01 - Monique
Monique Narrando
Você consegue entender uma pessoa pela forma como ela carrega suas cicatrizes.
Eu carrego as minhas nas mãos. Duras, frias, marcadas de calos e pequenas queimaduras. Uma vez um jornalista me perguntou o que era mais difícil no BOPE. Eu respondi: “Ficar humana.” Ele riu. Mas eu não tava brincando.
O dia em que entrei pro Batalhão de Operações Policiais Especiais não teve confete, não teve abraço de pai orgulhoso, nem selfie pra rede social. Foi só eu, suor, dor, e a certeza de que dali pra frente eu nunca mais ia voltar a ser a mesma.
Não venho de família de militar. Não fui criada pra matar. Cresci no subúrbio, filha de professora e técnico de refrigeração. Mas um dia entendi que esperar pela justiça não funciona. E decidi vestir ela na pele — preta, justa e pesada. O uniforme do BOPE não perdoa erro. Nem covardia. E eu aprendi isso rápido.
No curso de formação, éramos duzentos. Formaram sete. Uma mulher: eu.
Não demorou pra entenderem que eu não tava ali pra provar nada pra ninguém. Eu tava ali porque não suportava mais ver o crime levar quem não devia, destruir quem ainda tinha esperança. E se alguém ia enfrentar aquilo de frente, ia ser eu. Com fuzil, com coragem, com cicatriz.
Lembro da primeira prova de resistência: afogamento controlado. A piscina parecia tranquila, mas era o d***o disfarçado. Quem subisse sem ordem, tava fora. Vi homem forte chorando debaixo d’água, vi valentão pedindo pra sair. Eu fiquei. Mesmo quando meus pulmões imploravam por ar, mesmo quando minha visão escureceu, eu fiquei. Saí da água quase desmaiando. Mas saí. O sargento olhou pra mim e disse, seco:
— Respeito se conquista, soldado.
E eu não disse nada. Nem precisava.
Depois veio o inferno verde. Vinte e quatro horas rastejando no mato, barro na cara, fuzil nas costas e um instrutor babando ódio no meu ouvido. Teve um momento que ele se abaixou do meu lado e sussurrou:
— Vai desistir, boneca?
Virei pra ele com o rosto sujo de lama e respondi:
— Só quando meu coração parar.
Ele nunca mais me chamou de boneca.
O BOPE não é sobre vencer. É sobre sobreviver. Sobre fazer parte de algo maior que você, sabendo que ninguém vai te aplaudir no final. E mesmo assim, entrar. Mesmo assim, ficar.
A primeira missão veio antes mesmo de eu guardar o brevê. Nem tive tempo de pendurar o uniforme novo no armário. Me jogaram direto no caos: uma incursão na comunidade da Matriz. Facção contra facção. Um dos nossos tinha sido baleado. A ordem era clara: entrar, conter e sair.
E foi aí que eu conheci ele.
Reinaldo. Cabo Reinaldo, mas eu só chamava de Rei. E ele me chamava de “preta”. Não pela cor da minha pele, mas pela força. “Guerreira”, ele dizia.
Foi o único que nunca me olhou torto. Me deu moral quando ninguém deu. Me ensinou mais que o manual. Me protegeu sem me impedir de crescer. Foi meu parceiro, meu irmão. Quando ele tava comigo, até o tiroteio parecia menos barulhento.
Naquela missão da Matriz, ele ficou do meu lado o tempo todo. Me deu cobertura, confiou no meu tiro. Quando voltamos ilesos, com dois presos, ele me abraçou e disse:
— Agora sim, tu é caveira, sua filha da p**a.
E sorriu. Aquele sorriso que me dizia: “tamo junto”.
Nos tornamos dupla inseparável. Onde ele ia, eu ia. Era sincronia no campo, cumplicidade no silêncio. Até o dia em que mandaram a gente pro pior lugar possível.
Morro do Dendê.
Só de ouvir o nome, o BOPE mudava o tom. Os recrutas prendiam a respiração. Os veteranos travavam a mandíbula. Era território dele.
Zangado.
Diziam que ele era o novo rei do crime. Que não precisava levantar a voz. Que o morro calava só com a presença dele. Filho do Madruga, herdeiro de guerra. Mas mais frio. Mais calculista. Letal sem pressa.
Quando recebemos a missão, Reinaldo me puxou no corredor e disse:
— Preta, esse é o tipo de lugar onde policial não volta.
— A gente vai pra fazer o que precisa ser feito — respondi.
Ele só assentiu, mas os olhos dele diziam tudo. Ele tava preocupado. E se o Rei se preocupava, é porque o buraco era mais embaixo.
No dia da operação, subimos em comboio. Três caveirões. Vinte e dois homens. Uma mulher. Eu.
Ao cruzar os becos do Dendê, senti o peso no ar. Silêncio demais. Rua estreita, janela fechada. Era armadilha. E a gente sabia. Mas não tinha como voltar. O rádio chiou:
— Três elementos armados. Avançar ou recuar?
Silêncio.
— Avança. E com tudo.
E a gente avançou direto pro inferno.
Vieram de cima, dos lados, das sombras. Era emboscada. Rajada pra todo canto. Eu me joguei no chão, fuzil na linha, tentando achar um alvo no caos.
E foi aí que eu ouvi o grito.
— MONIQUE!
O mundo parou.
Olhei. Vi Reinaldo no chão. Sangue escorrendo. Fuzil fora da mão. Corri até ele, o som das balas ao redor virando eco. Peguei a cabeça dele no colo. Ele tava vivo. Mas por pouco.
— Fica comigo, Rei. Pelo amor de Deus, fica comigo!
Ele tossiu sangue. Me olhou.
— Promete… que tu vai sair viva.
— Cala a boca. A gente vai sair junto.
Ele sorriu. Fraco.
— Tu é mais forte que isso tudo, preta…
E apagou.
Gritei. Gritei até minha alma sair pela garganta.
Quando recuamos, metade da equipe tava ferida. Um morto: o melhor homem que eu já conheci. Eu entrei no blindado com o corpo dele nos braços. Não chorei ali. Mas jurei.
Jurei que ia voltar naquele morro.
Zangado.
Pode ser o rei.
Pode ser temido.
Mas agora ele tá marcado.
Por mim.