Capítulo 12

1387 Words
A noite seguia silenciosa após o fim da festa na quadra. Bruna caminhava pela rua ainda com o som abafado das risadas e músicas ecoando na cabeça. Todos estavam lá. Lorenzo, Alex, os meninos, as meninas… Menos Sabrina. Ela tentou não pensar muito sobre isso durante a festa, mas agora que estava sozinha, a preocupação pesava no peito como uma pedra. Sabrina nunca faltava a uma festa, principalmente quando ela mesma ajudava a organizar tudo. Era o tipo de garota que sorria até quando estava exausta. Faltas não eram do feitio dela. Bruna pegou o celular do bolso da jaqueta jeans e digitou uma mensagem: — "Ei, Sabrina. Tá tudo bem? Você não apareceu na quadra hoje, fiquei preocupada. Me avisa quando puder." Ela enviou e ficou olhando para o “visualizado” que nunca chegava. Resolveu mudar o caminho e ir até a casa da amiga, mesmo que estivesse tarde. Caminhou com passos rápidos, o coração martelando. Ao chegar na calçada de Sabrina, notou que a luz da sala estava acesa, mas as janelas fechadas. Tocou a campainha, sem resposta. Então deu a volta e bateu discretamente na janela do quarto. — Sab? É a Bru... — ela sussurrou. Houve um silêncio antes de a cortina se mover e, finalmente, Sabrina aparecer. O rosto da garota estava coberto por uma meia-luz, mas não o suficiente para esconder o olho roxo e o corte no lábio. Bruna congelou. — Meu Deus… — sussurrou, enquanto Sabrina abria a janela e deixava uma lágrima escorrer. — Não fala nada, por favor... — a voz de Sabrina era baixa, tremida. — Eu não queria que ninguém visse... — Você tá machucada. Quem fez isso com você? Sabrina hesitou, mas Bruna já sabia. Aquela expressão de medo, a tentativa de esconder, o jeito como ela tremia... Era o padrasto, Reinaldo ou Naldo como todos o chamavam. Um homem severo, de poucas palavras e muitos silêncios pesados. — Ele estava bêbado de novo. Eu só... derrubei o copo na sala. Foi um acidente. Bruna sentiu a raiva queimando por dentro. — Isso não justifica nada. Você não devia passar por isso. Você tem que sair daqui. Sabrina balançou a cabeça, desesperada: — Eu não tenho pra onde ir, Bruna! E não quero que isso vire fofoca de escola, por favor... Bruna estendeu a mão: — Então vem comigo. Agora. Você pode dormir lá em casa hoje. Amanhã a gente vê o que fazer. Mas você não vai ficar aqui sozinha com ele. Na manhã seguinte, Bruna chamou Lorenzo e Alex no portão. Explicou tudo. Eles se sentaram os quatro na varanda da casa dela, em silêncio, até que Alex falou: — Isso não é uma coisa pequena. Isso é abuso. A gente precisa fazer algo, de verdade. Lorenzo olhou para Sabrina com delicadeza: — Sab, você quer denunciar? Se a gente for com você, talvez não seja tão difícil. — Não posso. Se eu denunciar agora, talvez ele seja preso, mas... e depois? Ele volta, e vai estar pior. E minha mãe não faz nada. Ela finge que não vê. Bruna segurou firme a mão da amiga. — Então a gente vai pensar em outra solução. Nem que seja temporária. Você não tá sozinha. Sabrina chorou, desta vez sem tentar esconder. — Eu achei que tinha que aguentar. Que não ia adiantar contar pra ninguém... Eu sinto tanta vergonha. Alex balançou a cabeça, com o olhar firme: — Não sente. A vergonha é dele. O erro é dele. Você só quer viver em paz, isso não é pedir muito. Lorenzo completou: — Enquanto a gente respira, você tem um lugar. A gente vai proteger você, tá? Bruna se inclinou, abraçando Sabrina, e os outros dois se juntaram. Um abraço apertado, pesado, mas cheio de verdade. Pela primeira vez em muito tempo, Sabrina sentiu que tinha chão. Mais tarde, Bruna e Alex estavam no quintal, sentados no degrau perto das plantas de dona Inês. — Você acha que a gente deveria falar com o RR? — Bruna perguntou, num tom cauteloso. Alex olhou para o céu, pensativo: — Não sei se seria seguro. Mas... ele é nosso pai. E mesmo que ele não saiba tudo, ele precisa saber disso. Talvez ele consiga intervir sem chamar atenção demais. Ele tem contatos, conhece gente no conselho tutelar... — E se ele achar que estamos nos metendo demais? — Bruna perguntou. — Então a gente lida com isso depois. Mas agora o que importa é a Sabrina. E se tem alguém que pode fazer algo sem deixar isso explodir, é ele. Bruna assentiu. — Amanhã de manhã, a gente fala com ele. Juntos. Alex sorriu de lado. — Nunca pensei que uma conversa com nosso pai pudesse parecer uma bomba-relógio. Bruna riu, nervosa: — É, bem-vindo ao clube das decisões difíceis. Era quase meia-noite quando Bruna, já de pijama, passou o creme no rosto diante do espelho. A casa estava silenciosa, e Sabrina dormia no quarto ao lado. Ela pegou o celular para ver se tinha alguma resposta dos grupos da escola, mas encontrou uma notificação de número desconhecido. "Você pode enganar seus amigos, Bruna. Mas seu passado está bem mais perto do que você pensa." A mensagem veio com uma foto antiga, de quando ela era criança, brincando no quintal da antiga casa, uma imagem que ela nunca tinha visto antes. Outra mensagem chegou em seguida: "Se você continuar se metendo, quem vai pagar são eles. Sabrina é só o começo." O sangue de Bruna gelou. Ela ficou parada por alguns segundos, encarando a tela com os olhos arregalados. Sua respiração se tornou pesada, e as mãos começaram a suar. Era como se o passado, aquele que ela lutava para esquecer, tivesse batido à porta sem aviso. — Quem é você? — ela digitou, mas não havia mais ninguém do outro lado. A pessoa tinha apagado o número ou bloqueado. A ameaça ficou suspensa no ar, como uma sombra, prestes a cair sobre todos que ela amava. Bruna apagou as luzes e se deitou, mas não conseguiu fechar os olhos. Sua mente girava como um redemoinho. Pela primeira vez, ela percebeu que os segredos que guardava talvez não fossem só dela. E que, se quisesse proteger Sabrina, Alex, Lorenzo, teria que confrontar mais do que um pai abusivo. Teria que enfrentar a si mesma. ... O silêncio da noite parecia gritar dentro do quarto. A única luz vinha da rua, filtrada pelas persianas entreabertas. Bruna estava deitada, mas não conseguia fechar os olhos. O ventilador girava lentamente no teto, e o som monótono era o único que preenchia aquele vazio insonso. Ela rolou para o lado, depois para o outro. Suspirou, encarou o teto e levou a mão ao peito, como se pudesse acalmar o aperto que sentia. A imagem de Sabrina voltava à mente como um filme repetido: os olhos tristes escondidos por um sorriso forçado, as palavras engolidas no meio de frases, os machucados invisíveis que Bruna sabia muito bem como reconhecer. Ela mesma já tivera olhares assim. E talvez por isso, doía tanto ver. Mas o que fazer? Se falasse algo, poderia expor Sabrina, fazê-la se fechar ainda mais, talvez até afastá-la. E se ficasse calada, sentia-se cúmplice de tudo que ela vinha sofrendo. O dilema era um peso nos ombros. Bruna se sentou na cama, abraçando os joelhos, sentindo a garganta arder com a angústia presa. — Eu só quero te ajudar, Sab... — sussurrou para o vazio, como se a amiga pudesse ouvi-la. Na escrivaninha ao lado, o celular vibrava com uma notificação qualquer, mas ela não tinha forças nem curiosidade para olhar. Seus pensamentos estavam longe demais, presos numa espiral de “e se”. Talvez, pensou, pudesse escrever uma carta. Ou falar com alguém de confiança que pudesse intervir sem expor Sabrina. Talvez… talvez ela devesse apenas estar ao lado, mostrar que estava ali. Que ela não estava sozinha. O relógio marcava 3h47 da manhã. Bruna ainda não sabia qual seria o melhor caminho, mas uma coisa era certa: ela não dormiria enquanto não encontrasse um jeito de proteger a amiga sem machucá-la ainda mais. E naquela noite, ou melhor, naquela madrugada, Bruna compreendeu que, às vezes, amar alguém era exatamente isso: carregar o medo no peito e, mesmo assim, não desistir de tentar salvá-la da dor.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD