13. Capitulo – O Peso do Inesperado

1802 Words
Kiara conferiu o reflexo mais uma vez antes de sair. O vestido azul-petróleo, de ombro único e corte impecável, moldava a sua silhueta com precisão quase indecente de tão elegante. A f***a lateral se abria com discrição, revelando apenas o suficiente para sugerir, nunca gritar. Os cabelos, presos num coque baixo e impecável, deixavam o pescoço à mostra, e o leve toque de brilho na pele parecia proposital, como se nascesse ali. Respirou fundo antes de abrir a porta. O salto ecoou sutil no piso do corredor. E então, ela o viu. Ou melhor, Nicolas apareceu. Saindo de seu próprio apartamento no final do corredor, ele fechava a porta ao mesmo tempo, em que ajeitava o punho da camisa branca por dentro do smoking n***o. Quando levantou o olhar, parou. Literalmente. Não disse nada. Não precisou. O tempo pareceu suspenso por um segundo, um daqueles raros instantes em que nem o ar se move. Ele ficou ali, a poucos metros, olhando para ela como se estivesse vendo algo que não deveria ser real. Como se aquela mulher, aquela versão de Kiara, não se encaixasse no mesmo mundo da assistente de saias lápis e voz firme que o acompanhava em reuniões. Ela parecia ter saído de uma memória que ele ainda não sabia que tinha. Kiara, desconcertada, sentiu o calor subir pelo pescoço. Corou, como não fazia há anos. — Achei que estivesse esperando no carro. Disse, tentando disfarçar com uma leveza que não sentia. Nicolas demorou a responder. Ainda parecia preso a algo entre o deslumbre e a confusão. — Eu... Começou, mas a palavra ficou suspensa, como se tivesse se esquecido do que vinha depois. — Vim buscar algo... Completou, com uma voz mais baixa, estranhamente hesitante. Ela não comentou. Apenas assentiu, os olhos fugindo dos dele por um segundo. Mas foi o suficiente para ele despertar. — Está linda. Disse, enfim. Foi direto, mas a voz saiu mais grave do que o habitual. Menos controlada. — Obrigada. Respondeu ela, com um sorriso contido que m*l escondia o turbilhão interno. O elevador chegou com um som metálico discreto, quebrando o feitiço. Os dois entraram juntos, mas o clima entre eles era outro. Não era como nas tantas vezes em que jantaram com empresários, clientes ou políticos. Não havia roteiro, nem papéis definidos. Dessa vez, era diferente. Quase pessoal. Ele a observava pelo reflexo do espelho do elevador, mesmo sem virar o rosto. E ela sabia. Sentia. Quando as portas se abriram, Nicolas ofereceu o braço num gesto raro, elegante e inesperado. Ela hesitou por um segundo, mas aceitou. ** O carro seguia suavemente pela avenida iluminada, cortando a cidade com elegância. Kiara estava sentada ao lado de Nicolas, o vestido impecável moldando-se à postura ereta, as mãos repousadas sobre o colo. O silêncio entre eles era quase palpável, como uma extensão dos pensamentos que ambos se esforçavam para manter sob controle. Do banco da frente, o motorista seguia calado, atento apenas ao caminho. Nicolas, no entanto, virou o rosto para ela. — Sua mãe está bem mesmo? Perguntou, com uma voz baixa, sem tom acusatório, apenas... interessada. Ela desviou o olhar da janela e sorriu, sincera. — Está melhor do que eu esperava, na verdade. Ela parecia pensativa. — Falei para você que fizemos um bolo, conversamos e depois eu vim embora. Ele assentiu levemente, como se aquilo ocupasse um espaço íntimo demais na mente dele. O silêncio voltou, mas não durou. — E Felipe? Como ele está? A pergunta veio sem aviso, e Kiara sentiu os ombros enrijecerem. Instintivamente, olhou para a própria mão. A aliança ainda estava ali. Uma escolha silenciosa que ela não soube explicar nem para si mesma. Sentiu os olhos de Nicolas a seguirem até o gesto discretamente, mas com a precisão de quem observa o que não se diz. — Ele... Começou buscando as palavras com cautela. — Apareceu no domingo. Conversamos, e então, agora estou aqui. Não mentiria. Não mais. Mas também não abriria as portas para ele perceber que esse tempo todo ela estava fingindo algo que não existia mais. — Curtiram o domingo, pelo visto. A voz de Nicolas agora era mais contida. Havia algo diferente nela. Não ciúme. Mas uma espécie de incômodo... frio. Ela assentiu devagar. — Conversamos... Os olhos dele desceram discretamente até a mão esquerda dela. — E ele... concordou com a viagem? Ele a olhava curioso. — Washington, Noruega, durante uma semana inteira, depois Brasília. A pergunta pairou no ar. Kiara sorriu de lado. O tipo de sorriso que corta mais do que conforta. — Ele nunca viu problema nisso. Nicolas a encarou. E, por um breve segundo, ela teve certeza de que viu ali não ciúme, não raiva. Mas desafio. Como se ela tivesse dito algo que ele não estava disposto a aceitar. Ela sustentou o olhar, firme. — Já passei um mês com você no Japão, Nicolas. Dormimos nos mesmos hotéis, almoçamos e jantamos juntos com empresários, executivos, ministros... E nada mudou entre nós. A voz dela agora era baixa, mas não frágil. Era sóbria. Intensa. — Por que seria diferente dessa vez? Nicolas a observou, e o que quer que estivesse se formando em seu rosto, raiva, desejo, contrariedade ou tudo junto desapareceu rápido demais para ser lido com clareza. Ele apenas se recostou no banco de couro e desviou o olhar para frente, os olhos escurecendo como se tivesse retornado para dentro de si mesmo. ** O carro parou suavemente diante do restaurante Tangará Jean-Georges, instalado dentro do luxuoso hotel. Rodeado por vegetação exuberante, o local reunia o que havia de mais refinado na gastronomia internacional, com salões de arquitetura europeia, cristaleiras reluzentes e mesas ocupadas por empresários, diplomatas e celebridades discretas. Do lado de fora, um manobrista uniformizado abriu a porta do banco traseiro. Nicolas saiu primeiro, ajustando o paletó preto de corte italiano com um gesto automático e elegante. O cabelo impecável, o ar compenetrado e a postura altiva bastavam para que os olhares dos funcionários se voltassem para ele. Então, com naturalidade rara, ele estendeu a mão em direção à porta aberta. Kiara hesitou por um segundo antes de aceitá-la. A mão dele era firme, quente. Quando seus dedos tocaram os dela, um arrepio sutil percorreu sua espinha não por causa do frio da noite, mas pelo calor contido entre os dois. Ela saiu do carro com graça, o vestido azul petróleo fluindo como seda líquida ao redor das suas pernas. Estava linda. Demais. E Nicolas percebeu. Com intensidade. Sem dizer uma palavra, ele conduziu Kiara pelo tapete discreto da entrada. Os dois pareciam um casal saído de um editorial de revista de luxo, belos, enigmáticos, distantes do mundo real. O maître os reconheceu no ato. — Senhor D’Alencar. Senhorita. A mesa está pronta. Foram guiados por um corredor silencioso, onde o som dos talheres e o tilintar de taças criavam uma trilha sonora sutil de opulência. Entraram em um salão reservado, com cortinas de linho claro, luzes âmbar filtradas por lustres de cristal e uma vista privilegiada do verde do Parque Burle Marx através das janelas envidraçadas. A mesa já estava posta. Porcelana fina, taças Riedel, guardanapos de linho. Três homens e uma mulher, todos elegantemente vestidos, levantaram-se ao ver Nicolas se aproximar. — Boa noite, senhores. Disse ele, com um leve aceno de cabeça. — Esta é Kiara Medeiros, minha assistente direta e estrategista de negociações internacionais. Ela cumprimentou a todos com um sorriso educado e voz firme, apesar do coração acelerado. O modo como Nicolas a apresentava não deixava dúvidas de sua importância ali. Não era um adorno. Era uma extensão dele. — Senhorita Medeiros. Disse um dos empresários, um magnata do setor tecnológico com sede em Dubai e filial recém-estabelecida em São Paulo. — Ouvi dizer que sua análise foi determinante na aprovação da nossa proposta com os espanhóis. Estou ansioso para ouvir mais das suas ideias. — Estarei à disposição durante o jantar, senhor. Respondeu Kiara, sem piscar, entrando com maestria no jogo que sabia que precisava jogar. Nicolas puxou a cadeira para ela. Um gesto discreto, mas que não passou despercebido. Havia algo na forma como os olhos dele a acompanharam até se sentar. Algo... que ninguém ali precisava entender. Só sentir. E ali, entre garrafas de vinho francês, pratos assinados por chefs com estrelas Michelin e acordos bilionários rondando a mesa, ela percebeu: aquela noite não era só um jantar de negócios. ** Os garçons circulavam como sombras educadas. O Bordeaux rarefeito tingia as taças como sangue nobre. Pratos vinham e iam com silencias bem ensaiados. Amira Kassem, como uma esfinge em seda, girava a taça com os dedos de porcelana. — Nicolas, devo dizer... trazer sua assistente pessoal para um jantar como este? Ela se virou para Kiara. O sorriso era uma lâmina envolta em perfume. — Ou você é mais do que apenas assistente? Kiara sustentou o olhar com a elegância de quem já aprendeu a matar sem levantar a voz: — Depende do que espera de uma assistente, senhora Kassem. Nicolas nem sorriu. Apenas observava. O maxilar levemente contraído. — Gosto disso. Comentou um dos homens. — Sagaz e direta. Preciso de uma dessas. E então, sem pressa, Nicolas cravou: — Kiara não está disponível. Nem como assistente. Nem como aquisição. O silêncio que se seguiu não era constrangido. Era o respeito involuntário que certos homens impõem quando param de sorrir. As conversas voltaram-se a contratos, fusões, estratégias intercontinentais. Mas Nicolas não ouvia. Observava. Kiara, impecável em cada palavra. Cada gesto. Brilhava sem pedir permissão. Até que Victor Hadi, o magnata libanês, se inclinou: — Posso perguntar algo mais pessoal, senhorita Medeiros? Ela assentiu. — Trabalhar com um homem como D’Alencar... é fácil? Ou você também tenta adivinhar o que se passa na cabeça de quem nunca entrega nada? Risos. Kiara esperou que o eco diminuísse. — Acho que não tem o que se controlar, ou prever. Apenas, sigo minhas próprias convicções. Um instante de silêncio antes que a voz dele cortasse: — Foi isso que você fez, Kiara? Ela não desviou. — Não. Eu escolhi não jogar com você. Amira bebeu, satisfeita. Victor ergueu as sobrancelhas. — Sorte a sua, Nicolas. A maioria tenta temer ou copiar você. Mas Nicolas não respondeu. Apenas olhava para Kiara. E por um instante, ali havia apenas um homem e uma mulher atravessados por tudo que nunca disseram. Ela desviou o olhar. A mão repousava sobre o colo. A aliança, ainda no dedo. E quando o garçom se aproximou com o próximo prato, Nicolas ergueu a mão, recostou-se na cadeira e disse: — Não quero sobremesa. A voz estava limpa. Rasa de afeto. Cheia de tudo o que não se podia nomear. Olhou mais uma vez para Kiara. Por tempo suficiente para que ela sentisse. Depois, voltou os olhos para o copo. Continua...
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