Bruna despertou com um solavanco, o grito preso na garganta. Sua pele estava encharcada de suor, o coração martelando contra o peito como se tentasse escapar de dentro dela. Por um instante, não soube onde estava. O quarto escuro parecia o porão onde ficou presa por duas semanas. O cheiro de mofo. O som abafado de passos. A respiração de alguém atrás da porta.
Ela levou alguns segundos para reconhecer o teto de seu quarto, o abajur no canto, a almofada azul que Lorenzo lhe dera tempos atrás.
Mas o pesadelo continuava vivo dentro dela.
Suas mãos tremiam. Ainda sentia o peso da faca em seus dedos, o grito sufocado do homem que tentou se aproveitar dela, a expressão de choque congelada no rosto dele. O sangue escorrendo por entre seus dedos, o cheiro metálico invadindo seu nariz. Ela se lembrava de tudo. Do modo como o irmão gêmeo de JH a prendeu contra a parede, dizendo que ninguém sentiria falta dela. Das palavras asquerosas, do toque invasivo, da raiva cega que se acendeu em seu peito. E da faca enferrujada que ela agarrou às cegas, cravando no peito dele uma, duas, três vezes.
Ela não chorou naquela noite. Nem gritou. Só ficou parada, encarando o corpo no chão. O irmão de JH agonizando até parar de se mover.
E agora... todas as noites aquele momento voltava.
Bruna levantou-se devagar, as pernas trêmulas, e foi até o espelho. Observou o seu reflexo por longos segundos. Os olhos fundos, a pele pálida, as olheiras como manchas de sombra. Era ainda ela, mas, ao mesmo tempo, não era mais.
Ela passou os dedos pelos cabelos bagunçados, depois pelo próprio pescoço, como se pudesse apagar a sensação das mãos dele ali.
Sentia-se suja. Sempre suja.
Uma batida suave na porta a fez sobressaltar.
— Bruna? — Era Alex.
Ela demorou a responder. Por fim, abriu a porta com a expressão vazia.
— Tá tudo bem? — ele perguntou, preocupado. — Te ouvi se mexendo. Sonho r**m?
Ela apenas assentiu, tentando não desmontar.
— Quer conversar?
Bruna hesitou. Depois, abriu mais a porta e deu espaço para ele entrar.
Sentaram-se na beirada da cama, em silêncio.
— Foi sobre aquele dia? — Alex perguntou, com cuidado. Ele sabia. Não em detalhes, mas o suficiente.
Ela não respondeu. Mas o tremor em seus ombros dizia tudo.
— Eu não sabia como fazer parar, Alex — ela murmurou, enfim. — Ele ia me... Ele ia...
Alex fechou os olhos por um segundo, engolindo a própria raiva.
— Você fez o que precisava. Você salvou sua vida, Bru.
— E mesmo assim me sinto morta — ela sussurrou.
Ele passou um braço ao redor dela, puxando-a para perto.
— Você não está morta. Você tá aqui. E a gente vai continuar te puxando de volta todas as vezes que o passado tentar te levar.
Bruna encostou a cabeça no ombro do irmão, as lágrimas escorrendo em silêncio.
— JH quer vingança. Eu sinto isso. E agora ele sabe do Gabriel. Tá jogando comigo. Fazendo com que eu viva isso de novo. Eu tenho medo de dormir.
— Você não vai passar por isso sozinha — Alex disse, firme. — A gente vai proteger o Gabriel. E você. E, se esse desgraçado aparecer de novo, RR vai acabar com ele.
Bruna soltou um riso nervoso.
— Papai vai descobrir tudo. O que aconteceu. O que eu fiz. E vai me ver como uma decepção.
Alex a olhou com intensidade.
— Nosso pai pode ser um monstro pra muita gente, Bruna. Mas ele nunca seria pra você. Ele vai fazer o inferno que for pra manter você viva.
Ela não respondeu. Mas, naquele momento, permitiu-se acreditar.
O céu começava a clarear, tingindo o quarto de um azul melancólico. Bruna se deitou de novo, e Alex ficou ali até que ela pegasse no sono outra vez, sem pesadelos dessa vez.
Mas, mesmo adormecida, seu rosto carregava a tensão de quem sabe que a guerra ainda não acabou.
....
Na tarde seguinte, o céu estava encoberto e uma leve garoa persistente batia contra a janela do quarto de Bruna. Ela estava sentada em sua escrivaninha, enrolada em um moletom largo, tentando se concentrar numa leitura recomendada pela terapeuta, mas sua mente vagava, sempre voltando àquela sensação de perseguição. Como se cada passo dado estivesse sendo vigiado. Como se JH estivesse ali, apenas esperando o momento certo para atacá-la de novo, ou, pior, atacar quem ela amava.
O celular vibrou ao lado do livro. Um número desconhecido.
Ela hesitou antes de desbloquear. Mas havia algo, uma inquietação instintiva, que a fez tocar na tela. A mensagem era simples, mas imediatamente alarmante:
“Você não está louca. Ele está mesmo te observando. E não só você.”
Bruna congelou. Os dedos tremendo sobre a tela, o coração batendo no fundo da garganta. Por um segundo, achou que era mais uma ameaça. Mais um jogo mental. Mas, antes que pudesse reagir, outra mensagem surgiu:
“Eu não sou aliado dele. Pelo contrário. Sou VM. Falo do morro do Buraco Fundo. E quero te mostrar o que JH está tramando. Ele não vai parar até repetir com outro o que não conseguiu contigo.”
Ela leu e releu, o nome saltando como uma cicatriz aberta. Buraco Fundo. Era o morro rival ao do seu pai, RR. E VM… o nome não lhe era estranho. Vitor Mateus, se lembrava agora. Já o ouvira mencionado em reuniões à meia-voz entre RR e alguns dos homens dele, mas sempre com cautela. Um nome falado como quem segura uma arma destravada. Jovem, calculista, e com olhos em todos os becos. Se ele estava entrando em contato com ela, havia um motivo, e não seria apenas altruísmo.
Ainda assim… havia algo ali que a fazia prestar atenção.
Antes que pudesse bloquear ou ignorar, outra mensagem veio:
“Se quiser provas, te mando. Não tô te ameaçando. Só tô dizendo que você tá mais envolvida nisso do que pensa. E que Gabriel tá na mira.”
Bruna se levantou da cadeira como se algo a empurrasse. Começou a andar pelo quarto em círculos, o celular colado à mão. VM sabia sobre Gabriel. Sabia de JH. Sabia que ela estava assustada. E sabia... detalhes que ninguém, além dos envolvidos, poderia saber.
Ela se aproximou da janela e olhou para a rua molhada lá fora, os carros passando como vultos. Parte dela gritava para deletar tudo. Contar a Alex. Procurar RR. Mas outra parte, mais afiada, mais instintiva, queria saber mais. Precisava saber.
Então digitou, com os dedos ainda hesitantes:
“Mande as provas. Quero entender o que você sabe.”
A resposta veio quase instantaneamente.
“Bom. Porque se você quer proteger quem ama, vai precisar conhecer o inimigo por inteiro. JH tá se mexendo. E ele não tá sozinho.”
Bruna sentou-se de novo, sentindo a mente girar. O nome de JH pulsava como veneno em suas lembranças. Mas agora, era mais do que passado. Era presente. Era ameaça viva.
Se VM estava jogando um jogo, ela precisava aprender as regras.
E então, sem que percebesse, uma nova fronteira se traçava em sua vida: entre o medo e a vigilância, entre a verdade e a paranoia. E ela, pela primeira vez, decidiu atravessar, mesmo que isso significasse mergulhar mais fundo na escuridão.
....
O domingo nasceu com um calor incomum para a época. O céu limpo, azul como um lago invertido, parecia um convite. Desde cedo, Fernanda organizava tudo no quintal da casa para receber os parentes, os irmãos de RR, suas esposas, primos e primas de Bruna, além de alguns amigos próximos. A piscina já reluzia com o sol batendo, as mesas estavam cheias de travessas com salada, arroz, farofa e pães de alho.
A churrasqueira crepitava, com Alex assumindo a grelha como se fosse dono do cargo há anos.
Bruna observava a movimentação da varanda, sentada em uma espreguiçadeira, os pés descalços tocando o chão fresco. O cabelo ainda úmido do banho caía sobre os ombros. Usava um biquíni discreto e um kimono leve, tentando se sentir confortável em sua própria pele. Estava em processo de reconstrução, ainda frágil por dentro, mas havia algo naquele dia que a fazia respirar com um pouco mais de leveza.
— Não vai entrar na piscina? — perguntou Sabrina, já mergulhada até o pescoço, jogando água em Sophie, que gritava e ria.
Bruna sorriu.
— Tô pensando.
— Vem, Bruna! — chamou Sophia, acenando com uma boia em forma de flamingo. — A água tá uma delícia.
Ela hesitou, mas então sentiu uma sombra se aproximar. Lorenzo, com uma bermuda escura e uma camisa branca aberta, parou ao seu lado com um copo de suco.
— Quer que eu jogue você na água? — provocou, com um meio sorriso.
— Nem ouse — ela respondeu, mas com um brilho no olhar.
— Então vem por vontade própria. Tá todo mundo te esperando. E se você for, eu vou também.
Ela arqueou uma sobrancelha.
— Você ainda não entrou?
— Tô te esperando. — Ele estendeu a mão, e ela aceitou.
A água estava morna, acolhedora. Quando Bruna entrou, foi recebida com palmas e sorrisos. Gabriel já jogava vôlei com alguns primos, enquanto Guilherme, amigo de Alex, fazia piadas do lado de fora com o tio Jorge sobre quem tinha a barriga maior. Fernanda filmava tudo com o celular, emocionada com a filha finalmente sorrindo de verdade.
No meio das risadas, Guilherme se aproximou da borda da piscina com um prato de carne assada.
— Quem quer picanha direto da grelha, hein? Promoção: se sorrir, ganha um pedaço extra.
— Tá roubando o cargo do Alex, hein — disse Sabrina, nadando até ele.
— Eu sou só o garçom da alegria — respondeu ele, entregando para cada um um pedaço e recebendo abraços e piadas em troca.
Bruna, encostada na borda ao lado de Lorenzo, observava tudo. Pela primeira vez em semanas, ninguém falava em ameaças, mensagens ou lembranças. Aquela tarde parecia suspensa no tempo, como um retrato antigo guardado com carinho.
— Sabe que isso parece até mentira? — disse ela, baixinho.
— O quê? — Lorenzo perguntou.
— Isso aqui. Minha família inteira rindo, você aqui, ninguém chorando... Parece que por um momento, tudo ficou calmo.
— E às vezes, Bruna, é só isso que a gente precisa. Um respiro entre as tempestades.
Ela olhou para ele, sentindo o peito aquecer. E naquele instante, percebeu que, mesmo com todo o medo e escuridão à espreita, ainda existiam instantes assim. Momentos que não podiam ser roubados. Que não podiam ser apagados.
Ela sorriu, deixando a água encobrir seu corpo mais uma vez.