Não é muita coisa. Mas é o que eu tenho.

1008 Words
O jeito dele perguntar não é invasivo. Não é cobrança. É como se dissesse: eu aguento escutar, se você quiser me contar. O ambiente continua o mesmo — mas agora um blues suave de fundo, a luz quente envolvendo tudo num tom âmbar, mas agora há algo diferente. A conversa atravessou a superfície. Ele me observa com atenção de verdade. Não para julgar. Mas para entender. Fico em silêncio por alguns segundos. Não porque não sei o que dizer, mas porque escolher por onde começar é difícil. Cresci num lugar onde o amor parecia uma guerra. — Começo, olhando para as próprias mãos, depois lentamente de volta para ele. — Meu pai era paranoico, possessivo… daqueles que controlam tudo pela raiva, pelo medo. Ele ameaçava minha mãe de todas as formas possíveis. E ela... aguentava. Calada. Diminuída. Quase apagada. Dou uma leve risada sem humor. Acho que desde muito cedo eu entendi que eu não queria ser ela. Então comecei a bater de frente. A questionar. A desobedecer. E ali foi quando as coisas começaram a sujar pra mim também. Faço uma pausa, o olhar meio distante. A adolescência foi um campo minado. E os relacionamentos que vieram depois... também. Não estou pronta pra falar de tudo. Tem coisa que ainda me engasga. Ele não diz nada. Só ouve. Como se escutar fosse o maior cuidado que ele pudesse me dar. Saí de casa aos dezoito. Fui embora pra outro estado achando que recomeçar resolveria. Mas o que aconteceu foi que só me vi sozinha, perdida, sem referência, tentando sobreviver. Fui engolida por cobranças, exclusões, silêncios que doíam mais que gritos. Respiro fundo, ajeito a postura no sofá. Hoje... eu sou o que sobrou. O que eu consegui salvar de mim. O que eu construí com os cacos. Olho pra ele com um pequeno sorriso, quase triste. Não é muita coisa. Mas é o que eu tenho. Ele não responde de imediato. Não desvia os olhos, não tenta mudar de assunto, não solta uma piada — o que, vindo dele, já diz muito. Apenas permanece ali, presente, como se as palavras que você acabou de dizer ainda estivessem ecoando dentro dele. Depois de alguns segundos, ele passa a mão devagar pela nuca, inclina levemente a cabeça pro lado, e fala baixo: — Caramba... A voz sai quase num sussurro. Ele não diz “sinto muito” nem repete aquelas frases prontas que a gente escuta quando conta algo assim. Ao invés disso, ele se inclina um pouco na minha direção, com os cotovelos apoiados nos joelhos e seu copo esquecido na mesa. Você fala como quem ainda tá sangrando... mas tá inteira. — Diz. Ele faz uma pausa, me olhando com um ar mais sério do que o habitual. Eu cresci aprendendo que quem sobrevive a esse tipo de coisa vira casca. Frio. Duro. Mas você... ainda tem alguma coisa quente aí dentro. — Continuou. Um silêncio se instala de novo, mas é diferente dos anteriores. Mais confortável. Mais cúmplice. Depois, ele se recosta de novo no sofá, passa a mão no rosto, pensativo. E você ainda achando que não tem muita coisa... — diz, quase rindo, mas com um respeito fundo na voz. Dou uma risada desconcertada. Um riso que sai mais como alívio do que como piada. Dois fodidos. — Brinco, jogando o corpo um pouco pra trás no sofá, como quem se rende ao óbvio. Ele ri também, dessa vez mais solto, como se o peso que pairava entre os dois tivesse diminuído um pouco. Brindemos à disfunção emocional! — responde, levantando o copo num brinde simbólico. Ergo minha taça de vinho esquecida na mesinha, também, ainda sorrindo, e batemos devagar, sem pressa, com aquele "tintim" leve e cúmplice. Pelo menos a gente é sincero, né? — comento, encarando o líquido na minha taça, antes de tomar um gole. Sinceros e funcionais o suficiente pra sentar num sofá e não sair correndo quando ouve a palavra trauma. Isso já nos coloca acima da média. — ele diz, com aquele tom de humor que carrega verdade. Ficamos em silêncio por alguns instantes, mas agora é um silêncio confortável. Um onde até a respiração parece mais leve. A luz amarela continua aquecendo o ambiente, e o jazz ainda toca — agora como pano de fundo para um tipo raro de conexão. Sem precisar dizer muito mais, ambos sabemos: naquele instante, somos dois sobreviventes que, de alguma forma, se entenderam. E esse seu apego em idealizar alguém e preferir não “desdealizar”? — ele me questiona, do jeito discretamente sagaz que só ele tem. Respiro fundo, encaro a taça por um instante, girando o líquido dentro como se ele pudesse me dar uma resposta mais fácil. Não é apego... — começo, quase em defesa. — É medo. Dou uma risada curta, sem graça. Eu idealizo porque, por um tempo, isso foi o mais seguro que eu tive. As pessoas reais... elas quebraram muita coisa em mim. Me decepcionaram, me machucaram, me deixaram sozinha. A fantasia, por mais ilusória que seja, nunca me feriu. — Levanto os olhos devagar e encaro os dele. — Quando eu idealizo alguém, é como se eu criasse um lugar dentro da minha cabeça onde tudo é bonito. Onde o outro não mente, não grita, não trai, não some. E eu sei que não é real... mas é meu. É limpo. Faço uma pausa. O problema de conhecer alguém de verdade é que, inevitavelmente, vem a parte em que tudo se mostra. E eu... ainda não decidi se tô pronta pra lidar com as versões reais das pessoas. Não de novo. — Dou um sorriso fraco. — Talvez eu só queira adiar o momento de me decepcionar. Mesmo sabendo que ele sempre chega. Inclino a cabeça levemente. Mas você... você as vezes é difícil de idealizar. Porque você mostra pouco, mas o pouco que mostra já é confuso o suficiente pra me deixar intrigada. — Concluo. Ele sorri. E pela primeira vez e, talvez, esse sorriso venha sem máscara.
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