A luz fraca de uma única lâmpada pendurada no teto oscilava, lançando sombras dançantes nas paredes descascadas. O cheiro de ferrugem e poeira preenchia o ar, mas nenhum dos dois parecia se importar. Estavam ali por um motivo muito maior que conforto.
— Ele está onde deveria — disse o mais alto, encostado na parede com os braços cruzados. O tom era calmo, porém firme. — Tão bem posicionado que ninguém desconfia. Nem ela. Nem o pai. Nem os irmãos.
O outro, sentado sobre uma pilha de caixotes, olhava um mapa amassado, marcado por pontos e círculos desenhados à caneta vermelha.
— Você tem certeza? — ele questionou, levantando o olhar com desconfiança. — Um passo em falso e tudo desmorona. A menor brecha... e eles vão farejar. Aqueles caras são treinados para isso.
— Justamente por isso foi ele. O único capaz de se infiltrar sem levantar suspeita. Está lá dentro. Vive com eles. Senta à mesma mesa. Ouve tudo. E ninguém — ninguém — percebeu a f***a por onde ele entrou.
O silêncio caiu pesado por um instante. O som da lâmpada rangendo no teto era o único ruído.
— E a garota?
— Instável. Confusa. Perdida dentro da própria cabeça. Acredita que os inimigos estão nas ruas, quando o verdadeiro está a poucos passos dela.
O homem de pé sorriu de lado, um sorriso amargo.
— Irônico, né? Depois de tudo, ela ainda confia... exatamente onde não devia.
— É questão de tempo. Quando a gente puxar o fio certo... tudo vai desmoronar. E aí, nem o pai dela vai conseguir proteger o que restar.
— E se ela resistir?
— Vai quebrar. Todo mundo quebra. A diferença é que ela... vai cair sozinha. E nem vai entender como deixou isso acontecer.
Eles trocaram um olhar firme, selado não por confiança, mas por propósito. Havia algo frio ali, quase pessoal.
O homem sentado se levantou lentamente, dobrando o mapa.
— Então seguimos com o plano. Sem pressa.
— Sem erros — respondeu o outro.
E com um último olhar para o escuro além da porta, saíram por caminhos opostos. Deixando para trás o eco de algo grande, prestes a acontecer.
...
A manhã seguinte começou com um calor abafado e o céu carregado de nuvens cinzentas, como se o mundo inteiro também estivesse prestes a desabar.
Bruna estava na varanda da casa, observando a rua deserta enquanto passava o dedo distraidamente pelo celular. Pensava na mensagem da noite anterior, nas palavras venenosas que escavavam o seu passado como uma faca na carne.
"Você sabe o que fez. E o que foi feito com você."
Aquela frase era uma ameaça, mas também uma lembrança.
O sequestro. A sala escura. As correntes frias. A voz dele... do irmão gêmeo daquele desgraçado que comandava o morro rival ao de RR. Ela lembrava dos olhos dele, frios como vidro quebrado, e do medo que sentiu ao perceber que ele a queria para punir o pai dela. Mas também lembrava de JH. Da forma como ele apareceu, enfrentando tudo, mesmo sabendo o risco. Ele a tirou de lá. E pagou o preço por isso.
Agora, JH queria vingança. E alguém estava ajudando a espalhar isso pelas sombras.
Ela foi despertada dos seus pensamentos pela porta se abrindo atrás dela. Alex saiu, ainda meio sonolento, e se sentou ao seu lado.
— Dormiu melhor? — ele perguntou.
Bruna fez que sim com a cabeça, mas era mentira.
— E você?
— Tentei. Mas... fiquei pensando na Sabrina. E em tudo que ainda pode acontecer com ela.
Bruna olhou de lado.
— Você gosta dela, né?
Alex sorriu fraco.
— Desde o primeiro dia. Ela ia me pedir em namoro, você sabia? Um dia antes de tudo isso acontecer. Lorenzo me contou. E eu estava me preparando pra fazer o mesmo.
— Então por que não fala com ela?
— Porque agora tudo está uma bagunça. Ela tem medo. Medo de confiar, de sonhar... E eu tenho medo de machucar mais ainda. Não quero ser mais um peso para ela.
Bruna segurou a mão do irmão.
— Alex, você nunca foi um peso. Às vezes o que a gente precisa não é que as coisas estejam perfeitas. Só que elas sejam reais. Fala com ela. Não deixa o medo decidir por vocês.
Ele respirou fundo e assentiu. Sabia que Bruna tinha razão.
— E sobre o RR? — ele perguntou.
Bruna se enrijeceu.
— Ele disse que já estava de olho no Reinaldo. Estava só esperando um vacilo. E agora que a gente trouxe Sabrina para cá, ele vai agir.
— E você acredita que ele vai conseguir resolver isso?
Bruna olhou para o horizonte.
— Acreditar? Eu não sei. Mas sei que, se RR quer alguém fora do caminho, essa pessoa desaparece.
Mais tarde, dentro da casa, RR estava no seu escritório. O ar ali cheirava a cigarro e papel antigo. Mapas da região, fotos, registros. Ele era mais que um homem influente, era um estrategista. Quando Bruna entrou, ele já sabia do que se tratava.
— O Reinaldo. — ele disse, sem levantar os olhos. — Já falei com um dos meus. A polícia vai bater lá ainda essa semana.
Vazamento “anônimo”. Ameaça direta contra menor. A mãe não vai abrir a boca. Mas ele vai se f***r. E não vai ser leve.
Bruna ficou calada por um momento.
— Você vai... sumir com ele?
RR finalmente ergueu o olhar.
— Isso depende. Se ele correr, some. Se enfrentar, apanha até entender. Mas antes, quero que veja o que tem a perder. A justiça oficial não resolve nada nesses casos. E eu não gosto de quem encosta em criança.
Bruna assentiu. Tinha um misto de alívio e receio. Sabia do que o pai era capaz, e de que às vezes, o preço da paz era alto demais.
Antes de sair, ela se virou:
— Recebi outra mensagem. Estão me ameaçando, pai. Com coisas do passado. Fotos... do sequestro. De antes.
Os olhos de RR se estreitaram.
— Eles querem desestabilizar. Mas só consegue te quebrar quem conhece teus pontos fracos. E só conhece quem teve acesso. Isso não é coincidência. Pode ser JH.
— Eu achava que ele estava do nosso lado...
— Ele estava. Mas quando o irmão morreu, o lado dele mudou. O sangue é mais forte do que qualquer lealdade.
Bruna sentiu o estômago revirar.
— E se ele estiver voltando?
— Então vamos estar prontos. Você tem que estar pronta também.
Ela assentiu, mas o medo a perseguia como uma sombra.
Naquela noite, enquanto Lorenzo distraía Sabrina com um jogo de cartas na sala e Alex arrumava a cozinha em silêncio, Bruna se trancou no quarto fingindo uma dor de cabeça. Ela precisava de espaço. E mais do que isso: precisava parecer bem.
De frente para o espelho, ela afrouxou o moletom que vestia. O suor frio escorria pelas costas. Estava enjoada de novo. O estômago embrulhado por mais um dia sem se alimentar direito. Tinha tomado café de manhã, depois uma dose escondida de remédio que prometia acalmar os tremores. Mas nada bastava. Nunca bastava.
A lembrança daquele quarto onde ficou trancada por duas semanas ainda a assombrava. As vozes. O cheiro da madeira úmida. A risada dele. E a própria voz presa na garganta, sufocada pelo medo de não voltar. De morrer ali.
Ninguém sabia. Nem RR. Nem Gabriel. Nem Lorenzo. Ela não tinha coragem de contar. Era como se, ao dizer em voz alta, tudo aquilo ganhasse vida de novo. E ela não estava pronta para reviver. Só Alex sabia de parte. Da bulimia. Da fase mais pesada das drogas. Mas mesmo ele pensava que ela já estava melhor.
E era assim que ela queria que fosse. Que pensassem que estava melhor.
Até que o celular vibrou.
Ela sabia o que era antes mesmo de olhar. As ameaças haviam começado discretas, mas se tornavam mais ousadas, mais diretas. Sempre de números diferentes. Sempre tocando nas feridas certas.
Ela desbloqueou a tela e leu:
“JH está mais perto do que você pensa.”
“RR não pode proteger todos.”
“Gabriel será o próximo.”
Bruna sentiu um calafrio percorrer o corpo inteiro. Gabriel. Seu irmão gêmeo. A outra metade dela.
— Não... — sussurrou, com a respiração acelerada.
A mão tremia, mas ela apertou o botão de apagar a mensagem, como se isso pudesse deletar o medo também. Sabia que não podia contar para ninguém. Se RR descobrisse, ele agiria. Mas agir significava guerra. E guerra trazia mortes.
Ela estava cansada de mortes.
Com passos apressados, foi até o banheiro. Trancou a porta. Se ajoelhou diante da privada. E então, tudo o que não tinha comido naquele dia, e tudo o que sentia, voltou como um grito mudo. Era assim que ela lidava: colocando pra fora o que não conseguia dizer.
Minutos depois, lavou o rosto, escovou os dentes e olhou para si mesma no espelho. Os olhos vermelhos. A pele mais pálida do que gostaria de admitir. Mas o sorriso... o sorriso falso estava de volta.
Ela saiu do banheiro e deitou-se. Abriu o bloco de notas no celular e começou a escrever o que não podia contar a ninguém. Era seu jeito de não enlouquecer. E ali, entre palavras que ninguém leria, deixou escapar um pensamento:
“Talvez eu não esteja salvando ninguém. Talvez só esteja adiando o fim.”
Mas mesmo assim, ela resistia. Porque era o que sabia fazer melhor. E porque, se alguém ousasse tocar em Gabriel, ela mesma seria a guerra.