Talvez você só esteja me vendo como escape. Sabe, para forçar mais a fuga do seu antigo relacionamento. Você me idealiza como gostaria que ele tivesse sido. — ele diz.
Minha expressão muda. Não de surpresa, mas de impacto. Porque ele acertou em cheio num lugar que eu ainda não tinha nomeado. Essa fala dele é forte, direta — e carrega tanto percepção quanto insegurança. Ele está colocando sobre a mesa uma dúvida dolorosa, mas legítima.
Fico em silêncio por alguns segundos, não por falta de palavras — mas por respeito ao que aquilo significava.
Talvez. — Admito, com a voz baixa, sem desviar o olhar. — Talvez uma parte de mim esteja mesmo tentando se agarrar a qualquer coisa que pareça diferente do que me feriu.
Dou um meio sorriso triste.
Mas eu te vejo. Não como substituto, nem como remendo. Te vejo como alguém que existe por si, com sua história, suas feridas, seus silêncios barulhentos. — Mexo no tecido da manga da minha camisa, como se precisasse das mãos ocupadas pra dizer o resto. — A verdade é que... eu tô tentando entender o que é conexão de novo. Depois de tanto tempo andando na defensiva. E você... você apareceu justo quando eu já não sabia mais se dava pra confiar em alguém.
Volto a olhar pra ele. E continuo: — Eu não quero que você seja como ele. Não estou te vestindo com a roupa de ninguém. Mas talvez eu ainda esteja tentando descobrir se consigo gostar de alguém sem esperar que me destrua depois.
O silêncio que segue é denso, mas não frio. É como se algo estivesse se rearranjando entre nós.
E se você acha que tá sendo só um escape... — continuo, mais suave — pode ir embora agora. Porque eu nunca vou querer prender ninguém no lugar de alguém que me fez m*l!
Meu olhar se mantém no dele. Aberto. Exposto. Real.
Mas se você também tiver um lugar aí dentro onde caibam verdades, por mais bagunçadas que sejam… então talvez a gente esteja construindo algo que não tem nada a ver com o passado. — Digo.
Ele escuta tudo. Sem interromper, sem desviar o olhar. Quando termino, ele respira fundo e olha pra frente, como quem procura as palavras dentro do próprio peito.
Você fala bonito. — ele diz, depois de um tempo. — Tão bonito que, se eu fosse outra pessoa… talvez eu acreditasse que dava pra tentar.
Ele vira o copo, toma o resto do whisky, e encara o copo vazio, girando-o devagar entre os dedos.
Mas você mora longe. Você divide casa com o ex. E eu… — ele solta uma risada seca, sem humor — eu sou o tipo de cara que já se sabota de perto. Imagina de longe...
Fica um silêncio entre nós. Não desconfortável — mas denso. Sincero.
Eu não me meto em coisa que sei que não posso sustentar. Aprendi isso da pior forma. E você… você merece alguém inteiro. Não alguém que só aparece uma vez por ano e te oferece palavras bonitas no sofá. — Digo.
Ele me encara de novo. Os olhos dele não têm raiva, nem culpa. Têm carinho. E uma certa resignação.
Isso aqui entre a gente… é massa. É raro. Mas talvez só exista porque tem data pra acabar. — Diz.
Engulo em seco. E, apesar da dor que a frase carrega, não há mentira nela. Nenhuma.
Fico quieta por um instante, deixando as palavras dele reverberarem no silêncio do ambiente.
Quase sinto uma pontada de incômodo — não pela sinceridade, mas porque dói ouvir assim, de forma tão direta, o que eu já sabia lá no fundo.
Mas não digo nada. Porque entendo. Entendo demais.
Sabe... — começo, devagar, olhando para ele com um misto de tristeza e respeito —, eu quase me sinto ofendida com o que você disse. Mas não por você falar a verdade.
Dou um leve sorriso, meio melancólico.
Eu nunca esperei nada sério da gente. Jamais imaginei que isso pudesse ser um começo, uma construção, ou até mesmo um plano. — Olho para a taça na minha mão, girando o líquido sem pressa. — Eu estou consciente dos contras. Da distância. Das circunstâncias. E, honestamente? Acho que você não teria o menor saco pra esse tipo de coisa. E de certo ponto, nem eu.
Volto a olhar pra ele, firme.
Mas sabe o que eu gosto nisso tudo? Que a gente ainda tá aqui. — Dou de ombros. — Isso aqui já é suficiente.
Ele se levanta devagar, com aquele sorriso torto de quem já tem a piada na ponta da língua.
Ah, claro... porque ficar aqui chorando nossas misérias emocionais vai dar em quê? — ele fala, passando pela mesa, pegando a garrafa de whisky. — Em nada, minha cara. Em absolutamente nada.
Enche o copo com uma generosidade que beira o desperdício, e se vira pra mim, jogando um olhar que com certeza j**k Sparrow lançaria.
Então, vamos de novo! — ele diz, servindo meu vinho com uma precisão quase militar. — Porque a vida é um c*****o, e a gente tá aqui pra tomar no cu e aceitar o que ela oferece: p*****a, cachaça e uns momentos de lucidez doentia!
Eu reviro os olhos, mas não consigo segurar o sorriso.
Você tá tentando me convencer que beber é a solução? — pergunto, sarcástica.
Não! — ele responde, com aquele sorriso s****o. — Beber é a desculpa pra gente continuar falando m***a sem medo de represália.
Dá um gole e, com um tom de voz conspiratório:
E, convenhamos, se a gente fosse só dor e tragédia, já teriamos falhado miseravelmente. O humor é o que sobra quando tudo mais vai pro c*****o! — Ele se joga de volta no sofá, com aquele olhar de quem vai soltar a próxima bomba.
Gargalho, como ele sempre me faz fazer.
Haja cu pra tomar, capitão! — Ergo minha taça em uma falsa comemoração e tomo alguns goles do vinho.
Ele faz o mesmo com o whisky dele.