Naquela manhã abafada, Bruna acordou com o som da campainha. A cabeça doía, resquícios da crise da noite anterior. Mas se obrigou a levantar e descer até a sala. Quando abriu a porta, deu de cara com Sophia e Sophie sorrindo.
— A gente pode entrar? — perguntou Sophia, já espiando por cima do ombro de Bruna.
— Claro, entrem. — disse Bruna, dando espaço.
As duas carregavam sacolas com doces, um lanche caseiro e uma caixa de bombons. Sophie olhou para ela com ternura.
— A gente veio ver a Sabrina. Soube que ela... tá passando por umas coisas.
Bruna assentiu com um sorriso triste.
— Ela tá no quarto, pode subir. Vai fazer bem pra ela ver vocês.
Assim que Sophia e Sophie bateram à porta e entraram no quarto de Sabrina, o clima mudou completamente. A menina estava deitada, de moletom, com os olhos fundos. Mas ao ver as duas amigas, esboçou um sorriso genuíno.
— Vocês... vieram?
— É claro, né? — disse Sophie, sentando ao seu lado. — Tu achou que a gente ia te deixar sozinha?
— Trouxemos chocolate, fofoca, carinho, e nenhuma pergunta forçada. — completou Sophia.
Sabrina riu, mesmo com lágrimas nos olhos.
— Eu nem sei o que dizer...
— Não precisa dizer nada agora. — disse Sophia, pegando sua mão. — Só deixa a gente ficar aqui com você. Como antes.
E assim ficaram, as três sentadas, falando de coisas bobas, relembrando festas antigas, histórias engraçadas do colégio, e até as paixonites antigas que pareciam tão distantes agora. Sabrina chorou de novo — mas dessa vez, de alívio.
Ali, pela primeira vez em dias, ela se sentiu menos sozinha.
Enquanto isso, Bruna lavava a louça na cozinha, mas a mente estava a quilômetros de distância. As imagens do passado invadiam sua cabeça como estilhaços. A voz dele. O quarto escuro. O cheiro de mofo e cigarro barato.
Ela se sentia sufocada.
As mensagens que vinha recebendo tinham se tornado mais ameaçadoras. Mencionavam nomes. O nome dele: Gabriel.
“Gabriel será o próximo.”
Bruna sentiu o corpo inteiro enrijecer. O medo, que já era parte da rotina, agora queimava no estômago como ácido. Seu irmão gêmeo. A outra metade dela. Se alguém tocasse nele…
Com o coração aos pulos, ela largou tudo e subiu apressada até o quarto da mãe. Fernanda estava sentada, lendo. Ao ver Bruna entrar sem dizer nada, seu semblante se suavizou.
Bruna não falou. Só caminhou até ela, como fazia quando era criança, e deitou no colo da mãe. Sentia vergonha, mas a necessidade de um colo seguro era maior que qualquer orgulho.
Fernanda passou a mão devagar nos cabelos dela, em silêncio.
— Só fica aqui... — murmurou Bruna, com a voz embargada.
E ficou. De olhos fechados. Sentindo o calor das mãos da mãe e segurando as lágrimas, como quem segura um mundo inteiro pra não desabar. Era como se, naquele silêncio, Fernanda dissesse: “Eu tô aqui. Mesmo sem entender, eu tô aqui.”
Ali, Bruna não era a garota forte que todos achavam. Era só uma filha. Uma filha com medo.
...
Mais tarde, o som da campainha novamente. Bruna desceu devagar, esperando outro amigo de Sabrina, mas era Juliana. O coração de Bruna deu um aperto ao vê-la ali.
Juliana era sua amiga desde antes da adolescência. Tinham compartilhado segredos, risos, crises. E Bruna sentia culpa. Sabia do que havia acontecido entre ela e Gabriel. A aposta. A decepção. O m*l-entendido sobre outra garota. Tudo aquilo tinha deixado cicatrizes nas duas.
— Oi, Ju... — disse Bruna, tentando sorrir. — Quer ver a Sabrina?
— Na verdade, eu vim falar com o Gabriel.
Bruna fez que sim com a cabeça, meio sem graça.
— Ele tá no quarto. Vou chamar.
Gabriel estava mexendo no computador, distraído, mas levantou na hora quando ouviu quem era.
No andar de baixo, os dois se encontraram na sala. Bruna ficou perto, mas respeitou o espaço.
Juliana parecia nervosa, mas determinada.
— Eu sei que não é o melhor momento, Gabriel. Mas eu precisava vir.
Ele assentiu, tentando manter a calma.
— Fala.
— Eu fiquei m*l. Achei que a gente ia se entender, depois de tudo, e de repente… parece que voltamos pra estaca zero. Eu... me afastei porque achei que você já tava com outra. Não aguentei sentir que tava sendo opção. E pior — que tudo foi uma aposta.
— Juliana, eu juro que me arrependi. Eu fui i****a. Mas depois eu me importei. Só não soube lidar. Não sei lidar nem agora.
Ela respirou fundo, desviando o olhar.
— E eu não sei se dá pra voltar. Mas eu queria pelo menos te entender de novo. Parar de sentir raiva.
Gabriel olhou para ela com sinceridade.
— Se a gente não conseguir voltar... pelo menos quero que você saiba que, no meio daquela bagunça, o que eu senti por você foi
real. Mesmo se começou do jeito errado.
Juliana sorriu com tristeza.
— Às vezes, o certo nasce do torto. Mas... vamos ver.
Bruna, que observava de longe, teve vontade de abraçar os dois. E teve vontade de chorar também. Por Juliana. Por Gabriel. Por ela mesma.
Porque naquele momento, a verdade era que Bruna estava à deriva. E ninguém sabia. Ninguém via. Só ela sentia o peso invisível das ameaças, o enjoo constante, a comida rejeitada, o corpo cansado de fingir. E o medo. O medo que crescia dentro do peito, ameaçando engolir tudo.
Mas agora, deitada no colo da mãe, vendo os amigos tentando se reconstruir, Bruna sabia: ela ainda estava lutando.
Mesmo em silêncio.
Mesmo sozinha.
...
Depois de alguns dias ela visitou a casa de lorenso
Bruna encarava a janela, o luar refletido em seus olhos. Seus dedos brincavam nervosos com a barra da camisa dele, enquanto Lorenzo a observava em silêncio. Ele sabia, ela ainda carregava sombras do passado, cicatrizes que ninguém via, dores que não se nomeavam.
— Tem certeza? — ele perguntou, a voz baixa, quase um sussurro.
Ela virou-se devagar, o olhar firme, mas com um brilho vulnerável. Aproximou-se, repousando as mãos no peito dele.
— Pela primeira vez, sim. Eu quero... sentir. Me permitir.
Lorenzo a envolveu com cuidado, como se ela fosse feita de vidro. Beijou sua testa, depois seu queixo, como quem pede permissão. Cada gesto era um convite à confiança, não à pressa.
Eles se deitaram juntos, os corpos se ajustando num encaixe natural, como se o mundo lá fora não existisse. Não havia pressa, nem palavras demais, apenas toques suaves, respirações entrecortadas e corações acelerados.
Bruna se entregou aos braços dele como quem finalmente se liberta de um peso. E Lorenzo a acolheu como quem guarda algo precioso demais para ser perdido.
Naquela noite, eles não fizeram apenas amor. Compartilharam silêncio, cura e a promessa de que, mesmo com todas as dores, ainda era possível recomeçar.
...
O cheiro da comida ainda pairava no ar. A mesa estava posta, com pratos cheios e vozes misturadas em conversas soltas. A televisão da sala ligada no volume baixo preenchia os espaços entre os talheres batendo nos pratos.
Bruna estava ali, sentada à mesa com a família. Sorria de leve, respondia algumas perguntas com um aceno de cabeça, fazia piadas leves quando necessário. O prato à sua frente estava razoavelmente cheio, arroz, feijão, frango grelhado e um pouco de salada.
Ela sabia equilibrar. Nem demais para chamar atenção, nem de menos para levantar suspeitas.
A cada garfada, sentia o estômago revirar, não de fome, mas de ansiedade. A comida pesava, não no corpo, mas na mente. A cada mastigada, ouvia um coro de pensamentos cruéis: "Você perdeu o controle. Vai engordar. Eles vão perceber quem você realmente é."
Ela engoliu. Sorriu. Bebeu um gole d’água.
— Tá gostoso, né, filha? — disse Fernanda, a mãe, sem tirar os olhos do próprio prato.
— Uhum — Bruna respondeu, forçando um sorriso rápido. — Como sempre.
Ela terminou de comer antes dos outros. Limpou a boca com o guardanapo, pousou os talheres com cuidado ao lado do prato e levantou-se com naturalidade.
— Vou no banheiro rapidinho. Já volto.
Saiu sem pressa, sem pressa demais. Sem chamar atenção.
Caminhou até o corredor. O coração acelerado. Entrou no banheiro e trancou a porta devagar, girando a chave como quem fecha o mundo lá fora.
Apoiou as mãos na pia e encarou o próprio reflexo no espelho. Os olhos estavam calmos por fora. Por dentro, em ruínas.
Ela sabia o que vinha a seguir.
Abriu a torneira. O som da água correndo abafava o que ninguém podia ouvir. Ajoelhou-se diante do vaso sanitário, os joelhos já acostumados com aquela posição. E, com os dedos tremendo, iniciou o ciclo, c***l, silencioso, secreto.
Quando terminou, sentou-se no chão frio por alguns segundos. Respirou fundo, o peito arfando levemente. Enxugou os olhos com a manga da blusa, levantou-se devagar e lavou as mãos, o rosto, a boca. Escovou os dentes com força demais. Passou colírio nos olhos vermelhos. Perfume no pulso. Treinou um sorriso no espelho. Saiu do banheiro como se nada tivesse acontecido.
— Tô pensando em fazer bolo mais tarde, quem quer? — disse ao entrar na cozinha, tentando soar animada.
— Eu topo! — disse Alex.
Bruna riu.
E, mais uma vez, ninguém viu.