Naquela noite, o sono veio aos poucos, como se soubesse que precisava ser gentil com ela. O colo da mãe era como um abrigo antigo, esquecido pelo tempo, mas ainda firme o suficiente para amparar a menina ferida que Bruna escondia de todos.
Quando acordou, Fernanda já havia se levantado, mas deixado um bilhete carinhoso na mesa do café:
“Você é mais forte do que pensa. E não precisa enfrentar nada sozinha.”
Bruna leu e releu aquelas palavras, com os dedos trêmulos, como se precisasse absorver cada letra. Respirou fundo. Precisava agir. Não podia mais fingir que aquilo estava sob controle.
No fim daquela manhã, chamou Alex até o quintal. Ele estava em silêncio desde que tudo tinha acontecido, como se estivesse esperando que ela quebrasse o gelo.
— Eu quero conversar com o pai — ela disse, sem rodeios.
Alex a encarou por um segundo.
— Sobre... as ameaças?
Ela assentiu. A expressão dele se fechou.
— Você sabe o que isso significa, Bruna? Colocar RR no meio não é qualquer coisa. A gente não tá falando só do nosso pai. É o RR. Ele vai querer respostas. Vai querer ação.
— E talvez seja disso que eu esteja precisando — ela respondeu com calma. — Você sabe o que aconteceu comigo... mais do que ninguém. E agora, estão ameaçando o Gabriel. Se eu ficar calada, ele pode ser o próximo.
Alex a olhou com pesar. Um misto de orgulho e medo. Ele não queria vê-la revivendo os traumas, mas também sabia que ela não era mais a mesma garota assustada de antes.
— E se ele não souber lidar com isso? — perguntou. — E se... RR resolver agir com as próprias mãos?
— Então alguém vai pagar pelo que fez — ela respondeu. — Mas eu não vou mais me esconder.
Alex assentiu, depois de um tempo em silêncio.
— Eu vou com você. A gente fala com ele juntos. Só me promete que, se as coisas ficarem pesadas... você não vai voltar a se fechar.
Bruna o abraçou.
— Eu prometo.
Nos dias seguintes, Bruna seguiu firme na recuperação. Tomava os remédios, fazia as sessões de terapia e, aos poucos, recuperava o apetite, mesmo com recaídas silenciosas que ainda a assombravam.
Lorenzo continuava presente. Levava livros, filmes, até desenhou para ela um pequeno quadro com o verso:
“Às vezes, é no caos que a gente encontra quem realmente é.”
Bruna pendurou o presente na parede, bem acima da escrivaninha.
Na terceira visita, Lorenzo notou o olhar dela mais calmo, embora ainda distante.
— Tem dias que eu acordo e acho que vai dar tudo certo — ela confessou, deitada no sofá, com a cabeça no colo dele. — Mas em outros... parece que só tô afundando mais devagar.
— E mesmo assim você continua tentando — ele respondeu, acariciando seus cabelos. — Isso já é coragem.
Ela suspirou.
— Você acha que dá pra sair disso inteira?
— Eu acho que você já saiu uma vez. E vai sair de novo. Talvez com algumas cicatrizes, mas... quem não tem?
Ela sorriu, pela primeira vez sem esforço.
— Você não tem ideia do quanto eu gosto de ter você por perto.
— Eu tenho uma ideia sim — ele respondeu. — Porque eu gosto de estar aqui. E vou continuar vindo, mesmo que o RR me olhe como se quisesse me enterrar embaixo do quintal.
Bruna riu alto, e Lorenzo beijou sua testa com carinho. Naquele momento, mesmo com tudo, havia paz.
No mesmo dia, Sabrina apareceu com Sophie e Sophia. As três chegaram com sacolas de doces, sucos e uma caixa de tinta para pintar camisetas.
— A gente decidiu que precisava ocupar a mente — disse Sophia, sorrindo.
— E fazer algo ridículo juntas sempre ajuda — completou Sophie, já tirando as tintas da sacola.
Sabrina estava visivelmente mais leve. A morte de Reinaldo, embora traumática, havia finalmente encerrado o ciclo de terror em que ela vivia. Os olhos já não fugiam de contato, e o sorriso voltava aos poucos.
— Bruna... obrigada por ter ficado do meu lado — ela disse, com a voz embargada. — Mesmo com tudo que você também tava passando.
— Você sempre foi minha amiga — respondeu Bruna, tocando sua mão. — E agora a gente se tem mais do que nunca.
— Família escolhida — completou Sophie, puxando as três para um abraço.
Pintaram camisetas com frases de apoio e símbolos de força. Riram. Choraram. Limparam tudo com jornal velho e gargalhadas.
Bruna sentiu algo se reorganizando dentro dela. Uma espécie de costura interna, lenta, mas firme.
Naquela noite, enquanto todos dormiam, ela sentou na cama com o celular na mão. Os dedos tremiam, mas o coração estava mais firme do que da última vez.
Abriu as mensagens arquivadas. Leu cada uma, como se procurasse entender a mente por trás do terror.
A última ainda estava ali:
“Você saiu viva, mas os que você ama ainda estão marcados. Gabriel é o próximo.”
O medo voltou, mas desta vez ela não fechou os olhos. Apenas respirou fundo e escreveu uma resposta:
“Se você quer me atingir, venha direto. Porque agora eu não estou mais sozinha.”
Enviou. Esperou.
Nada voltou.
Mas ela sabia. Aquilo era só o começo.
Guardou o celular, deitou, e antes de dormir, pegou o bilhete de Lorenzo outra vez.
“Se você ainda estiver com medo, segura minha mão. Tô aqui.”
Bruna sorriu, fechou os olhos, e finalmente adormeceu.
...
Naquela noite, dormiu mais profundamente. Mas foi então que vieram os sonhos.
Era escuro. Um porão úmido, o cheiro de mofo e sangue misturado. Bruna estava amarrada em uma cadeira, os pulsos doloridos, a boca cortada. A luz oscilava no teto. E então, ele apareceu. O irmão gêmeo de JH. Alto, com os olhos vazios, sorrindo com a crueldade de quem tem o controle.
Ela gritava, mas ninguém ouvia. Tentava se soltar, mas as cordas cortavam sua pele.
— Você não é ninguém aqui — ele dizia. — Nem seu pai pode te salvar agora.
A lembrança se fundia ao pesadelo. A faca que ele carregava. As palavras obscenas. O toque repulsivo.
Mas então, o momento exato. O grito. O impulso. A faca que ela conseguiu pegar quando ele a soltou, confiante demais. E o golpe. O som seco. O sangue. O corpo caindo.
Ela gritava no sonho. Gritava como se nunca fosse parar. Acordou em um pulo, encharcada de suor, os olhos arregalados.
Estava segura. Mas o passado estava ali. Sempre ali. Bruna levou as mãos ao rosto. Tremia. A lembrança era tão vívida que quase podia sentir o cheiro da morte. Ela respirou fundo, tentando se acalmar.
“Você sobreviveu”, pensou. “Você fez o que precisou para viver.”
Mas viver, às vezes, era mais difícil do que matar.
E com esse pensamento, ela se encolheu novamente. Sabia que não podia fugir para sempre.
Mas por enquanto... precisava apenas suportar mais uma noite.
Bruna estava deitada de lado, encarando a parede como se fosse possível encontrar respostas ali. O quarto estava em silêncio, exceto pelo leve zumbido do ventilador e o som do seu coração inquieto. Ela se sentia presa em mil pensamentos, sobre a amiga, sobre si mesma, sobre tudo que parecia pesar mais do que devia.
O celular vibrou na cabeceira. Ela esticou o braço, sem muita vontade, mas sorriu de leve ao ver o nome na tela:
Lorenzo 💬
“Você já percebeu que a gente tem um relacionamento super sério de amizade colorida imaginária?”
Bruna soltou um risinho nasal, digitando de volta:
Bruna 💬
“Colorida? No máximo preto e branco. Ainda tô esperando a parte da cor.”
A resposta veio em segundos.
Lorenzo 💬
“A cor tá vindo aí, só atrasou porque o cupido pegou trânsito.”
Bruna 💬
“Acho que o cupido caiu da moto e esqueceu a nossa entrega.”
Lorenzo 💬
“Ou talvez ele esteja fazendo suspense porque sabe que se a gente ficar junto, o mundo explode de tanta química.”
Ela riu. Um riso verdadeiro, o primeiro da noite. Enterrou o rosto no travesseiro por um segundo, tentando esconder o sorriso, mesmo que não houvesse ninguém ali para ver.
Bruna 💬
“Modesto como sempre.”
Lorenzo 💬
“Só tô constatando fatos. Inclusive, estou aqui, às 22h43, me sacrificando emocionalmente pra manter você distraída. Missão: tirar a mente da senhorita Bruna da bad.”
Bruna 💬
“E como exatamente pretende fazer isso?”
Lorenzo 💬
“Com charme, senso de humor questionável e lembrando que você sorri diferente quando lê minhas mensagens. Admito ou tô errado?”
Bruna suspirou, agora deitada de costas, o celular repousando sobre o peito. Seus dedos hesitaram antes de responder. Ele sempre tinha esse efeito: arrancar sorrisos nos piores dias, ser abrigo sem invadir, presença sem exigir.
Bruna 💬
“Talvez você esteja certo. Só talvez.”
Lorenzo 💬
“O ‘talvez’ já é uma vitória. Amanhã cobro um beijo de agradecimento pela missão bem-sucedida. Ou dois. Só pra garantir.”
Ela riu de novo, sentindo o coração mais leve. Ainda havia muito que ela não entendia, entre eles, nela mesma, no que sentia, mas naquela noite, por alguns minutos, foi como se tudo ficasse em silêncio, exceto aquela conversa leve que não precisava de muito para fazê-la respirar melhor.
E antes de dormir, digitou mais uma mensagem:
Bruna 💬
“Obrigada por ser meu caos preferido. Boa noite, Lorenzo.”
A resposta veio quase instantânea:
Lorenzo 💬
“Boa noite, Bruna. Sonha comigo. Ou com a versão 2.0 mais romântica de mim.”
Ela dormiu com um sorriso nos lábios.