É mais fácil rir do que socar uma parede.
A luz amarela, quente, nos envolve com um calor que não aquece a pele, mas toca diretamente o psicológico — aquele tipo de calor que conforta a alma sem jamais queimar. O sofá de três lugares, por mais amplo que pareça, parece estreito demais para nós dois — dois seres humanos transbordando segredos, dores e aprendizados silenciosos. Estou em uma das pontas, ele na outra.
Minha camisa extra grande cai suavemente sobre meu corpo, acompanhando os contornos sem pressa. Meus cabelos ondulados estão soltos, livres, rebeldes — e não sinto vergonha alguma dessa liberdade tão crua ao lado dele. Curiosamente, ele não parece se importar com meu aspecto desleixado hoje.
Ele me observa. Com aquele olhar indecifrável que diz sem dizer, que fala entre as entrelinhas do silêncio. É uma das coisas que mais me fascinam nele — esse mistério constante, esse enigma ambulante que atrai todos os meus sentidos como um campo gravitacional próprio.
E sabe o que mais me prende nisso tudo? A idealização. O prazer quase inocente de imaginar quem ele poderia ser, ainda que talvez nunca venha a ser. É como mergulhar num livro de ficção que sei ser irreal, mas cujo personagem me toca de forma visceral, me envolve, me atrai, me faz querer mais, sempre mais.
O jazz começa a preencher o ambiente, vindo da TV em um volume sutil — o bastante para ignorarmos a letra, mas não a melodia.
Ele gira devagar o copo de whisky, e o gelo tilinta contra o vidro num som suave, quase imperceptível, como se o próprio silêncio estivesse respirando. Estou recostada no encosto do sofá, mas meu rosto permanece voltado para ele.
Sorrio, apesar de mim. É difícil conter.
Não estou apaixonada por você. Mas a atração é intensa o suficiente para que meu corpo se comporte como se estivesse.
Qual foi? — ele pergunta, com um sorrisinho travesso que tenta conter, mas escapa pelos olhos.
Quero saber sobre você... Mas às vezes, não quero. — Respondo, sem desviar os olhos da TV, que agora virou apenas cenário.
E por que às vezes não quer? — ele retruca, arqueando uma sobrancelha, com aquela expressão que mistura curiosidade genuína e provocação calculada.
Porque gosto da ideia de quem você pode ser... — Faço uma pausa, os olhos ainda fixos na tela, embora não enxerguem nada — ...mas ao mesmo tempo, fico curiosa demais pra não querer descobrir de verdade.
Ele solta uma risada abafada, como se não quisesse admitir que a frase o acertou em cheio. Ele dá mais um gole no whisky, e o gelo volta a tilintar no copo, como se também estivesse rindo.
Então é isso? Você prefere o mistério do que o spoiler? — diz, com aquele tom leve, mas que carrega uma pontada de algo mais fundo.
Depende do mistério. E do spoiler! — respondo, agora virando o rosto na direção dele, com um meio sorriso.
Ele me encara por um segundo a mais do que deveria, como se ponderasse até onde poderia deixar cair a máscara antes de fazer mais uma piada.
Pode ficar tranquila… o personagem é melhor ao vivo do que na sinopse. — Diz.
Eu dou uma risadinha baixa e mordo o lábio inferior. Eu adoro humor inteligente.
Quero te perguntar uma coisa bem pessoal. Se você me responder e quiser me devolver uma pergunta do mesmo tipo… fica à vontade. — falo num tom mais de pedido do que de afirmação.
Ele assente devagar. Toma mais um gole do whisky, deposita o copo com cuidado na mesa de centro e me encara. Os olhos dele ficam fixos nos meus — atentos, abertos, mas sem perder aquela expressão de quem mede as palavras antes mesmo de ouvir a pergunta.
Seu problema com a raiva… por quê? — pergunto, sem rodeios, mas com cuidado.
Ele demora um instante. Não parece surpreso, mas também não responde de imediato. Desvia o olhar, passa a língua pelos dentes, como se tentasse tirar um gosto amargo da boca, e então volta a me encarar.
Porque eu cresci aprendendo que era assim que se resolvia as coisas. — diz, enfim. A voz baixa, quase só pra mim. — Quando a casa vira campo de guerra, ou você se esconde ou aprende a atirar. Eu não sabia me esconder.
Fico em silêncio. Ele continua, sem pressa:
Meu pai gritava com a minha mãe até ela chorar. Às vezes… nem gritava. Às vezes só batia. Silêncio, grito, pancada — era meio aleatório, sabe? Como um sorteio do inferno.
Ele esfrega as mãos, nervoso, mas sem perder a linha.
Eu era moleque, fazia m***a, quebrava coisas, fugia de casa… dava trabalho. Ela tava lá, toda esgotada, apanhando e ainda tentando segurar as pontas. Eu… só atrapalhava mais.
Você era criança. — digo, baixo.
Eu sei. Mas me culpei por muito tempo. Ainda me pego me culpando. — Ele respira fundo, os olhos agora fixos em algum ponto atrás de mim. — Meu irmão mais velho… não aguentou. Carregou tudo até o cérebro dele quebrar. Hoje na base de remédio, apagado do mundo. E eu... fiquei com a raiva.
Silêncio de novo. Não aquele desconfortável, mas o que respeita o que acabou de ser dito.
A raiva virou armadura, sabe? Me protegeu. Me fez parecer mais forte do que eu era. Só que… depois que ela te protege, ela passa a te controlar.
Ele volta a me olhar. Há um cansaço escondido ali, mas também uma sinceridade crua, sem disfarces.
É por isso que eu faço piada com tudo. É mais fácil rir do que socar uma parede.
Ele se recosta um pouco no sofá, mas o olhar ainda está em mim — firme, curioso, diferente daquele jeito brincalhão de antes. Agora há um silêncio entre nós que pesa, mas não machuca. Um silêncio que acolhe.
Ele passa a mão pelos cabelos, coça de leve o cavanhaque, como se tentasse decidir se deveria mesmo perguntar. Mas decide.
Agora é minha vez, né? — diz, com a voz mais baixa.
Assinto com um leve movimento de cabeça.
Qual é a tua dor que ninguém vê? — pergunta. Sem rodeios, mas com delicadeza. Quase como se já soubesse que ela existe, só não soubesse o nome.