Naquela noite, deitada no escuro do meu quarto, não consigo dormir. Penso no homem desconhecido, no perigo que senti sem saber explicar, e na vontade inexplicável de vê-lo de novo. Ele era como um imã me atraindo, diretamente para o precipício. Eu sinto, sinto do fundo do meu peito.
Mas eu sou teimosa, mesmo quando sinto. Também tento me convencer que é só a vontade de me ver livre, longe daqui. A vontade de ser a filha rebelde do meu pai. E sei que no fundo, aquele homem é o caminho certo para minha vontade.
E nesses pensamentos conflituosos que adormeço. O corpo cansado de tanto fingimento por longas horas.
Acordo com um grito. Não é um sonho, é real.
O som invade meu quarto como um trovão: um baque forte, algo quebrando no andar de baixo, vozes exaltadas. Meu coração dispara antes mesmo de eu abrir os olhos.
Me enrolo no roupão e saio do quarto quase tropeçando, pés descalços no piso frio de mármore. O cheiro de café queimado e cigarro já domina o corredor, mas é o cheiro de medo que fica mais forte a cada passo.
No topo da escada, vejo Marcello e outros seguranças armados, tensos, trocando sussurros apressados. Minha mãe está sentada no sofá, pálida, com as mãos apertadas no colo.
Meu pai está no escritório, a porta escancarada. Ele grita com alguém ao telefone, a voz rouca de raiva:
— Eles sabem, filho da p**a! Eles sabem!
A cada frase, ele arremessa papéis, copos, tudo o que encontra pela frente. O quadro de família cai da parede, estilhaçando o vidro no chão. Chego mais perto, o estômago embrulhado de pavor e curiosidade.
— O que aconteceu? — pergunto para minha mãe, a voz baixa.
Ela só balança a cabeça, os olhos marejados. Não consigo tirar nada dela, então vou até a porta do escritório, encosto na lateral, ouvindo meu pai destilar sua fúria.
— Eu avisei! Não era hora de mexer com os Valentini! Agora vamos pagar caro! — berra, desligando o telefone com força.
Sinto o olhar de Marcello nas minhas costas, protetor e ameaçador ao mesmo tempo. Ele me observa, mas não impede minha aproximação. Meu pai me vê, os olhos vermelhos, o rosto crispado de ódio e medo.
— O que aconteceu, papai? — pergunto, a voz trêmula, mas firme.
Ele respira fundo, tentando recobrar o controle. Senta na poltrona de couro, as mãos ainda tremendo.
— Os Valentini... Eles descobriram sobre o porto — diz, cuspindo as palavras. — Sabem que sabotamos a carga deles. Sabem de tudo.
O silêncio que segue é cortante. Sabotagem. Eu tinha ouvido rumores nos corredores, sabia que meu pai estava mais ousado nas últimas semanas. Mas nunca imaginei que ele ousaria mexer diretamente com os Valentini.
— Mas... Como? — pergunto, engolindo em seco. Ele bate a mão na mesa, os anéis faiscando à luz da manhã.
— Alguém nos entregou. Não sei quem, mas o jantar de ontem... Foi só pra mostrar que eles estão nos observando. Não disseram nada, mas cada palavra, cada olhar, foi um aviso. E acredite, filha, ninguém avisa antes de atacar se não estiver prestes a destruir tudo.
O gelo percorre minha espinha. Me lembro dos olhos cinzentos de Salvatore, das frases carregadas de duplo sentido, da calma assustadora durante todo o jantar. Era tudo um jogo. Um aviso, sim, mas também uma declaração de guerra.
O telefone toca de novo. Meu pai atende, a voz mais baixa agora, o rosto pálido.
— Eles querem conversar. — me olha, sombrio. — Vão mandar um emissário.
Marcello aproxima-se, cochicha algo no ouvido do meu pai. A resposta é um aceno cansado.
— Mantenham a Bianca em casa. Nada de festas, nada de encontros. A partir de hoje, a segurança dobra. E se alguém tentar alguma coisa, atirem pra matar.
Meu mundo, já pequeno, encolhe mais um pouco. Minha liberdade, tão frágil, escorre pelos dedos. Não me atrevo a protestar.
Vou para o meu quarto devagar, cabeça cheia de imagens do jantar, do toque de Salvatore, das palavras dele ecoando:
"Não confie em ninguém aqui. Nem em mim."
Só agora entendo a gravidade do que ele quis dizer. E o que quer que venha depois disso, sei que nenhum treino, nenhuma arma, nenhum muro vai me proteger do que está por vir.
No corredor, minha mãe me segura pelo braço, os olhos úmidos.
— Prometa que vai obedecer, Bianca. Prometa que vai ficar aqui, que não vai se arriscar.
Pela primeira vez, vejo medo de verdade nela. Não por si mesma, mas por mim.
— Eu prometo, mãe.
Minto, porque sei que promessas, nesta casa, são só palavras jogadas ao vento.
Me tranco no quarto, encosto a testa na porta. Lá fora, vozes gritam, ordens são dadas, homens armados correm de um lado para o outro. A guerra chegou.
E a lembrança do olhar de Salvatore, frio e calculista, me faz entender: para a família Valentini, avisos são apenas a primeira bala.
Fecho os olhos, sentindo o peso de tudo o que perdi antes mesmo de perceber.
O jogo começou. E, desta vez, ninguém vai sair ileso.