Me Esquecer

1546 Words
POV Aurora Onde o silêncio aprende a morder Dizem que o silêncio não faz barulho. Mentira. Na minha casa, ele estalava igual ossos quebrando por dentro. Tinha cheiro de comida fria. De resto. De coisa que sobra pros outros. A mesa de jantar era grande demais pra gente. Quatro cadeiras, um lustre bonito que eu não podia encostar, toalha que mamãe só usava “quando tinha visita”. Mas naquele dia não tinha ninguém. Só eles. E eu. — Helena, querida, passa o pão pro seu pai — a voz de mamãe veio melada de açúcar. A voz que ela só usava pra filha favorita. Helena se ajeitou toda, como se estivesse num comercial de margarina. Sorriso perfeito, cabelo perfeito, postura perfeita. — Claro, mamãe — ela disse, esticando o cesto de pão pro lado certo. O lado dele. O estômago roncou tão alto que eu mesma me assustei. Me encolhi na cadeira. Ninguém riu. Ninguém achou fofo. Ninguém disse “coitadinha, deve estar com fome”. Papai continuou lendo o jornal, como se eu fosse parte da parede. O cheiro da sopa subia, grosso, pesado, queimando meu nariz. Eu não lembrava qual tinha sido a última vez que tinha comido sem contar os pedaços. Esperei alguém lembrar de mim. Ninguém lembrou. Estiquei a mão devagarinho pro cesto. Um pedacinho, o menor, eu sempre pegava o menor. Menos culpa, né? Mamãe levantou os olhos na hora. — Quem mandou você pegar mais pão, Aurora? — a voz dela não tinha nada de doce agora. Era gelo. — Você já comeu. — Mas… eu só peguei um pedaço, mãe… tô com fome ainda… Erro. Ela largou a colher na mesa com tanta força que o caldo respingou. — Não responde! — cortou papai, sem tirar os olhos do jornal. — Você vive reclamando. Tá achando que tá onde, menina? Num hotel cinco estrelas? Helena abaixou a cabeça, mas eu vi o sorriso dela, bem de canto. Ela amava quando eu levava bronca. Era o show particular dela. — Mamãe… — Helena começou, naquele tom que ela usava quando queria brilhar ainda mais. — A professora disse que eu fui a melhor da turma outra vez. Tirei dez em tudo. — Aí está! — disse papai, orgulhoso, finalmente largando o jornal. — Isso é filha. Bonita, estudiosa, comportada. Você devia aprender com sua irmã, Aurora. Mas você… você só dá despesa. Como se eu fosse um boleto atrasado. Engoli o choro junto com a sopa fria. Eu nem gostava daquela sopa. Mas era isso ou dormir com a barriga queimando de fome. Helena mexia a colher devagar, toda delicada, como se estivesse num chá de princesa. — Ah, e a Aurora desenhou um cachorro hoje no caderno — ela falou, fingindo que era “sem querer”. — Disse que queria um. Riu baixinho. — Imagina… um cachorro aqui em casa. Que graça, né? Minha mão gelou em cima do prato. — Um cachorro? — mamãe riu, alto. — Você m*l cuida do seu cheiro, menina. Vai cuidar de bicho? Vai era encher a casa de pelo e doença, isso sim. Onde já se viu uma coisa dessa? — Eu… eu cuidaria… — murmurei, tão baixo que quase não saiu. Papai bateu a mão na mesa. — Eu já falei pra você não responder quando ninguém perguntou nada! Tá desafiando agora? Tá aprendendo o quê na escola, hein? Insolência? A colher tremeu na minha mão. A sopa respingou no meu braço, quente, mas ainda era menos dolorido que ouvir a voz dele. Eu não queria desafiar. Não sabia nem como era isso. Eu só queria existir um tiquinho. Terminei de comer calada. Helena ganhou sobremesa: um pudim que só faziam quando ela “merecia”. Eu não ganhei nada. Só o cheiro. Quando levantei pra botar o prato na pia, mamãe apontou com o queixo. — Lava os pratos. — Todos? — perguntei. Ela ergueu uma sobrancelha. — Claro, né? Ou você tá achando que tem empregada nessa casa? A Helena precisa estudar. Você… bem, você tem duas mãos. Serve pra quê, afinal? Helena se levantou, deu um beijo na bochecha dos dois, como uma boneca bem treinada, e subiu, toda leve. Eu fiquei com a pia cheia, a barriga meia, a garganta cheia de coisa que eu não podia dizer. Quando terminei, a cozinha tava vazia. A casa tava escura. As vozes deles vinham da sala — riso, TV, Helena contando alguma história brilhante. Fui até a porta, só por curiosidade. — Ela não come quase nada, mas parece que tá sempre incomodando — mamãe dizia. — Não sei porque a gente ainda insiste. — Porque não podemos voltar atrás — respondeu papai, num tom irritado. — Já basta o que as pessoas falam. A gente fez o que fez, agora tem que aguentar. Mas eu não vou tratar como se fosse igual à minha filha de verdade. Filha de verdade. Eu congelei no corredor. Filha de verdade? Então… eu o quê? Falsa? Voltei pro quintal antes que as lágrimas escapassem. Não queria chorar dentro da casa deles. Não era minha casa. O vento tava gelado. A grama úmida. O galpão velho me esperava lá no fundo, do mesmo jeito de sempre. Madeira podre, telhado quase caindo, cheiro de poeira, ferrugem e coisa esquecida. Era feio. Era fedido. Era meu. Empurrei a porta com cuidado. Ela rangeu, reclamando, como se também estivesse cansada. Lá dentro, escondida atrás de umas caixas, ficava minha caixa de sapato. Minha caixa de tesouros. Desenhos amassados, um carrinho quebrado que alguém jogou fora e eu peguei, pedaços de vidro que brilhavam quando a luz entrava pela fresta, um botão velho que eu fingia que era uma joia. Eu juntava tudo que ninguém queria. Talvez porque eu soubesse como era ser resto. Foi aí que ouvi. Um som baixinho. Um chorinho. Um latido engasgado. Congelei. — Tem alguém aí? — sussurrei, porque da minha vida, eu já esperava de tudo. Cheguei mais perto, o coração disparado, olhando pro escuro. O barulho veio de novo. Um gemidinho curto, desesperado. Empurrei umas caixas de madeira e vi. Um filhote. Molhado. Magro demais. Cheio de barro nas patinhas, o pelo grudado, os olhos enormes e assustados. Ele recuou um pouquinho quando me viu, como se estivesse pronto pra apanhar. Nossa. Igual eu. Ajoelhei no chão úmido, sem ligar pra roupa suja. — Ei… calma… eu não vou bater em você, prometo. — estendi a mão devagar. Ele cheirou meus dedos primeiro, desconfiado, depois deu um passinho pra frente e encostou o focinho. Tremia. Muito. — Você tá com frio, né? — minha voz saiu baixinha, quase quebrando. — E com fome. Eu também tô. Peguei o cobertor velho que eu escondia ali — um que mamãe ia jogar fora porque “já deu o que tinha que dar” — e enrolei o bichinho. Pequeno, quente. Pela primeira vez naquele dia, senti alguma coisa boa encostar em mim. Meu estômago lembrou que existia, roncando alto. — Pera aí… — levantei rápido e corri pro canto onde eu tinha guardado o pão do jantar. Eu sempre separava um pedaço escondido antes de levar os pratos. "Roubo de pobre", papai chamaria. Pra mim era só sobrevivência. O pão tava duro, mas o filhote comeu como se fosse um banquete de rei. Eu ria baixinho só de ver. — Devagar, senão você engasga, bobo — falei, fazendo carinho entre as orelhas. Ele levantou o focinho pra mim, com migalhas grudadas, como se perguntasse: “acabou?” Afaguei a cabeça dele de novo. — Você vai se chamar Estrelinha — decidi, sem nem pensar muito. — Porque apareceu no meio da minha noite. E eu tava precisando muito de qualquer luz. Estrelinha abanou o r**o, fraco, mas abanou. Foi o suficiente pra eu sentir o peito esquentar. Deitei no chão mesmo, com ele encostado em mim, os dois enrolados no cobertor velho. O galpão continuava escuro, frio, úmido. Lá fora, a casa tinha luz, comida quente, risada. Aqui dentro, só tinha eu e um cachorro de rua. E, pela primeira vez, isso pareceu melhor que tudo. Passei a mão devagarzinha nas costelas salientes dele. — Eu não sei porque eles não me querem — falei baixinho, sem saber se tava falando com ele ou comigo mesma. — Mas tá tudo bem. Eu te quero, tá? Eu quero você. Estrelinha deu um suspiro pesado, daqueles de cachorro cansado, e se encaixou ainda mais perto, como se entendesse cada palavra. Fechei os olhos. O chão era duro. O vento entrava pelas frestas. Mas o calor dele colado na minha barriga foi a coisa mais parecida com abraço que eu tinha sentido em muito tempo. Antes de dormir, sussurrei só pra ele: — Se um dia eu sair daqui… você vem comigo. Eu prometo. O silêncio respondeu. Dessa vez, ele não parecia tão c***l. Parecia só… à espera. E ali, com oito anos e o coração todo machucado, eu fiz minha primeira promessa de verdade: um dia, ninguém mais ia me mandar calar. Um dia, eles iam lembrar do meu nome. Nem que fosse tarde demais. E dormi. Com fome. Com dor. Mas com Estrelinha respirando do meu lado. Pela primeira vez, a noite não pareceu tão escura assim.
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