POV Aurora – 8 anos
Acordei com tudo girando e uma dor de cabeça horrível que se misturava com a dor do meu corpo.
Meus olhos abriram devagar, mas a claridade parecia cortar, pisquei várias vezes até meus olhos se acostumarem. Meu corpo doía como se tivesse levado uma surra. Na verdade... eu levei. Só que do tipo que vem com palavras também.
A camisa grudava no braço. O curativo improvisado tinha se manchado de sangue e pus. A madeira da cama parecia mais dura que nunca. Tentei levantar, mas o quarto girou comigo, sem perceber, estiquei o braço machucado para me apoiar e não cair, o que me fez sentir muita dor. A garganta raspava, e meus olhos ardiam. Estava com febre, muita febre. Eu sabia.
Ouvi passos no corredor. Quis chamar alguém. Mas alguma coisa em mim... se recusou. Se eles não se importam, por que eu deveria? Eles nunca ligaram pra mim mesmo, com certeza isso não ia fazer diferença.
Fechei os olhos.
Queria dormir e não acordar tão cedo.
Horas depois — ou talvez minutos, não sei — ouvi a porta abrir devagar. Não era minha mãe. Ela sempre entra como se o chão fosse dela. Nem meu pai. Ele jamais viria.
Era Helena.
Senti o peso do silêncio dela no quarto. Ela não disse nada. Nem eu.
Só depois de alguns segundos ela soltou um:
— Você tá com febre?
Tentei responder, mas minha boca tava seca demais.
Helena se aproximou. Sentou na beira da cama, mas não me tocou.
— Se eu contar pra mamãe que você tá assim... vai dar confusão. Eles vão brigar com você de novo. E talvez joguem você fora.
"Jogar fora", como se eu fosse um brinquedo quebrado.
Fiquei quieta.
— Mas se você morrer, eles também vão brigar comigo — ela disse, como se estivesse falando com uma boneca e não comigo. — E isso seria pior.
Ela levantou. Foi até o armário, pegou minha caixinha escondida e revirou tudo como se tivesse o direito. Como ela sabia que eu guardava minha caixinha ali?Achou um paninho limpo e um restinho de pomada que mamãe tinha dado meses atrás, quando Helena caiu da bicicleta e ralou o joelho e eu roubei um pouco pra mim.
Voltou, se ajoelhou ao lado da cama e limpou o corte.
Ardeu.
— Você é tão burra. Podia ter escondido melhor aquele cachorro.
Quis gritar. Empurrar ela. Mas não tinha força. Até os olhos estavam difíceis de manter aberto. Nem coragem. E, no fundo, parte de mim sabia que ela tava certa. Eu devia ter escondido melhor.
Ela terminou de enfaixar, meio torto, e ficou me olhando. Depois falou:
— Eu não vou contar nada. Mas você me deve uma.
Meus olhos encontraram os dela. Aqueles olhos claros que todos acham lindos. Mas que, pra mim, sempre pareceram poços rasos — bonitos por fora, perigosos por dentro.
— Por quê? — murmurei. — Por que você tá me ajudando?
Ela deu de ombros.
— Porque você ainda não é nada. Mas pode ser útil, um dia.
Levantou, alisou seu vestido impecável, ajeitou o cabelo como uma boneca de vitrine e saiu.
Fiquei sozinha de novo.
Mas não inteira.
Foi a primeira vez que dormi a noite toda sem pesadelos. Dormir rápido.
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POV Aurora
No dia seguinte, acordei melhor. A febre ainda vinha e ia, não estava tão forte como antes, mas o pior tinha passado. Eu sabia que não era Helena quem cuidava. Ela protegeu a própria imagem, só isso. Mas a verdade? Pela primeira vez, vi medo nos olhos dela.
Medo de ser culpada. Medo de perder o papel da filha perfeita, de ser o orgulho do papai e da mamãe.
E foi aí que eu entendi: ela podia ser a filha de sangue. Mas eu... eu era o espelho que ela precisava manter quebrado. Porque se eu começasse a brilhar, mesmo só um pouco, ela deixaria de ser o centro. E isso ela jamais aceitaria.
Talvez, no fundo, ela tivesse mais medo de mim do que eu dela.
Isso me deu força.
Não muita.
Mas um começo.
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POV Aurora
No fim da tarde, fui até o galpão.
Estrelinha não estava mais lá.
A coleira improvisada pendia sozinha de um prego. Parecia ser um ponto estratégico para que pudesse ver.
Ele foi embora... ou levaram ele.
Senti o peito afundar de novo. Me ajoelhei no chão e chorei baixinho. Não tinha mais o único calor de aconchego que senti. Pela primeira vez em muito tempo, chorei com raiva. Não só tristeza.
Eu queria lutar. Gritar. Bater de volta.
Mas era só uma menina. Não havia nada que eu pudesse fazer.
Por enquanto.
De noite, enquanto Helena contava aos pais como ajudou uma "amiguinha da escola que estava com febre", fingindo ser boazinha, eu fiquei observando em silêncio. Era a única coisa que eu podia fazer. Observar.
Gravei cada palavra.
Ela não sabia, mas naquele momento, eu aprendi.
Aprendi como ela joga. Como ela manipula. Como ela mente com um sorriso e te apunhala a
pelas costas.
E entendi que, se eu quisesse sobreviver naquela casa... eu teria que aprender também. Aprender a fazer o que ela faz, mas, no meu caso, precisava aprender a dizer que estava tudo bem e sorrir mesmo que eu estivesse com vontade de chorar.
Talvez, um dia, até melhor que ela, eu pudesse representar assim. Vou tentar aprender pra sobreviver.
Antes de dormir, escrevi no meu caderno de desenho, as letras tortas por causa do machucado no cotovelo, não conseguia esticar direito, estão fiz do jeito que dava:
“Eles me esquecem com facilidade. Mas um dia... vão lembrar de mim. Essa é uma promessa, vocês ainda vão se lembrar de mim. Custe o que Custar”
E dessa vez, eu não chorei.
Antes de dormir, fiz minha pequena oração como sempre, fechei os olhos e deixei o sono me levar.
Ainda com aquela dúvida na minha cabeça, porque eles me tratavam assim? Eu não pedi nada disso.
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