para sua sala com o andar firme e distraído de sempre.
Kiara respirou fundo.
Antes de cruzar a porta para sua sala, Nicolas se virou casualmente, como quem esqueceu algo simples, e disse:
— Kiara… você pode preparar uma bebida para mim?
Ela assentiu, já se levantando, e o seguiu até o escritório. Assim que entrou, o aroma amadeirado familiar dele pareceu tomá-la por inteiro. Seus olhos, contudo, foram direto para a sacola azul sobre a mesa.
A sacola da Tiffany’s.
Desde que trabalhava para Nicolas, Kiara nunca o vira comprar joias para ninguém. Rosas brancas, talvez. Um jantar elegante. Mas joias? Nunca. Ali estava ela. Azul, impecável, com uma fita que mais parecia um aviso.
— Bisbilhotando? A voz veio detrás, calma, divertida. Kiara nem se virou, cansada demais para se surpreender ou fingir.
— Pensei que talvez quisesse que eu cuidasse do embrulho. Disse ela, ainda encarando a caixa como se esta fosse uma revelação inesperada sobre um lado de Nicolas que ela não conhecia.
— Acha que faria um trabalho melhor que a Tiffany’s? Ele provocou, caminhando até ela.
Quando ela estendeu a mão para devolver a caixa, ele a recebeu sem pressa. E então, inesperadamente, desfez o laço com um gesto rápido, abrindo a tampa como se o conteúdo ainda o intrigasse.
— Creio que mudei de ideia. Murmurou.
Com um movimento silencioso. Empurrou a caixa, como quem oferece um segredo com a ponta dos dedos. Kiara não queria olhar. Não queria dar nome à pontada que sentia no peito. Mas olhou. Dois brincos em formato de coração, com diamantes cor-de-rosa cintilantes como gotas de pôr do sol e um colar com um pingente simples, mas que ficaria perfeito no pescoço de qualquer mulher.
— São lindos. Disse com honestidade. E eram.
Mas ele não pareceu satisfeito com a resposta. Pegou novamente a caixa, inclinando a cabeça como quem tentava ver com outros olhos.
— Acho que são... um pouco cor-de-rosa demais. Mas ela é jovem. E o vendedor jurou que é o que todas querem agora.
“Ela é jovem”, ele disse. E a frase ficou ali, suspensa, como uma lembrança de que havia uma distância entre eles que nem as palavras conseguiam encurtar.
Então, Nicolas fechou a caixa com um estalar seco, como se quisesse sepultar junto dela uma ideia. Empurrou-a de volta para que Kiara refizesse o laço com a mesma precisão que usava para organizar sua vida.
— Muito bem. Mudança de planos. Disse ele, agora com a voz mais firme. — Vamos para a Noruega no terceiro fim de semana. Posso adiar Londres por uns dias.
Kiara piscou. A notícia veio como uma lufada de vento inesperada.
— Noruega? Repetiu, prendendo a respiração. — Mas, a viagem é Washington e depois direto para Londres…
Ele deu de ombros, casual. Mas ela sabia. Era a maneira de Nicolas cuidar, sem nunca parecer que estava cuidando.
— Sim. Confirmou, voltando a se sentar. — Rodrigo insistiu, e Elisabeth provavelmente vai me perseguir com mensagens se eu recusar de novo. Além disso… pode ser bom estar por lá.
Ela assentiu, já anotando mentalmente os ajustes.
— Ah... Disse, depois de um breve silêncio. — Marquei uma entrevista hoje à tarde.
Olhou para ele.
— Um dos candidatos à minha vaga.
Nicolas não respondeu de imediato. Apenas olhou para a caixa da Tiffany’s por um segundo longo demais. Ele parou por um segundo, como se só agora lembrasse que a mulher à sua frente em breve não estaria mais ali.
— Certo…. Murmurou. Sua expressão se recompôs. — Escolha bem. Porque a parte mais difícil. Disse, erguendo os olhos para ela. — Ensinar… isso ainda é com você. Pelo menos, por enquanto.
Ele voltou à tela do computador, como se nada tivesse acontecido.
Mas Kiara sentiu.
Sentiu que, pela primeira vez, Nicolas realmente entendeu o que significava perdê-la. E mesmo assim… não disse nada.